O terceiro segredo de Fátima
Revista Cult, nº 54 - janeiro 2002
Não há nada lá, de Joca Reiners Terron

Cristovão Tezza

O concurso promovido pela Cult, na categoria romance, indicou a presença dominante de quatro vertentes literárias, temáticas e formais. É claro que apareceram bons e maus textos em todas elas, e às vezes a mesma obra tocava em mais de uma linha, apenas reforçando o fato de que a boa literatura sempre escapa dos ideários fechados. Essa frágil classificação, esboçada aqui mais por uma primeira impressão do leitor do que pelo rigor da ciência, mostra em primeiro lugar a persistência no Brasil de uma mitologia rural - a idéia de um país natural, autêntico, puro, não contaminado, mesmo mágico, continua viva, realizando-se numa linguagem típica, na transcendência poética ou no picaresco; Guimarães Rosa, Jorge Amado e José Cândido de Carvalho seriam boas referências dessa linha. Um segundo rumo vai em direção oposta: o da mitologia urbana, sob influência da televisão e do cinema, privilegiando a vida sem raízes, o impacto das grandes cidades no cotidiano, a violência e a solidão, com o predomínio do indivíduo (socialmente localizado) e da narração pessoal. A referência imediata aqui seria Rubem Fonseca, mas transparece nessa linha a presença subterrânea de uma tradição naturalista que vem de longe, de O Cortiço de Aloísio Azevedo a O Ventre de Cony, passando por várias formas e estilos de representação da "vida como ela é". Uma terceira vertente é a intimista, o poder da memória em se fazer literatura, tanto a memória fragmentária das impressões pessoais (da infância, do tempo perdido, da inocência), intimismo cuja referência maior poderia ser Clarice Lispector, quanto a memória social, retomando os anos da ditadura numa polarização ainda sem distanciamento, e aqui Quarup, de Antonio Callado, seria o marco mais forte. Finalmente, aparece a literatura entendida como oficina do texto, o que normalmente se chama literatura experimental, um título em geral inadequado pelo que sugere de inacabado, ou mesmo apenas mal-acabado: aquilo que se experimenta como treinamento ou exercício para se chegar, quem sabe, ao objeto de arte. Há de tudo nessa gaveta; como pontos em comum, a concepção da própria literatura como o objeto principal do texto, a tendência a fundir prosa e poesia e o apagamento do sujeito psicológico, que cede lugar à presença mais fria da composição formal. Em geral, o leitor verá também os andaimes da obra enquanto ela se ergue, e, no extremo, a mensagem reiterada de que o que se está lendo é um objeto de artifício.

É exatamente esse o território em que se move o romance "Não há nada lá", de Joca Reiners Terron, menção honrosa do concurso, quando então levava o título mais desconcertante de Retrato da Serpente menos a Presa. Numa composição bem amarrada, Joca Terron coloca juntos o célebre escritor beat William Burroughs (aportuguesado, não por acaso, como Guilherme Burgos), Raymond Roussel, um parisiense exótico que vivia num trailer, o brasileiro Torquato Neto, um certo Isidore Ducasse, que ficaria famoso como conde de Lautréamont, o poeta Arthur Rimbaud, o mítico pistoleiro Billy-the-Kid, o estranhíssimo poeta inglês Aleister Crowley e ainda Lúcia, a menina que ouviu com os irmãos os segredos de Fátima. Na edição em livro, o autor acrescentou um capítulo em que se comentam as biografias dos personagens, o que representa mais um registro de linguagem na composição - o texto que se comenta a si mesmo, com o jargão da enciclopédia.

A narração se inicia com o aparecimento fantástico de um tesseract, uma forma geométrica que William Burroughs vê no dia de sua morte, a partir de um livro que ele joga para o alto: "Não me parece ainda haver tempo para você neste mundo, meu velho. A perfeição, simplesmente, de uma hora para outra, deixou de ter lugar para nós. Me pergunto como seria a morte do livro. Diga-me, como morrem os objetos perfeitos?" Daí em diante, montando azulejos cortados com precisão no tempo e no espaço, tendo sempre o livro mágico como referência, Terron promove o encontro do Papa Pio XI com Raimundo Roussel em 1926, faz Torquato Neto conversar com Jaime Hendrix em 1970, flagra Ducasse no compartimento de um trem em 1867 furtando um exemplar de As Flores do Mal, "com um brilho fantasmagórico na capa", de um "pederasta ancião", assiste ao encontro de Rimbaud com o xerife Patrício Garret em 1881, vê Alistério Crowley se aproximando de Fernando Pessoa em 1930 e daí por diante. Em suma, a narração de "Não há nada lá" é um canto de paixão à literatura - "um viva à literatura, dizia o Bispo, somente a literatura, fundadora da realidade que conhecemos através da linguagem, construtura de mundos". Ponto de confluência das histórias intercaladas, o terceiro segredo de Fátima, confessado a um certo bispo de Macau, vai explicar por vias tortas o sotaque português na tradução dos nomes estrangeiros.

Há uma graça que percorre o livro, fruto do cruzamento entre as situações surreais e o tom formal do narrador, de onde emerge por contraste uma hilaridade paródica. As convenções sociais tipificadas na linguagem vão se cobrindo sempre de caricatura: "O Santíssimo Padre Pio XI, meneando com precisão a isca lançada ao seu anfitrião, retirou uma espécie de sutiã que envolvia suas tetas volumosas e, sem mais delongas, mergulhou na espuma da banheira, deixando apenas a monumental barriga à altura da superfície, cabeçorra de um cachalote esguichando água no início de uma dança do acasalamento."

A literatura de Terron é escancaradamente lúdica - Não há nada lá é um texto que diverte e se diverte - e, como sinal de sua geração (Terron nasceu em 68, quando o sonho, de fato, acabava), percorre todas as linguagens como quem brinca, sem se queimar com nenhuma. Assim, sua ponte para o passado salta as duas últimas décadas e reencontra, por exemplo, Cortázar e seus jogos de armar, no que eles têm de mais pesado (a dimensão ideológica). Do ingrediente mais leve, ressoa algo dos "modos de usar" de Georges Perec, a frieza puramente sintática, mas prazerosa, de armar o impossível. Nesse jogo, o controle remoto do autor olha em todas as direções ao mesmo tempo, o que é outro traço contemporâneo. A mitologia das gerações malditas, de Baudelaire a Burroughs, é agora retomada sem o vínculo terrível com a revolta essencial, visceral, sem acerto ou compromisso possível, que afinal está na origem da droga, do suicídio, da marginalidade assumida, da utopia, da negação, da inadequação absoluta ao mundo da ordem. É um imaginário já sem a dimensão da performance, figura de vitrine, atravessado pelo humor e não pela tragédia, que se realiza não no risco da praça pública, mas no limite da página. O livro, o objeto perfeito que Burroughs arremessa ao céu, a forma, é o ideário de referência, a marca de uma encruzilhada entre a memória e o futuro. Uma encruzilhada que vai, no embalo do fascínio pelo fragmento, assumindo o emprego paródico de linguagens estratificadas, dos chavões convencionais à gíria cotidiana, até se apropriar dos grafismos, flertar com a informação visual como reforço do texto, e mesmo com a "informação real", uma espécie de nota de rodapé em forma de verbetes de enciclopédia.

O que se destaca no livro é o fato de que, mantendo-se fiel à exploração da experiência, Terron não se perde nela e, de fato, não abdica de um eixo a partir do qual todo o resto ganha substância. E, como toda boa literatura, mesmo quando imatura, ele nos diz menos sobre o seu assunto e muito mais sobre a diferença do seu olhar.


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