Limites de uma poética mínima
Folha de S. Paulo, Mais! - 9/7/2000, p.23
Trouxa frouxa, de Vilma Arêas

Cristovão Tezza

Uma certa literatura formalmente minimalista, de inspiração prosaica mas com forte parentesco com a poesia, parece se consolidar como gênero no Brasil, contando já pelo menos com uma presença clássica, Dalton Trevisan, cujos mini-contos explosivos e brutais levam ao limite o potencial literário do mínimo sem se transformar na mera confissão pessoal, no aforismo ou na pura anedota. Nessa corrida de sete metros, manter a distância para relativizar a prosa parece ser a regra de ouro; ou, pelo menos, garimpar alguma estatura poética quando as palavras escritas são simples e prosaicamente as nossas.

Esse é o difícil terreno em que se aventura a ensaísta e ficcionista Vilma Arêas com "Trouxa Frouxa" (Companhia das Letras), um breve exemplar de 82 páginas onde se distribuem 33 textos curtos. Há de tudo um pouco nesta coletânea, de tom predominante coloquial - mais pessoas que falam meio ao acaso que um narrador convencional ou formalizado -, mergulhando aqui e ali no isolamento das imagens poéticas. Pela própria natureza do gênero, nada chega a tomar corpo; o limite da nitidez é a primeira e fugidia imagem, quando então viramos a página para outra impressão.

A visão de mundo que emerge do livro é sempre tolerante, quase idílica, às vezes sentimental. As sonoridades - "Particularidades se dissolvem num véu levíssimo de tecido claro" - suavizam as arestas do mundo fragmentário, difícil e inexplicável que o olhar narrativo encontra, principalmente quando se trata de laços familiares, pequenas cidades, mundos míticos ainda inocentes, como em "Boquinha" ("Trancou o enxoval a sete chaves no baú de folha-de-flandres") e "Ema" ("Suspendia a costura para ler e sonhar. A agulha picava os dedos, gotas de sangue se abriam no pano"). Às vezes, esse universo tranqüilizado pelo passado e pela poesia se corta sob outro olhar, como em "Grupos de família"; aqui, a memória sentimental, delicada, de retratos em preto-e-branco ("Procuro desesperadamente e em vão dois retratos muito pequenos"), súbita se vê objeto, quem sabe, da linguagem de uma dissertação de mestrado ("O interesse maior da foto, enquanto composição, traduzia-se na irredutibilidade dos dois grupos e na tensão de seu jogo de forças"). Em outros momentos, os mais fortes, o texto se concentra inteiro na força prosaica de uma cena e dela extrai sua linguagem e sua unidade, como no primeiro "Dudu" e em "Pássaro.doc" ("Do que restou, como compor um homem?").

O livro está impregnado de humor, às vezes direto, como no delicioso "Algaravia", que relata as desventuras de um Cientista Francês numa delegacia de polícia brasileira, e quase sempre delicado e sutil; a sua linguagem é incompatível com o trágico, o dramático, o irremediável, mesmo quando o assunto, de tão próximo, perde a dimensão estética: em "Acervo", a memória da tortura de nossa história fragmenta-se em pedaços de absurdo e referências avulsas - o horror, aqui, não encontra a sua palavra. Na fragmentação excessiva, o texto corre seu maior risco. Às vezes ele se assume uma criptografia pessoal (Décio de Almeida Prado sabia do segredo: a morta estava viva. Flora escreveu um livro chamado Teresa). Ou então, a fatia mínima de vida cai ou na lição de moral ("verde e amarelo debilóides da pátria vivem momentos propícios para se exibirem") ou na pieguice da infância, nessa tarefa de Sísifo, sempre maldita, de tentar ver a criança com a linguagem dela, como em "Nós" ("- Olha lá no céu, olha lá a unha que eu acabei de roer"). Em instantes, o fragmento é uma história inteira, ao modo de Trevisan, mas, nas mãos de Vilma Arêas, sempre mais suave: "Assim como eu gosto da minha cachaça ela gosta de sofrer".

Não são os detalhes que lemos, entretanto, em "Trouxa Frouxa", mas a intensa unidade que ressoa em todos os pontos do livro. E qualquer "poética do mínimo" que porventura surja para definir esse gênero contemporâneo encontrará nele um bom exemplar.



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