A CONSTRUÇÃO DAS VOZES NO ROMANCE

Cristovão Tezza

Texto apresentado no Colóquio Internacional "Dialogismo: Cem Anos de Bakhtin"; novembro de 1995; Departamento de Lingüística da FFLCH/USP. Publicado em
Bakhtin, dialogismo e construção do sentido; Editora da Unicamp, 2001; organização de Beth Brait.


Antes de mais nada, quero agradecer o convite para participar deste Colóquio sobre Bakhtin, nessa mesa redonda sobre as vozes no romance. É um prazer rever amigos em São Paulo, e prazer redobrado conciliar a visita com conferências sobre Bakhtin, autor que tem sido minha paixão teórica. E o convite da amiga Beth Brait ainda abria uma brecha, talvez arriscadamente, para que eu fale não só como integrante do núcleo bakhtiniano da UFPR, liderado pelo professor Carlos Alberto Faraco, que nos anos 80 introduzia Bakhtin no Paraná, mas que também fale como romancista, de quem, talvez - agora digo eu, mais seguro - se exigirão rigores de outra ordem, de natureza, digamos, não tão científica.

Essa voz que fala - o romancista - talvez seja um bom ponto de partida para essa breve resenha sobre as vozes do romance. Não nos interessa aqui o 'autor biográfico', mas uma espécie de 'voz que escreve'. Para não confundi-la com as instâncias narrativas de raiz estrutural, com as quais Bakhtin (e, provavelmente, a realidade romanesca viva), tem a rigor pouco parentesco, vamos relembrar uma das primeiras obras de Bakhtin, uma obra inacabada dos anos 20, cuja edição póstuma, ao mesmo tempo em que tira algumas dúvidas sobre os conceitos básicos de Bakhtin, cria outras exigências teóricas na medida em que aprofunda questões de natureza estritamente filosófica, ainda à espera de uma exegese mais aprofundada. Refiro-me a O autor e o herói, um longo ensaio, aqui no Brasil incluído no volume Estética da criação verbal, da Editora Martins Fontes.

Desde já delimitamos nossa pequena ambição nessa palestra: trata-se apenas de extrair dessa obra complexa alguns pontos básicos sobre a estética romanesca que Bakhtin desenvolverá amplamente em obras posteriores.

Em O autor e o herói Bakhtin centraliza a discussão em um tema por si, um tanto problemático, pelo menos para uma certa tradição formalista: a relação entre o autor e o seu personagem - e o fato de esta obra também estar profundamente perpassada pelo desejo de estabelecer os fundamentos de uma estética (e de resto praticamente toda a obra de Bakhtin tem como referência necessária a questão dos princípios filosóficos, do ponto de partida epistemológico) revela como repugnava a Bakhtin a compartimentação mecânica do conhecimento. Não simplesmente por uma questão de método; mas porque, para ele, nenhuma significação é isolável. Em outras palavras: o autor é parte integrante do objeto estético. Mais heresia ainda: o espectador também o é.

Até aqui, sob certo ângulo, se tomamos as palavras em seu sentido corrente, nada de novo: parece que temos três instâncias isoláveis, o autor, a obra, o leitor, e inúmeras correntes e contra-correntes teóricas desde o século passado enfatizaram (ou têm enfatizado) um ou outro aspecto. Mas atenção: para Bakhtin, o autor-criador é componente da obra; ele não é simplesmente Fulano de Tal, que escreveu tal livro. E não é, também, uma instância narrativa abstrata, o narrador, não é apenas uma instância gramatical do texto.

Para Bakhtin, o autor-criador é a consciência de uma consciência, uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo; o autor-criador sabe mais do que o seu herói. Temos aí um excedente de saber, e um primeiro pressuposto da visão de mundo bakhtiniana, um princípio básico: a exotopia, que podemos simplificar definindo-a como o fato de que só um outro pode nos dar acabamento, assim como só nós podemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós, daqui onde estamos, temos sempre apenas um horizonte; estamos na fronteira do mundo que vivemos - e só o outro pode nos dar um ambiente, completar o que desgraçadamente falta ao nosso próprio olhar.

