A indigestão da ética
Folha de S.Paulo, Mais!- 5/5/2002
A vida dos animais, de J. M. Coetzee

Cristovão Tezza

A literatura do sul-africano J. M. Coetzee, que, sem muito alarde, vem sendo editado no Brasil já há alguns anos - os romances Desonra (Companhia das Letras), A idade do ferro (Rocco), O mestre de Petersburgo (Best-seller), entre outros -, pode nos dar alguma medida do que de mais refinado existe na literatura contemporânea. Coetzee explora ao máximo aquela faixa estreita que restou à linguagem do romance como o espaço por excelência da relação entre ética e estética na interpretação ficcional do mundo, um espaço que talvez não possa ser preenchido com a mesma força por nenhuma outra linguagem. Coetzee é um pessimista visceral, mas sem ênfase. Em seus livros, a investigação sobre a miséria, a dor e a solidão humanas - que lembra o olhar impiedoso do inglês William Golding, de O senhor das moscas - é menos o resultado cerebral de uma visão de mundo fria, derivada da razão, e mais uma sensação quase que silenciosa, mesmo discreta, dos limites sempre rotos da dignidade humana. E há nele, contrabalançando o conforto civilizatório do ponto de vista do primeiro mundo, a realidade estúpida da África do Sul de sua formação (ele nasceu em 1940) - pode-se dizer que a brutalidade lógica do apartheid, configurada pela abstração do Estado e absorvida no cotidiano das pessoas, deu a Coetzee a dimensão de sua literatura, mesmo quando o seu tema não está na África. Como se a África do Sul tivesse simplesmente regulamentado e despersonalizado, para uma eficácia indolor, algum sonho universal de segregação que bate no coração dos homens.

Em A vida dos animais, lançado agora pela Companhia das Letras, esse mesmo universo está presente, mas num texto de perspectiva completamente distinta. Trata-se de duas palestras que Coetzee - ele mesmo professor de literatura na Cidade do Cabo - apresentou na Universidade de Princeton: "Os filósofos e os animais" e "Os poetas e os animais". As conferências vêm acompanhadas de uma introdução e de mais quatro curtas reflexões acadêmicas de especialistas comentando os textos de Coetzee. O tema genérico das palestras é a relação entre os homens e os animais, acentuando-se o ponto de vista de que a morte dos animais para a alimentação humana é um crime ético. Tudo parece indicar que o texto de Coetzee, aliás um vegetariano convicto, é mais um libelo monótono dos messiânicos prontos a afirmarem a própria grandeza e o caminho da salvação diante da miséria alheia. Previsivelmente, as conferências afirmam a desconfiança do mundo da razão e da cultura, que afinal justificam a matança sistemática dos animais; o problema dessa desconfiança está no fato de que, extraída a razão, por limitação ou incompetência, acabamos por não saber nas mãos de quem, ou de quê, ficará o reconhecimento do mundo "justo". Da religião? Da pura intuição?

Acontece que Coetzee tem um recurso extraordinário para escapar desta armadilha acadêmica, recusando-se a se colocar diretamente no papel de conferencista e negando a própria autoridade para decidir a questão. Ele faz isso ficcionalizando a palestra; cria uma velha conferencista, Elizabeth Costello, como ele romancista famosa, que é convidada por uma universidade imaginária para falar sobre literatura mas que prefere falar sobre a matança dos animais. Fica hospedada na casa de um filho com quem tem problemas de relacionamento e de uma nora que a detesta, e é através desses pontos de vista que entramos em contato com a teimosa conferencista. Assim, todo o discurso de Elizabeth (descrita pelo filho como uma mulher chata, no mínimo incômoda) passa a ser ficcionalmente refratado. E é justo nessa dimensão que a questão ética ganha o seu verdadeiro relevo, o fato de que a ética (como de resto todo o universo dos valores que nos guiam) só pode ser considerada no território comum entre as pessoas e não como afirmação isolada de uma autoridade "pensante". Não se trata de relativismo (isto é, todas as opiniões seriam iguais se todas as pessoas são iguais), porque Elizabeth afirma plenamente seus pontos de vista e os defende com firmeza contra outras opiniões; acontece que, como na vida, nosso acesso a esses pontos de vista se faz pelos olhares alheios que lhe dão sentido e referência. Enfim, não podemos desconsiderar o lugar de onde estamos para avaliar Elizabeth.

Assim, o que parece apenas um recurso literário "pós-moderno", como sugere a reflexão de Marjorie Garber incluída no volume, o que reduziria a questão a um mero distanciamento e não comprometimento de Coetzee com o problema que levanta, passa a ser a afirmação da prosa romanesca como um caminho possível de reconhecimento do mundo que assume a impossibilidade de uma última palavra. Isto é, num mundo em que Deus não pode ser tomado como pressuposto e em que a razão não pode ser considerada em abstrato (porque os homens não vivem em abstrato), toda afirmação ganha a incerta estatura humana. Nesse plano, cada palavra encontra sua contra-palavra; por exemplo, a comparação de Elizabeth da matança dos animais com os métodos de Treblinka ("uma empresa metafísica dedicada a nada além da morte e da destruição") é rebatida com simplicidade pelo poeta Abraham Stern, que por um bilhete se recusa a almoçar com ela ("essa inversão insulta a memória dos mortos"; "a senhora disse que é velha demais para perder tempo com frivolidades. O mesmo vale para mim".)

A tensão ficcional que povoa a curta narrativa de Coetzee nada tem da frieza técnica de uma conferência. Assim, mesmo os carnívoros inveterados (como o resenhista) encontrarão no texto um belo exercício de sensibilidade e inteligência para pensar nossos hábitos alimentares, colocando em foco não as idéias, mas as pessoas. E o livro é enriquecido por reflexões que dão o contraponto acadêmico, ou científico, à fábula de Coetzee. A melhor é a de Peter Singer, que mimetiza o método de Coetzee para melhor entendê-lo; e a mais fraca, a de Barbara Smuts, cuja rica experiência de antropóloga com babuínos infelizmente se reduz no livro a uma defesa da convivência pessoal entre homens e animais, entregando-se a um sentimentalismo que passa muito longe da discussão proposta por Coetzee.


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