Quebra-cabeça africano
Folha de S. Paulo, Mais!, 1/07/2007
No moçambicano Mia Couto e no francês Le Clézio, passado colonial condiciona o futuro do continente
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A África continua sendo o "coração das trevas" da consciência ocidental. Desde a síntese criada pelo olhar estrangeiro de Joseph Conrad, em sua obra célebre, parece que nenhuma inocência será mais possível na recriação literária do continente -a chaga do colonialismo vai sangrar para sempre.
Aos olhos difusos do Ocidente, a África resta como um quebra-cabeça político e econômico e uma espécie de "não-lugar" literário; e, para os africanos que escrevem, o próprio ato da escrita carrega a sombra da Europa, a memória de uma abstração iluminista que, em si mesma, significaria a negação dos seus mitos de origem.
Dois exemplos recentes nos apresentam essas perspectivas diferentes, a nativa e a estrangeira. Do moçambicano Mia Couto, o romance "Terra Sonâmbula" representa a tentativa de um ideário literário autóctone (o que supõe a presença mitológica de uma "nação" que dê conta das terríveis diferenças internas) e também a expressão da língua portuguesa no continente.
E, em "O Africano", o escritor francês Le Clézio relata, num texto confessional, a vida de seu pai, um médico inglês que dedicou a vida a tratar de doentes no meio da selva, a serviço da Inglaterra. É uma crônica européia.
"Terra Sonâmbula" é um livro que, curiosamente, tem mais parentesco com a tradição, a fala coloquial e a sintaxe brasileiras do que com a retórica lusitana.
O leitor brasileiro se sentirá em casa e pensará imediatamente em Guimarães Rosa e em Mário de Andrade, com toques de "Macunaíma".
Suas frases curtas e em ordem direta simulam uma oralidade saborosa de raiz popular que se transfigura por meio de neologismos, elipses e lances poéticos, contando duas histórias que se cruzam.
O jovem Muidinga e o velho Tuahir, sobreviventes de uma guerra não definida, encontram um ônibus queimado cheio de mortos. Ao enterrá-los, acham outro corpo e, ao seu lado, uma mala onde há cadernos escolares, "gatafunhados com letras incertas" - são os cadernos de Kindzu, que pontuarão o romance.
A leitura que Muidinga faz desses cadernos abre a outra história, em que, paralelamente, Kindzu vai atrás de seu destino, depois de ouvir um curandeiro: "Não é o destino que conta mas o caminho".
No caso de "Terra Sonâmbula", repetindo o narrador, "não é a estória que fascina mas a alma que está nela".
Todos parecem habitantes de um não-país - só em raros momentos aparecem referências indiretas a Moçambique -, vítimas de uma guerra que, por não se explicitar jamais, torna-se parte mítica do mesmo mundo mágico em que se movem os vivos e os mortos.
Escrita estrangeira
A linguagem suaviza a realidade, fazendo do próprio horror a face de um sonho. O registro "realista", quando surge, é submetido ao isolamento da linguagem autocentrada - a poesia é o toque de Midas que arranca a prosa do chão, um chão difícil de enfrentar, como o narrador confessa: "Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África".
Nessa frase temos uma boa síntese de uma escrita condenada a se ver perpetuamente como estrangeira.
"O Africano" é um relato não-ficcional, ilustrado com fotos marcantes em preto-e-branco, mas é o peso dos recursos literários que lhe dá força narrativa.
Dois olhares: um menino branco que, aos oito anos, chega a uma região onde a humanidade "se constituía unicamente de iorubás e ibos" e ali encontra o pai desconhecido, separados que foram pela Segunda Guerra Mundial; e um pai duro de aceitar - intolerante, autoritário, religioso (sua única leitura é a "Imitação de Cristo").
Culpa perpétua
Como um personagem de Conrad, ele parece viver uma culpa perpétua: "A autoridade e a disciplina até os limites da brutalidade", sintetiza o filho.
Médico recém-formado, depois de um tempo na Guiana enterrou-se para sempre na África dos protetorados ingleses -"uma sociedade que (...) se arquitetou em castas, lugares reservados, proibições, privilégios, abusos e lucros".
A expiação era também viver esse horror branco: um homem que fugiu da Inglaterra "não podia senão pôr para fora, num vômito, o mundo colonial e sua presunçosa injustiça, seus "cocktail parties" e golfistas uniformizados, sua domesticidade, suas amantes de ébano prostituídas aos 15 anos (...) e as esposas oficiais bufando de calor".
O médico vive integralmente o fascínio da África e o rigor de seu trabalho, fazendo de tudo, "do parto à autópsia", tratando de "leprosos, vítimas de malária ou de encefalite letárgica", dos "ventres dilatados dos cancerosos, aquelas pernas cheias de feridas, deformadas pela elefantíase", das "crianças envelhecidas por carências" e negociando sua autoridade médica com os desconfiados curandeiros das aldeias.
A África do filho que narra é uma criação do seu pai, com quem vive uma invencível estranheza. Sob uma espécie de "armadura rígida", o pai é um homem "inevitavelmente estrangeiro", alguém que se escolhe estrangeiro, talvez sob a ilusão de que, se entregando à África tão completamente, ela acabasse por aceitá-lo como africano.
A tragédia estará nessa descoberta - o que a África pós-colonial pode dar ao homem branco é uma espécie de limbo, "nestes dias"-, e aqui retomamos "Terra Sonâmbula", de Mia Couto - em que "uma arma é que faz a vida".
O médico, o pai do narrador descobrirá ao fim da vida, "não passa de um agente a mais do poderio colonial, não diferindo do policial, do juiz ou do soldado". O homem que "tinha sonhado diante dos mapas" e se definia como africano depois da tragédia de Biafra já não sonha e "entra num obstinado mutismo que o acompanhará até a morte".