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                Um olhar de Curitiba 
                 
                Cristovão Tezza 
                 
                Texto apresentado no auditório da Biblioteca Mário 
                de Andrade, em 11 de setembro de 2003, em São Paulo, no 
                ciclo de palestras Viagem pelas metrópoles brasileiras: 
                arte, história, política e cultura, coordenado 
                pelo professor Francisco Foot Hardman.  
                 
                 
               
              
              Minha convivência com a cidade de Curitiba está 
                completando 43 anos. Desembarquei lá aos oito anos, vindo 
                de Lages, Santa Catarina, em janeiro de 1961, e praticamente nunca 
                mais saí da cidade, exceto por alguns períodos de 
                aprendizagem em outras terras e cidades -mas sempre voltei a Curitiba. 
                Este meu olhar sobre a cidade é na origem, portanto, um 
                olhar estrangeiro, de alguém que, se sentindo integralmente 
                curitibano, como eu me sinto -e toda a minha literatura testemunha 
                isso- tem entretanto um pé para fora, um olhar de fora. 
              Mas este olhar de fora talvez seja mesmo um traço constitutivo 
                das nossas capitais, na medida em que o avanço da urbanização 
                brasileira nas últimas décadas foi inchando as cidades 
                maiores de estrangeiros, com todos os problemas e 
                conseqüências dessa história. Numa cidade maior, 
                numa cidade de prédios, numa cidade cuja extensão 
                já vá bem além do tamanho do nosso passo 
                e do nosso olhar, numa cidade sem horizontes, como em geral são 
                os centros urbanos, todas as relações de familiaridade 
                e de intimidade mudam de dimensão. 
              A cidade é um espaço abstrato. Nós nos movemos 
                menos pela contigüidade dos quintais, dos acidentes do terreno, 
                dos espaços de referência integrados no nosso dia-a-dia, 
                e mais por uma relação abstrata de deslocamentos; 
                vivemos como que num mapa de metrô; o ato de subir 30 andares 
                num elevador, percorrendo, digamos, centenas de famílias 
                cuja existência é apenas uma idéia sem rosto, 
                mas compactamente presente do outro lado da parede, de certo modo 
                define a geografia urbana, a sua lógica e o seu mundo. 
                Assim, ser estrangeiro é parte integrante da 
                natureza urbana. 
              Toda aquela essência bucólica, essência também 
                entre aspas, que vem definindo parte substancial da cultura de 
                um Brasil rural, familiar, integrado e permanentemente ao alcance 
                do olhar, do passo e da mão, como a fruta que se colhe 
                da árvore, o sino da tranqüila missa de domingo, a 
                praça como o espaço social do povo e de sua linguagem, 
                tudo isso, sabemos, não existe mais. 
              Na verdade, nunca existiu exatamente, exceto como um projeto 
                cultural, como construção de cultura -na verdade, 
                uma poderosa construção cultural que até 
                hoje tem marcas. Essa nossa suposta essência pastoril -de 
                fato, para sermos justos, trata-se de um projeto pastoril universal, 
                que em diferentes momentos da história, aos pêndulos 
                ideológicos, contrapõe o idílio da vida natural 
                à corrupção das cidades- é substituída 
                por outra construção da cultura, vinculada às 
                luzes de um homem mais abstrato, sem raízes, mas com muito 
                mais direitos e com muito mais liberdade, um homem mais solitário, 
                mas também mais poderoso, um homem que, em tese, habita 
                não mais o quintal da infância, mas a cidade universal. 
              Em tese, no nosso mundo novo realmente admirável, todas 
                as relações sociais mudam de natureza. Ninguém 
                está mais condenado a conviver com o vizinho, como duas 
                famílias que convivem há gerações; 
                ninguém mais está condenado a seguir sua natureza 
                ou o seu destino, como nos heróis épicos; a própria 
                idéia de obediência já não é 
                mais uma força natural, como a água 
                da chuva ou a luz do sol. A obediência, no mundo urbano, 
                expressa também uma relação mais intelectual 
                que emocional, a expressão de uma escolha -afinal, o que 
                define um cidadão é a sua liberdade, e a idéia 
                de liberdade tem de necessariamente abranger todas as esferas 
                da atividade humana, separando-se aí, de uma vez por todas, 
                para sempre, o mundo sagrado do mundo leigo. O mundo urbano é 
                regido pela cultura leiga -só pode ser leigo; uma cidade 
                sagrada é uma espécie de contradição 
                absurda. 
              Mas é claro que toda essa elucubração é 
                uma elucubração urbana: isto é, na vida concreta, 
                a cidade é um espaço de troca e de contaminações 
                de culturas, e essas culturas vivem permanentente em contraste, 
                pressionando umas às outras. Como por princípio 
                a cidade não é um lugar familiar, somos todos estrangeiros 
                nesta luta de linguagens urbanas. 
