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Despedida em Veneza, de
Louis Begley
Folha de S.Paulo, Mais! - 15/10/2000
Cristovão Tezza
O homem que está para morrer é daqueles temas absolutos
da ficção - em certo sentido, podemos dizer que
é o próprio objeto da literatura.
Modernamente, quando cada vez menos a chamada vida eterna é
uma referência concreta do mundo escrito, a interrogação
do vazio da morte ganha um apelo irresistível. E difícil,
é claro, tantas são as tentações de
sair pela tangente cinematográfica do sentimentalismo,
de um lado, ou do pragmatismo alienado fingindo que não
temos nada com isso, na outra ponta. Também comparativamente
a tarefa é árdua, depois de A morte de Ivan Ilitch,
de Tolstói, novela de 1886 que parece ter sido escrita
ontem, como a balizar o limite último de uma obra de arte
ao tratar do assunto. Se acrescentamos ao tema a paisagem também
acachapante de Veneza, o menor dos problemas será a sombra
de Morte em Veneza, de Thomas Mann. Com tantos assuntos no mundo,
por que escrever logo sobre um homem que resolve morrer em Veneza?
Pois foi isso que decidiu fazer o escritor americano Louis Begley,
em "Despedida em Veneza" (Mistler's Exit). Além
do tema arriscado, chama também a atenção
o fato de que Begley é uma espécie de outsider,
às avessas, do mundo literário. Sócio de
um rico escritório de advocacia em Nova York, a Debevoise
& Plimpton, e escritor tardio que começou a ser reconhecido
nos seus 60 anos de idade, Begley teria mais semelhança
com um personagem de um filme jurídico-policial do que
com um escritor. Pelo menos na perspectiva brasileira: um homem
rico que escreve sobre ricos, produzindo não roteiros de
segunda, mas literatura de primeira. Mais uma razão para
ler "Despedida em Veneza": como no Brasil os ricos só
são consistentes nas páginas policiais (talvez porque
os nossos escritores somos pobres demais para conhecê-los)
esse livro nos dá oportunidade de inverter o ponto de vista.
Begley nos apresenta um personagem, filho e neto de banqueiros,
que transita pelas filiais internacionais de sua agência
de publicidade e em cujo rol de culpas não consta o fato
de ser rico.
Na primeira cena, nosso herói Mistler descobre que tem
poucos meses de vida. Entre se encher de tubos num hospital e
"sair à francesa", ele decide pela última
hipótese. E resolve fazer uma viagem solitária a
Veneza para pensar na vida e preparar, pragmaticamente, os detalhes
de sua morte: a herança, o destino de sua firma, o futuro
da família, apenas mulher e filho. Nesse início,
Begley corteja perigosamente o lugar-comum; em algumas cenas,
quase que vemos Anthony Hopkins (digamos, para supor o melhor)
levantando-se melancólico à mesa do jantar da amiga
Anna, com aquela fachada bem produzida de um filme que simula
profundidade e se reduz a nada assim que termina.
Mas é aqui que a imensa superioridade da palavra escrita,
nas mãos de Begley, contra todas as probabilidades, transparece.
A viagem de Mistler em direção à morte evita
todas as tentações sentimentais, e, embora filha
do poderoso realismo americano do século XX, cria, com
traços sutis e delicados de aquarela, um solo literário
de alta qualidade.
Tecnicamente, a narração encontra o tom adequado.
O narrador vê o mundo apenas pelos olhos de Mistler, mas
ao mesmo tempo não é ele - o que dá ao texto
o equilíbrio exato entre a empatia e o distanciamento.
Todas as figuras que circulam em torno de Mistler, no passado
de sua vida ou no presente sufocante de Veneza, vão se
reduzindo a fantasmas, seres incompletos, com os quais a cada
minuto transparece a absurda impossibilidade de comunhão.
Os temas da vida do personagem - a traição, a amante
do pai, a namorada que ele nunca teve, a fotógrafa que
invade sua vida e desaparece, o ex-sócio, o sexo, a distância
do filho, o sucesso - vão inapelavelmente se fragmentando
e se esfarelando diante da proximidade da morte (e da dor física);
mas, ao mesmo tempo, são tudo o que Mistler tem. Toda transcendência
terá de contar com essa memória, e só com
ela: o problema é que Deus não existe, e não
há ginástica mental capaz de torná-lO convincente.
Também aqui a intuição técnica se
revela: ao recusar as marcas tradicionais de diálogo (aspas
ou travessão) e fundir freqüentemente o texto do narrador
à fala dos personagens (deixando nítida a fronteira,
entretanto, para não distrair o leitor do que realmente
interessa), a escrita descobre o seu ritmo intimista, em que a
voz alta é apenas a extensão superficial da voz
silenciosa que diz quem somos, e em que a memória não
se transforma num bloco fechado e monolítico de referências
biográficas. Ao contrário, acompanhamos Mistler
como ele mesmo se acompanha: à deriva de sua própria
vida.
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