|
Acidentes de Percurso
Folha de S.Paulo, Mais! 28/10/2001
A escuridão e o mel, de Giovanni Arpino
Cristovão Tezza
Na Itália, um jovem recruta de 20 anos é encarregado
de acompanhar um capitão cego e sem a mão esquerda
de Turim a Nápoles. O olhar que narra é o do jovem,
de quem sabemos apenas o apelido, Ciccio, criado pelo próprio
capitão Fausto, a presença absoluta: é um
homem intratável, estúpido, grosseiro, às
vezes patético, de um egoísmo brutal e ao mesmo
tempo esquivo. Um arquétipo da não-comunicação
e uma súmula de todos os preconceitos miúdos do
dia-a-dia. Qualquer ameaça de "bons sentimentos"
é logo esmagada pela mão de ferro do capitão
- como quando ela desce violenta sobre um copo onde se debatia
uma borboleta amarela. Diante de Fausto, o jovem narrador, discreto
e suave como uma respiração, sutil até mesmo
no predomínio da frase curta e das falas entrecortadas
que ele nos representa, vai seguindo uma rota de sustos, vivendo
na imagem bruta do capitão a sua viagem para a vida adulta.
Quem nos conta a história ainda não é ninguém,
mas sente na presença de Fausto a possibilidade de se reconhecer,
pelo bem e pelo mal. Nessa tênue suspensão, nesse
momento de indecisão e de passagem, faz-se a história.
Essa é a situação única em que se
sustenta o romance A escuridão e o mel, do escritor italiano
Giovanni Arpino (1927-1987), lançado agora numa edição
ilustrada com grafismos de Luis Paulo Baravelli tendo por tema
os cinco sentidos e com uma introdução de Silvia
La Regina sobre o autor. Se Arpino - que além de escritor,
foi um ativo jornalista, crítico e roteirista de cinema
- só é editado agora no Brasil, seu romance chegou
antes pela via do cinema; há uma adaptação
italiana (Profumo di donna), com Vitorio Gassmann no papel
principal, cujo carisma acaba chamando a si o filme inteiro, e
uma refilmagem americana (Scent of a woman), muito ruim,
em que o roteiro e um Al Pacino canastrão transformam essa
bela história numa gororoba edificante. Em ambos os casos,
como sempre, o livro é muito melhor.
A viagem de Ciccio - porque Fausto, a rigor, não sai do
lugar, um cego no escuro - é a situação única
da narrativa, mas forte o suficiente para sustentá-la.
O romance se faz sobre uma sucessão de pequenos acidentes,
todos fragmentários, seguindo a pura seqüência
do tempo, não da intriga: a grosseria de Fausto a um vizinho
do camarote de trem ("E eu não pretendo saber o seu
nome inútil. Melhor não pronunciá-lo. Seja
anônimo. É melhor para o senhor!"), a compra
de todos os bilhetes de um cego para que ele saísse de
perto ("Compre aqueles bilhetes dele. Todos. Rápido!
Faça-o dair dali!"), a exigência de que desligassem
a música ambiente ("Perdi os olhos e uma mão
em nome deste maldito país. Sim ou não? Agora querem
que eu perca também os ouvidos?"), a provocação
a um leão na jaula para ouvir-lhe o rugido ("Tente
fazer com que ele se mexa. Que se enraiveça. Cristo, que
ele se faça ouvir!"), o mau-humor minucioso e defensivo
às vezes se travestindo de uma sombra de filosofia barata
que também não se leva a sério. Até
a gentileza, quando aparece, é excludente: "Você
não está comigo para ser carregador. Chame um lá
fora: eles nasceram para isso".
Em alguns instantes, a técnica de Arpino tem a nitidez
de um fotograma em preto e branco do realismo italiano, como na
cena em que Fausto se encontra no quarto com uma prostituta, e
na cozinha, enquanto espera, Ciccio conversa com a filha da mulher,
que quer ganhar um sorvete. E um saboroso anticlericalismo, também
italiano, aparece quando Fausto espicaça seu primo padre:
"Mas está dizendo verdadeiras tolices. Ser útil.
Humanidade. O próximo. Devaneios de solteirona. Se fosse
assim, melhor seria ser cura, no campo. Mas um cura típico,
com a barriga, a chácara, o sótão cheio de
salames e assim por diante". E pouco adiante: "Já
que tem tanta vontade de se martirizar, vá para a África.
O mundo está cheio de Áfricas e associações
de deficientes. Criadas exatamente para salvar e consolar as almas
atormentadas de vocês".
O único elemento de intriga será também a
fraqueza do texto: um revólver que aparece no início
reaparece no fim, dando-lhe um desfecho convencional que, se não
é óbvio, é difuso e mal acabado - mas então
já estamos tão envolvidos pela figura de Fausto
e seu poder de nos fascinar pelo avesso que a relativa inconsistência
das últimas páginas não nos incomoda. O final
tem um ar existencialista, datado dos anos 60 - o tédio,
o absurdo, o sem-sentido da vida, quando pensada em abstrato -,
em contraste com o sentido miúdo, brutal e inescapável
dos gestos concretos do dia-a-dia que são a força
do livro. O clima vago se cria a partir da personagem Sara, uma
adolescente voluntariosa apaixonada por Fausto, mas também
ela uma sombra idealizada no escuro, em meio a uma apenas longínqua
ambigüidade erótica, de que Ciccio participa. Em qualquer
caso, a figura de Fausto não permite que nada cresça
em sua volta, um poder que o narrador - e o leitor, com certeza
- respeitará até o fim.
voltar
|