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Zona Franca
Revista Cult - nº 55 - fevereiro 2002
Faroestes, de Marçal Aquino
Cristovão Tezza
Os contos de Marçal Aquino em Faroestes - como
já se percebia antes na coletânea O amor e outros
objetos pontiagudos - têm à primeira vista todos
os ingredientes de um certo padrão literário contemporâneo,
na sua versão urbana. A linguagem se faz na representação
mais ou menos formalizada da oralidade, que absorve sem problemas
usos universais da sintaxe brasileira ("enchemos ele de bala"),
dos palavrões ("Porra, como não pode?"),
gírias já consagradas ("e se ele te pega fumando
aquele baseado"), lado a lado com uma ou outra forma exclusiva
da escrita, como o mais-que-perfeito sintético, nesse caso
sempre na voz do narrador ("não soube definir se aquele
cheiro era o mesmo que sentira no corredor"), ou de um pronome
lusitano que escapa aqui e ali ("Sentei-me com eles").
De fato, não se trata de um dialeto típico, mas
de um padrão urbano brasileiro corrente, o que de imediato
cria a empatia do leitor: Marçal Aquino fala a nossa linguagem,
não a de um grupo socialmente fechado e lingüisticamente
marcado (como as figuras de João Antônio, para dar
apenas um exemplo entre dezenas), mas a de uma vasta comunidade,
de alto a baixo, que assiste televisão, novelas e cinema,
freqüenta botecos, lê jornal e vive nessa zona franca,
violenta, fragmentária e multifacetada que faz da cidade
o espaço contemporâneo por excelência.
Em Marçal Aquino, a linguagem não isola o seu mundo
- antes, aproxima-o do leitor, numa sedução que
vai do vocabulário comum à construção
de imagens já estratificadas previamente na nossa cabeça.
Tudo que ele conta nos é familiar, de uma familiaridade
a um tempo completa e inconsciente, uma sucessão de imagens
que já temos armazenadas de algum lugar da vida, do jornal,
da televisão, do cinema, do ouvir falar, do vizinho, do
comentário na esquina, da aula, de um outro livro. O ódio
entre o padrinho e a madrinha observado pelo olhar do menino,
a denúncia de um crime no noticiário da televisão
com a voz alterada para proteger a testemunha, o acerto de contas
seguido de um massacre no bar de periferia, a tocaia do delegado
para prender um bandido, o justiçamento de um pivete, o
contrato de espancadores para dar uma lição no sócio,
o filho marginal que tem tudo para acabar morto e acaba mesmo
morto. Enfim, qualquer habitante da imensa máquina que
alimenta a cidade brasileira estará mais ou menos em casa
ao ler Marçal Aquino. Do ponto de vista literário,
sente-se no autor a sua filiação a essa poderosa
linha da nossa prosa que podemos definir de uma forma apenas indicativa
como "realista", às vezes quase documental.
Até aqui, estaríamos apenas no terreno do lugar-comum:
como fazer boa literatura de um material tão completamente
saturado, cujo eventual impacto já foi diluído e
banalizado pela repetição exaustiva, diária,
cotidiana de imagens da televisão e do cinema? Além
disso, nesse terreno haverá sempre a sombra do Rubem Fonseca
dos anos 70 e do seu brutalismo, repetindo a expressão
feliz de Alfredo Bosi, a vencer ou pelo menos acrescentar alguma
coisa. No entanto, no meio dessa floresta cerrada do já-visto,
Marçal Aquino sobrevive em quase todos os momentos como
um narrador atraente, sensível e original.
O primeiro detalhe é o uso da linguagem comum não
para reforçar o chavão, mas para criar empatia com
o leitor, para aproximá-lo do mundo realizado pelo texto.
Mas é uma aproximação que não se faz
pelo espetáculo típico (mitificando a marginalidade
ou sugerindo uma unidade ideológica ou cultural que ela
não tem) ou pelo banal naturalista (a frieza cruel, nua
e crua dos "fatos"); em Faroestes há sempre alguém
vivendo o inferno, e é na pele dele, mais do que de um
narrador distante, que o autor quase sempre nos coloca, sem ênfase
ou demagogia narrativa, mas também sem indiferença.
Essa sutileza, a pequena sombra interessada que percorre as histórias,
esse encurtamento da distância entre o narrador e o narrado,
a delicada tensão que se sustenta momento a momento, tudo
isso garante a especial qualidade dos textos de Marçal
Aquino. O que chama a atenção nos seus contos não
é o que já sabemos, não são os "fatos";
é antes a respiração das pessoas comuns que
se movem entre eles.
Nos momentos menos felizes, aparece algum maneirismo, pequenas
frases de efeito, um desejo de explicar o que não deve
ser explicado, o que contraria a natureza de seu texto, costurado
por elipses e lacunas. Nas ótimas "Dez maneiras infalíveis
de arranjar um inimigo", pequenos quadros que descrevem em
tom coloquial, às vezes de sutil advertência, como
se amarram os detalhes das tragédias cotidianas, o texto
às vezes não resiste a um drible a mais - e, nessas
ocasiões, você é o seu pior inimigo, por exemplo.
Em "Homens mortos", o tom explicativo da última
frase - Como se fosse possível a gente se livrar das nossas
grandes dores - destrói a ambigüidade irônica
do bordão da música que se ouve no rádio:
"Aleluia, eu disse e olhei para a garota. Ela sorriu. Aleluia,
eu repeti".
Mas diante do conjunto são apenas irrelevâncias,
o preço pago por cortejar tão de perto o chão
cotidiano. A sutileza do autor acaba por transparecer sempre como
a sua marca maior. E seus recursos vão muito além
do registro naturalista, como no exato "Piercing", em
que os fragmentos da narração se amarram discretamente
de poesia, ou em "Ferrugem", revitalizando nas entrelinhas
e com uma discreta generosidade o tema clássico do casal
entediado de velhos. Outra diferença do autor é
essa dádiva difícil, o controle da tensão
narrativa, que em Faroestes não se perde nunca - Marçal
Aquino é um escritor com domínio da "corrida
contra o tempo" de que falava Cortázar ao definir
o conto.
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