A nau dos insensatos
Folha de S.Paulo, Mais! - 8/9/2002
Ritos de passagem, de William Golding

Cristovão Tezza

Em sua obra clássica de 1954, O senhor das moscas, o escritor inglês William Golding (1911-1993), prêmio Nobel de literatura de 1983, colocou numa ilha deserta um grupo de meninos perdidos, narrando-lhes as desventuras da sobrevivência. O resultado é uma esmagadora (e inesquecível) negação do mito do bom selvagem e da decantada inocência infantil. Sem o controle dos chamados "esteios da civilização" (família, escola, polícia, religião), a cada dia a memória dos valores vai se tornando mais rarefeita e a brutalidade do irracionalismo começa a assumir o comando - mesmo porque somente ela é capaz de dar conta do terror e do medo, da presença do desconhecido, quando não há nenhuma referência adulta à mão. O pessimismo visceral de Golding é, também, uma advertência, e sua obra pode ser lida como uma espécie de tese, uma tese posta à prova na vida de uma literatura sutil e perturbadora.

Em Ritos de passagem, de 1980, William Golding retoma a mesma metáfora da ilha, desta vez travestida num navio que sai da Inglaterra em direção à Austrália, numa viagem de meses, e as crianças do primeiro romance agora são os ingleses adultos de algum momento do século XVIII. O navio - ele mesmo um amálgama de vaso de guerra, navio de passageiros e cargueiro - reproduz em pequena escala toda a intrincada estratificação social da Inglaterra, vendo-se representados ali desde os emigrantes, passando pelos marinheiros, os sub-oficiais, as mulheres respeitáveis, as não respeitáveis, os artistas, os livre-pensadores, a criadagem, até o poder civil, o poder militar e o poder do clero, este presente na figura patética do reverendo Colley, em torno de quem se faz a intriga (e a tragédia) da narrativa. O papel e o espaço de cada um nos estreitos limites do navio são rigorosamente demarcados, tanto pela mútua vigilância cotidiana quanto por uma "linha branca" do convés que funciona como uma peneira grossa dos limites físicos de cada grupo. A ocupação dos territórios obedece à rigidez implacável das classes e do poder do capitão.

O romance é narrado através do diário de bordo de Edmond Talbot, prestes a ocupar cargo de relevância junto ao governador da colônia, o que lhe dá uma margem de superioridade política no navio, inclusive sobre o intratável capitão Anderson, que muda seus modos assim que percebe "com quem está falando". No diário, Talbot relata ao seu padrinho o que se passa no navio, com uma linguagem cuja ironia, de fato, nada tem de corrosiva - é apenas a empáfia convencional, com os salamaleques da época, de quem, em cada linha, marca a própria superioridade e frisa a miséria alheia. O escárnio maior se concentra na figura ridícula do reverendo Colley que, Deus à mão, pretende afirmar seu espaço no navio. Imbuído de uma generosidade franciscana, de um messianismo infantil e de uma brutal insensibilidade ao que se passa em volta, Colley vai sendo crescentemente devorado - à medida que o navio avança para o vazio do mar e transpõe o equador - por um ritual de selvageria que passa da forma polida das falsidades do dia-a-dia para a de uma carnavalesca cerimônia satânica representada por marinheiros bêbados sob a complacência do capitão e dos oficiais, a título de "trote". Sobre a irrisão de que ele é objeto, o livre-pensador, a voz da ciência, o senhor Prettiman, também não terá o que dizer, empolgado com a idéia de matar um albatroz para abater as superstições dos marinheiros - "é uma demonstração viva de quanto pode ser verdadeiramente irracional um filósofo racional", anota Talbot. Quando a tragédia se consome - agora pela força também irracional do sexo no mundo das sagradas convenções (uma variável ausente em O senhor das moscas) -, a civilização como que junta os seus cacos para a encenação de outro ritual, o do inquérito, que dará em nada, porque respingaria nos oficiais.
Quando Talbot tem acesso à carta que o próprio reverendo escrevia, a narração ganha o contraponto que lhe dá a dimensão da tragédia. É a ilustração concreta do diálogo de surdos que parece o ponto de partida da condição humana. O próprio Talbot, transtornado e transformado pelos ritos da viagem, reconhece: os homens podem - literalmente - morrer de vergonha. E é dele também a síntese da tese (e do pessimismo) de Golding: como todos os homens do mar vivem demasiado próximos uns dos outros, vivem também demasiado próximos de tudo quanto é monstruoso, "sob o sol e sob a lua".




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