Ora, isso não é simplesmente uma classificação gramatical do autor e do seu personagem: o princípio da exotopia, é, em última instância, uma visão de mundo que tem conseqüências teóricas inescapáveis. Ele pode ser entendido, de fato, como o princípio dialógico bakhtiniano, que, a partir do conceito de signo e de significação - o conceito de linguagem substancialmente revolucionário de Bakhtin, fora do qual todos os seus outros conceitos parece que se reduzem a uma lista de novas definições estruturais - a partir daí abrange toda a atividade da cultura humana, ou, para usar uma expressão que lhe era cara, o 'acontecimento aberto da vida'.

A ambição filosófica de Bakhtin, de natureza totalizante e sistemática, transparece explicitamente nesses seus textos de juventude, os inéditos dos anos 20. É verdade que, até onde sabemos, ele não os desenvolveu completamente; mas também é verdade que, sob o ponto de partida desses textos filosóficos, toda a sua produção subseqüente se ilumina. E o que parece uma colcha de retalhos de interesses díspares - Rabelais, Freud, Signo, Romance - vai se revelar, cada vez mais, um mosaico de surpreendente unidade e coesão teórica.
Pelo princípio da exotopia, eu só posso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico, que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha palavra está inexoravelmente contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma, no universo bakhtiniano nenhuma voz, jamais, fala sozinha. E não fala sozinha não porque estamos, vamos dizer, mecanicamente influenciados pelos outros - eles lá, nós aqui, instâncias isoladas e isoláveis - mas porque a natureza da linguagem é inelutavelmente dupla. O que, em princípio, parece apenas uma classificação teórica aplicável à literatura ou à lingüística, um instrumento neutro, na verdade é uma visão de mundo: a natureza dupla da linguagem tem conseqüências filosóficas que se desdobram até mesmo, acho que não será exagero dizer, até mesmo à fundação de uma ética. Em O autor e o herói, aliás, transparece como Bakhtin extrapola as definições do campo estrito da estética para o universo da ética: isto é, o fato de que apenas um outro pode me dar acabamento, o fato de que eu sou organicamente incapaz de me ver por inteiro com certeza exige, também, uma resposta no universo da ética.

Voltemos à questão da voz romanesca. Para Bakhtin, um único e mesmo participante não pode ocasionar o acontecimento estético, que pressupõe por natureza duas consciências que não coincidem. Aqui é interessante observar como Bakhtin, de fato, funda uma estilística de substância não formal. Isto é, a tipologia do herói, ou, mais amplamente, a natureza da linguagem literária (tema que Bakhtin desenvolverá de forma multifacetada em suas obras posteriores) não decorre de uma classificação neutra de estruturas, ou de definições intrínsecas de formas lingüísticas, mas substancialmente de uma relação viva entre uma consciência e outra (lembrando, mais uma vez, que para ele cada uma dessas consciências nunca é organicamente única). Na linguagem estética, autor e personagem são duas consciências que não coincidem, mas essa não-coincidência não é nunca fixa ou estável; na verdade, da gradação sutil, da aproximação ou do afastamento que ocorre entre o autor-criador e seu herói, da relação viva e em grande parte irregular entre uma consciência e outra é que vão se criar os tipos de personagens e mesmo os estilos da linguagem. Talvez seja bizarro dizer desta forma, mas para Bakhtin o estilo não é uma forma, no sentido corrente da palavra forma, mas um comentário, no qual sempre estão presentes, no mínimo, dois sujeitos, em geral assimetricamente dispostos na guerra dos processos da significação.
Para Bakhtin, há uma limitação intransponível no meu olhar que só o outro pode preencher. Dessa altamente complexa rede tangencial dos pontos de vista - físicos e mentais - da vida humana, emerge o universo das vozes romanescas de Bakhtin, vozes, aliás, do ponto de vista interno, perpetuamente inacabadas, como inacabada é a vida nossa de todo dia, aqui e agora. Nas palavras de Bakhtin, "a vivência que o herói tem de seu corpo - corpo interior a partir dele mesmo - envolve-se em seu corpo exterior para o outro, para o autor, encontra sua consistência estética através da reação de valor deste" (p.78). Por essa razão, Bakhtin dirá (p.105) que "a forma [estética] é fundamentada no interior do outro - do autor, isto é, a partir de uma reação geradora de valores que são, por princípio, transcendentes ao herói e à sua vida, mas todavia ligados a ele".

