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Resíduo de utopia
Folha de S.Paulo, 29/7/2001 - Mais!
Terra Nua, de John Berger, inaugura a trilogia
do escritor e crítico de arte inglês sobre a vida dos
camponeses nos Alpes franceses
Cristovão Tezza
"A vida de trabalho no campo é uma vida dedicada
à sobrevivência. Talvez seja essa a única
característica inteiramente comum aos camponeses de todos
os lugares." Assim o ficcionista e crítico de arte
inglês John Berger, nascido em 1926, abre a introdução
de "Terra Nua", o primeiro volume de sua trilogia sobre
a vida rural, de 1990, lançado agora pela editora Rocco,
que dele já havia publicado "Modos de Ver", sete
ensaios sobre a natureza ideológica do olhar na pintura
e na publicidade.
Agora se trata de uma obra de ficção - um conjunto
de contos mais ou menos interligados sobre a vida camponesa nos
Alpes franceses, separados por curtas imagens fragmentadas em
versos -, mas a apresentação do livro deixa clara,
também, a sua intenção documental e mesmo
diretamente solidária: "Solidariedade sim, porque
foram homens e mulheres assim que me ensinaram o pouco que sei".
O tratamento ficcional do universo agrário tem sido um
dos campos minados da literatura. Muitas vezes, é só
um convite ao mito e à mistificação; no limite
da caricatura, é a idéia de que a verdadeira felicidade,
no exemplo brasileiro, seria uma casinha de sapé à
beira de um rio, onde se encontra, de pés no chão
e sem camisa, o "homem autêntico" - essa construção
idílica sustentada justamente por aqueles que vivem no
ar-condicionado, com um controle remoto na mão e a internet
na veia. O "exótico" é a um tempo a definição
de uma suposta autenticidade nacional e a sua jaula.
Na passagem violenta do mundo rural para o mundo urbano fica-nos
o resíduo (e o remorso) de uma "pureza" cíclica
e familiar, regida não pela abstração racional
dos Estados, regulamentos e leis que igualariam a todos, mas pelos
laços de parentesco, das crenças, da proximidade
da terra, da ignorância transformada em magia, da vida inteira
ao alcance da mão e do olhar, a sua pequena eternidade:
"Você desce da floresta ao anoitecer e um cachorro
está latindo no povoado. Há um século, no
mesmo local, na mesma hora do dia, um cachorro latia ao ouvir
um homem descendo da floresta, e o intervalo entre as duas ocorrências
não é mais que um intervalo no latir", lembra
o narrador de "Terra Nua".
Idealização impossível - A utopia
de Berger, entretanto, é outra. Ele tem nítido,
desde o início, que qualquer idealização
do modo de vida camponês é impossível: "Num
mundo justo, semelhante classe não mais existiria".
Sim, e provavelmente a vida camponesa "clássica"
não existirá mais em breve, confinada cada vez mais
aos grotões perdidos no mundo e à margem da história.
O que ele nos lembra não é simplesmente o meio de
produção, mas o peso de sua cultura: "Imaginar
que os milhares de anos da cultura camponesa não deixaram
frutos para o futuro (...) é negar o valor de uma grande
parte da história a demasiadas vidas. Nenhuma linha de
exclusão pode ser assim traçada na história,
como se fosse uma linha a fechar uma conta encerrada". Nessa
dupla consciência - o reconhecimento de uma cultura que
nos pertence, mas com a recusa de sua mistificação
- está a qualidade do livro de John Berger e a beleza de
seu texto.
O narrador dos contos - todos girando em torno da dureza do trabalho,
das relações familiares, do aprendizado infantil,
do sexo, da dimensão permanente da morte como um enigma
próximo a resolver - tem a exata dose de simpatia por aquele
mundo para criar a empatia do leitor sem, entretanto, derramá-lo
na mentira. Homens e animais servem-se de referência mútua,
não pelo grotesco naturalista, mas pelo espanto de alguma
inocência, que, sempre residual, acaba por definir os personagens.
Em "O Valor do Dinheiro", o abismo entre o mundo urbano
e o mundo rural é ilustrado, numa ponta, pelo trator comprado
pelo filho (uma agressão ao pai: a função
dessas máquinas "é nos aniquilar") e,
noutra, pelo sequestro bisonho de dois fiscais do Departamento
Especial de Investigação de Sonegações
do Ministério da Fazenda, que multaram o pai pela produção
de destilados acima do permitido. O que o velho quer é
apenas "dar uma lição" àqueles
homens, mas tudo se fecha num beco sem saída: "A coisa
acaba em derrota porque você só consegue se vingar
de quem compartilha as suas coisas. (...) Eles jamais saberiam
o motivo da nossa vingança".
Em outro ótimo momento, "As Três Vidas de Lucie
Chabrol", que relembra a história de uma anã
ao longo de sete décadas - a figura clássica da
"louca do vilarejo" -, a narração se encontra
com os limites da poesia sempre sem perder a segurança
do texto: vivos e mortos coexistem num tempo que só pode
ser compreendido como cíclico. A terra inteira é
cíclica, e fora dessa energia estamos nus.
Talvez aqui se encontre a força maior do olhar de Berger,
o fato de que o desaparecimento da cultura camponesa é
antes uma nudez que uma tragédia, uma nudez ética
(a velha questão: não temos essência nenhuma)
que a abstração urbana, o mundo sem raízes,
ainda não conseguiu preencher.
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