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Uma aquarela desbotada
Folha de S.Paulo, Mais! - 17-03-2002
Jack Maggs, de Peter Carey
Cristovão Tezza
Em abril de 1837, um suposto criminoso de traços sinistros,
Jack Maggs, volta da Austrália para Londres com o propósito
obsessivo de encontrar um certo Henry Phipps. Para matá-lo?
Custamos a saber; logo começa uma sucessão vertiginosa
de desvios narrativos, coincidências extraordinárias,
encontros e desencontros, sustos e surpresas. No cenário
de uma Londres sórdida recriada diretamente das páginas
de Charles Dickens e do clássico "Grandes Esperanças",
a história de Maggs - provisoriamente empregado como copeiro
- vai se cruzando com a vida de um escritor pobre, ambicioso e
sem escrúpulos e com o destino de um ex-peixeiro que herda
uma casa e todos seus empregados. Em cada página, mulheres
perdidas, exploração da miséria infantil,
médicos, charlatães, cocheiros, taberneiros, manuscritos
redigidos em código com escrita invisível, sessões
de hipnose em reuniões científicas, contratos arriscados
a fio de bigode, sombras em telhados, fantasmas que reaparecem.
Ao mesmo tempo, a gênese da narrativa vai se iluminando
aos fragmentos através da memória de uma criança
suja e assustada carregando sacos cheios de peças de prata
através de ruelas fedendo a esgoto sob a luz brilhante
da lua. Não falta a névoa, os ratos, uma fuga por
um barco precário ao longo do Tâmisa, a ponte de
Londres, marcas de chibata na pele, barbas imundas e aqui e ali
um bom coração batendo neste ou naquele peito sofrido.
Todo o imaginário do folhetim romântico (incluindo
de forma muito específica o universo de Dickens) está
presente no romance Jack Maggs, do premiado escritor australiano
Peter Carey. Nesse sentido, o romance cumpre integralmente o que
promete: é uma narrativa irresistível - como disse
um resenhista, lendo Jack Maggs você "não pára
nem para jantar nem para atender a campainha". São
366 páginas de "tirar o fôlego", repetindo
mais um chavão. Nesses tempos em que o leitor de um livro
é uma figura quase mais rara que o mico-leão dourado,
o livro de Peter Carey funciona como uma bênção,
um verdadeiro formador de leitores, capaz de, pela simples força
do seu texto, arrrastar alguém da idiotia televisiva para
algum tempo de silêncio produtivo. Tarefa civilizatória
cumprida - e a resenha acabaria aqui.
Mas o leitor mais exigente poderia aproveitar a leitura deste
ótimo romance de aventuras para pensar sobre o sentido
da "reconstituição de época" num
livro que não se pretende nem histórico, nem propriamente
documental. Pretende-se literatura, sem adjetivos - e então
esse leitor tentará descobrir o "olhar contemporâneo",
o nosso olhar sobre aquele tempo. Afinal, só a presença
da sensibilidade contemporânea pode dar um sentido maior
ao que, de outra forma, seria apenas uma cópia, um pasticho
ou uma brincadeira literária. Numa entrevista, Peter Carey,
nascido em 1943 e hoje professor da Universidade de Nova York,
disse que embora nem todos os australianos descendam dos criminosos
que para lá foram mandados pela Inglaterra, esses primeiros
habitantes marcaram o país, como os passageiros do Mayflower
marcaram simbolicamente os Estados Unidos. Assim, era seu projeto
inverter o olhar de Dickens: o personagem Jack Maggs não
seria o "outro", mas o próprio "ancestral"
de Carey. Sem eliminar o "perigo" que o personagem representa,
ele quis marcá-lo com a mesma simpatia que Dickens passa
aos seus heróis ingleses.
O projeto de Peter Carey, entretanto, acaba por não se
realizar de fato, porque no livro a força mimética
do modelo folhetinesco é tal que - vai lá o chavão
de novo - nem o leitor, nem o texto respiram. Esmagados pela ação,
todos os personagens se diluem no estereótipo. Não
só os personagens: rigorosamente tudo no livro reproduz
uma imagem prévia com a qual o leitor já foi bombardeado
ao longo da vida, pelos filmes e pelos textos, de Dickens a Chaplin:
uma criança com as bochechas sujas de carvão e um
saco de peças de prata pendurado nas costas recortada pela
luz do luar, o criminoso bom, o filho ingrato, o advogado perverso,
a mãe terrível, etc. A Londres do século
XIX de Peter Carey é uma gravura colorida na parede, com
todas as arestas suavizadas pelo otimismo romântico, mas
sem nenhum dos elementos de sua força original; é
um retrato na parede que não dói. Do olhar de hoje,
apenas a profusão de diálogos, a rapidez eficiente
de uma conversa fiada cinematográfica que vai conduzindo
a narrativa e esvaziando-lhe de toda introspecção.
As descrições - ao contrário do realismo
do século XIX que avançava detalhista sobre a representação
do mundo como quem o descobre pela primeira vez - são pequenos
traços de aquarela que complementam o cromo que já
está na cabeça do leitor e contra o qual o narrador
nada tem a dizer. O tempo passado não é mais fonte
de reflexão; transformou-se em passatempo. De novidade
também - e politicamente correto - vê-se um breve
affair homossexual num segundo plano narrativo, mais uma ilustração
passageira do que um tema consistente. A eventual boa intenção
do narrador desaparece na sua entrega prazerosa aos lugares comuns
em que se acomoda a imagem congelada do passado.
Seria essa - a mímese lúdica - uma maldição
inevitável a quem enfrenta o passado histórico como
fonte de literatura? Certamente não - num projeto semelhante,
um escritor da mesma geração de Carey, o sul-africano
J.M.Coetzee, em seu "Foe" (Penguin Books, ainda sem
edição brasileira), recriando Robinson Crusoe e
Daniel Defoe, marca o contraponto possível. Na história,
uma ex-náufraga maltrapilha circula numa Londres igualmente
miserável com o negro Sexta-Feira, de língua cortada,
a tiracolo, atrás de alguém que escreva a sua história,
uma história que ele mesmo, mudo e analfabeto, não
pode dizer. Aí temos também um retrato na parede
- a diferença é que este ainda dói.
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