E há ainda uma outra face da exotopia no processo de significação estética: a entidade que Bakhtin chamará de autor-contemplador, que também é componente da obra estética. Aqui podemos comparativamente lembrar o texto Discurso na vida e discurso na arte, assinado por Voloshinov e publicado em 1926, onde aparece a categoria do "ouvinte", que, nas palavras dele, "exerce influência crucial em todos os outros fatores da obra". O autor-contemplador de que falamos é, de fato, um componente externo da obra, é, em última instância, o leitor; já o ouvinte é interno, e diz respeito ao dialogismo implícito de todo enunciado. De qualquer modo, é visível o parentesco temático dos dois conceitos.

Também o autor-contemplador necessita de distância - é a sua exotopia que, ao fim e ao cabo, atualiza o objeto estético. Em páginas instigantes Bakhtin desenvolve o esboço de uma classificação do espectador como entidade estética, tomando como referência o teatro - talvez porque, no teatro, seja didaticamente mais visível ainda o fato de que é o olhar do espectador que cria o objeto, lhe dá uma unidade e um acabamento que nenhum de seus atores, vivendo a peça, isoladamente, é capaz de ter. E há algumas exigências para que o autor-contemplador adquira o estatuto de componente da obra estética. Por exemplo, a contemplação, ou a leitura, não pode se confundir com o devaneio, em que eu mesmo me torno o herói - nesse caso, o ato estético se transforma, por exemplo, em ato ético (quando numa peça infantil a criança grita avisando o mocinho que o vilão se aproxima...).

Mas a exotopia não é apenas um conceito espacial, a instância do olhar - é também, aliás inseparavelmente, um conceito temporal. O autor-criador está à frente, espacialmente de fora e temporalmente mais tarde do que o herói - do mesmo modo que o autor-contemplador, esse de modo mais radical ainda. É o excedente de visão, no tempo e no espaço, que dá sentido estético à consciência do outro, dá-lhe forma e acabamento, uma forma e um acabamento que jamais podemos ter por conta própria, na estrita solidão de nossa voz. Quando Brás Cubas escreve suas memórias, ele é um outro; ele é o olhar exotópico que dá acabamento estético ao Brás Cubas herói - é o excedente de visão, no tempo e no espaço, que dá sentido às suas memórias. Na obra-prima de Machado, a voz do autor-criador se consubstancia na voz do Brás Cubas morto, garante o olhar de fora, a âncora exotópica impregnada de valor, que dá sentido e consistência estética ao caótico e errático Brás Cubas vivo. Nas palavras de Bakhtin, que curiosamente parece falar de nosso Machado, "depois do enterro, depois da lápide funerária, vem a memória. Possuo toda a vida do outro fora de mim e é aí que começa o processo estético significante em cujo fim o outro se encontrará fixado e acabado numa imagem estética significante" (p.121).

Temos assim, nesta obra da juventude de Bakhtin, aqui grosseiramente resumidos, os conceitos básicos de sua visão estética, que em última instância são uma visão de mundo e uma concepção revolucionária de linguagem. As vozes do romance, em Bakhtin, estão, desde o primeiro momento, contidas na relação dialógica das consciências, ou ainda, primordialmente, na "consciência de uma consciência", como Bakhtin define o autor-criador. É desse ponto de partida sempre duplo - o signo sempre duplamente orientado de sua teoria da linguagem - que Bakhtin erguerá sua catedral teórica, os conceitos de monologia e polifonia e sua teoria do romance.

