Volúpia da palavra jovial
Folha de S. Paulo - 01/04/2001
Desperta e lê, de Fernando Savater

Cristovão Tezza

O título é estranho: "Desperta e Lê". O imperativo talvez induza o leitor a imaginar que tem nas mãos uma versão secreta da Bíblia, a serviço de alguma seita militar - para quem ama os livros, há uma incompatibilidade sutil entre o imperativo e a leitura.

Mas não se trata de uma ordem unida, nem do pragmatismo pateta das auto-ajudas que abundam no mercado. "Desperta e Lê" é uma coletânea mais ou menos descosturada de artigos e crônicas do prolífico escritor espanhol Fernando Savater, que discutem temas tão díspares como a ética de Spinoza e o filme "Tubarão", de Spielberg. Com mais de 40 livros publicados, Savater já se definiu em uma entrevista como um "diletante" do pensamento, "talvez um philosophe à maneira francesa (com minúscula e ph)". Tendo como projeto juvenil "escrever como todo mundo", sofrendo na carne a ditadura de Franco - sua carreira de professor foi interrompida com a expulsão da Universidade Autônoma de Madrid -, e abraçando cedo o jornalismo, Savater viveu ao mesmo tempo um trânsito sólido pela filosofia, traduzindo o romeno E. M. Cioran, uma de suas grandes admirações, e pensadores como Voltaire e Diderot. No Brasil, a Martins Fontes publicou alguns de seus livros, como "O Valor de Educar" e "Ética para Meu Filho", títulos que talvez expliquem o resíduo pedagógico desta coletânea; a sua linguagem muitas vezes viaja da "descrição" - a análise fria dos fatos da cultura -, para a "prescrição", o tom moralizante do professor.
Savater é desses escritores que sentem a volúpia da palavra, um dom que tanto pode arrastar prazerosamente o leitor quanto arrastar o próprio autor, que freqüentemente avança sem rumo na correnteza dos pensamentos e das citações. No caso dele, pela força jornalística do texto, a correnteza será sempre leve, e as citações terão aquele ar inocente de jogo literário em que a História, suprimida, permite colocar Platão ao lado de Tarzan sem maiores danos. "Desperta e Lê" divide-se em quatro partes ("Você tem razão", "Afeições cinematográficas", "Que a voz corra" e "Os mortos"), numa estrutura bastante livre. Há de tudo ali: breves ensaios sobre a ética, em que se sobressai uma de suas preocupações centrais, a oposição entre universalismo e nacionalismo; relatos históricos, como a saborosa história do náufrago que no século XVI lutou pelos maias contra seus conterrâneos espanhóis; resenhas sobre autores célebres, como Voltaire, e sobre outros que nos dizem pouco, como Rafael Sánchez Ferlosio; comentários apaixonados sobre filmes e atores - Savater, como quase todo mundo, leva o cinema a sério -, defendendo o entretenimento como expressão cultural. Nesse terreno, Savater resenha escritores da formação de uma imensa geração de leitores, como H. G. Wells, no passado, e Michael Crichton, nos dias de hoje. Em alguns momentos, a ligeireza paga o pedágio ao lugar-comum ("O importante, o urgente, não é educar para o sexo, mas educar para o amor"), mas quase sempre seu texto nos recompensa pela graça e poder de sugestão, mesmo quando não concordamos com ele.

Um bom exemplo da sua estratégia está em "Os sonhos de Hitler Rousseau". Para elogiar um livro do escritor basco Jon Juaristi, Savater lembra um curioso candidato à prefeitura de Bogotá chamado Hitler Rousseau: "Pois em qualquer nacionalismo (...) há muito do oxímoro encerrado nesses dois sobrenomes sobrepostos. Algo de prístino, igualitário e essencialmente bondoso, acompanhado de algo persecutório e excludente; a utopia originária do melhor como justificação para a atualização lamentável do pior; a nostalgia de uma intenção que se torna historicamente má à força de evocar seu direito genealógico à bondade indiscutível". Pelo seu estilo, que olha para todos os lados ao mesmo tempo, até as referências a escritores para nós desconhecidos passam a ser interessantes pela tese que evocam, pela imagem que criam ou paralelo que traçam.

O eixo filosófico do olhar de Savater transparece nítido na primeira parte do livro, em que comenta as implicações éticas dos pressupostos do particular e do universal e faz uma defesa do humanismo, aparentemente simples ("é preciso reclamar uma política humanista em escala planetária"), mas sempre participativa: em última instância, é apenas nesse terreno prático que o pensamento faz sentido para Savater. Daí a sua mal-disfarçada má vontade com os filósofos maiores, os construtores de sistemas, como Hegel ou Heidegger, a quem faltaria "jovialidade" - o que é uma forma engraçada de justificar o fato de não ser um deles. Mas as eventuais imprecisões, inerentes ao comentário jornalístico, como o de identificar "universais morais" com "universais lingüísticos" - se de fato há universais lingüísticos, eles serão abstrações gramaticais desprovidas de valor, enquanto universais morais só têm sentido como categorias de valor, portanto culturais e intencionalmente construídos - não tiram de Savater as qualidades de seu texto. Os que não gostam dele (e não são poucos, a crer na auto-defesa que implicitamente percorre o livro) deveriam menos maldizer os seus pontos de vista e mais lamentar que não haja um número maior de jornalistas com a sua formação e o seu talento generosamente à disposição dos leitores.



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