E são vozes necessariamente enraizadas na História. Aliás, podemos dizer que são vozes conquistadas num longuíssimo processo histórico de descentralização da linguagem, a lenta passagem de um mundo de valores centralizados e acabados, cuja expressão máxima estaria na epopéia clássica, para um mundo descentralizado de linguagens, o universo perpetuamente inacabado, a urgência do aqui e do agora. É assim que, em um dos seus textos sobre a gênese do romance (Questões de literatura e de estética, p.414), Bakhtin lembrará os diálogos socráticos como uma das formas embrionárias do gênero romanesco, não só pela presença central do diálogo, a voz viva do homem que fala, do coloquial imediato (tanto quanto permitiam as formas convencionais do grego clássico), mas principalmente porque neles está implícita a visão de um mundo inacabado, presente, em processo - "o ponto de partida é a atualidade, as pessoas da época e as suas opiniões".

Isso nos leva a outra característica da criação da voz romanesca - característica que pode ser uma resposta aos que condenam no romance justamente o seu traço "prosaico", aos que exigem dele o que ele não pode ser, sob pena de retornar ao mundo da linguagem poética em seu sentido estrito (tal como Bakhtin a entendia). É o fato de que a consciência de uma consciência, o autor-criador de que nos fala Bakhtin, a relação básica autor-herói que cria as vozes do romance, não pode destruir completamente a voz representada, a voz do herói. O outro conservará sempre, na linguagem romanesca, o seu grau de autonomia, que pode ser imenso, como nos concertos polifônicos de Dostoiévski, ou mínimo, como nas sátiras mais demolidoras - mas em qualquer caso a voz do outro, refratada pelo olhar do autor-criador, será reconhecível, estará presente, respirará em cada linha do texto. Se a autonomia do outro desaparece, desaparece, com ela, a linguagem romanesca.

Talvez esteja oculta nessa característica essencial da linguagem romanesca, que, antes de ser uma forma acabada e definível por sua estrutura formal, é um modo e uma intensidade de relação entre linguagens e visões-de-mundo, entre o autor e o seu herói, talvez esteja aí a semente de uma ética possível, de uma ética romanesca que resulte não da linguagem da ciência, em que o outro é um objeto, mas da linguagem romanesca, em que o outro, da mesma forma que eu, é também um sujeito, está vivo, e respira; falar do outro é, necessariamente, dar a voz ao outro; e, mais que isso, a minha forma está inextricavelmente ligada ao outro, e só pode ser completamente definida por ele, num caminho de mão dupla. Sob essa perspectiva, o romance, iluminado por Bakhtin com uma força e uma clareza que, definitivamente, nenhuma outra corrente teórica desse século teve, ganha um estatuto e uma dimensão que reduz a nada o lugar comum que, por várias décadas e sob vários nomes, têm cantado e decantado a morte do romance, ou do niilismo alegre dos que dizem que a única voz literária possível neste fim de século é a do pasticho. A valorização do romance, em Bakhtin, repetimos, não decorre da definição de uma forma acabada, como o soneto ou a écloga, mas da compreensão de uma linguagem romanesca em permanente troca com a linguagem viva e inacabada da vida cotidiana, no veio de um prolongado processo de descentralização da palavra.
Para encerrar - e, é preciso cuidado, talvez fale aqui mais o romancista, em causa própria... - vejamos como o próprio Bakhtin pode nos dar a chave de uma ética fundada generosamente na linguagem romanesca, ao descrever o processo exotópico da minha relação com o outro, da consciência que eu tenho do outro:

"O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento" (p.45).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______________. Freudism. New York: Academic Press, 1976.
______________. Questões de literatura e de estética. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1988.

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