              Tudo para voltar a Curitiba e começar por defini-la como 
                uma cidade de estrangeiros. Certamente trata-se de um exagero, 
                mas para maior nitidez vamos começar por esse ponto. Localmente, 
                uma cidade de estrangeiros porque o notável crescimento 
                por que passou a cidade nos últimos 40 anos, passando dos 
                500 mil habitantes da minha infância para os quase dois 
                milhões de hoje, povoou-a, é claro, de gente de 
                fora, e em vários estratos sociais; pela beirada, como 
                costuma acontecer, a periferia curitibana foi se enchendo de favelas, 
                de ocupação de terrenos, de sub-moradias, de todo 
                esse espectro profundamente brasileiro que define nossas migrações 
                internas. 
              No miolo, por uma classe média de fora (como a minha família) 
                que veio se transferindo para Curitiba para nunca mais sair de 
                lá. Em Curitiba, chama a atenção, em vários 
                ramos e atividades profissionais, o número de não-curitibanos 
                na faixa hoje dos 40 a 50 anos -parece que, em Curitiba, ninguém 
                é de lá. Bem, os filhos desta geração, 
                da minha geração, já são todos curitibanos, 
                mas são filhos que aprenderam a ver a cidade pelo olhar 
                dos pais. De certa forma, é uma geração que 
                mantém ainda residual o seu toque de estranheza com relação 
                ao espaço em que vive. 
              E Curitiba é também uma cidade de estrangeiros 
                pela própria população que a formou: ucranianos, 
                poloneses, alemães e italianos terão grande relevância 
                na definição mais profunda da cidade. Desde já, 
                faço a ressalva de que esse é tema de sociólogos 
                e historiadores, que saberão definir com mais rigor do 
                que essas impressões a constituição curitibana. 
                Mas eu gostaria de marcar alguns pontos primeiros bastante nítidos 
                que nos definem genericamente -primeiro, o fato de os alemães 
                terem exercido, senão uma ostensiva ou exclusiva influência, 
                à maneira de algumas cidades catarineneses ou gaúchas, 
                uma densa influência na vida burguesa curitibana desde meados 
                do século XIX, estando presentes, como cidadãos 
                urbanos, em praticamente todos os ramos de atividades. Wilson 
                Martins, em Um Brasil Diferente (São Paulo: T. A. Queiroz 
                Editor, 1989), cita, por exemplo, um tribunal de júri do 
                século XIX constituído quase integralmente por sobrenomes 
                alemães, o que me parece bastante significativo. 
              Nesse sentido, a influência alemã teria sido muito 
                mais intensa, subterrânea e duradoura, do ponto de vista 
                da formação da cidade, por estar entranhada nas 
                atividades que afinal organizam os agrupamentos urbanos, do que 
                a influência polonesa, que em geral leva a fama (lembremos 
                Leminski se definindo como polaco, e as imortais polaquinhas 
                de Dalton Trevisan), somando-se com a influência talvez 
                ainda mais presente dos ucranianos. 
              Esse conjunto eslavo (mais os italianos, de que falaremos 
                adiante), que na origem formava o cinturão verde da cidade, 
                as colônias agrícolas, normalmente é visto 
                como definidor maior do nosso traço típico. Os eslavos 
                deixaram um substrato poderoso, é verdade: seria o nosso 
                lado rural, sempre forte, aquele contraponto sagrado que nos enche 
                de culpa e de sentimento de gravidade diante das coisas do mundo. 
                Assim, para defini-lo numa imagem, o curitibano seria uma espécie 
                de alemão protestante urbano com uma alma rural, católica 
                e eslava. 
              Em outro momento de seu livro, numa metáfora que me parece 
                muito feliz, Wilson Martins define Curitiba como a cidade da carteira 
                de identidade, e não do passaporte. Em suma: o curitibano 
                é, historicamente, um conservador. Para fazer um contraponto 
                contemporâneo que reforça essa visão, ouvi 
                recentemente numa entrevista um publicitário afirmar, comentando 
                o resultado de uma pesquisa, que o curitibano consumidor é 
                tipicamente alguém que não tem muito dinheiro, mas 
                tem patrimônio. Em suma, ele não arrisca nada. O 
                curitibano médio, nesta classificação impressionista 
                que fazemos aqui, é alguém que se estabelece em 
                algum lugar com a dimensão da eternidade, com a perspectiva 
                familiar, com o desejo de uma profunda estabilidade da alma. O 
                curitibano, desde sempre, parece que veio para ficar, tanto o 
                alemão e o ucraniano de um século e meio atrás 
                quanto o migrante dos últimos 50 anos, como eu. 
              Fazendo um pouco de poesia, é como se nós curitibanos 
                ainda estivéssemos com um pé no século XIX, 
                desembarcados nesta boa terra -Curitiba não tem morro, 
                não tem enchente, não tem terremoto; e a lenda mais 
                recente desse paraíso tropical sem os males do trópico, 
                vai acrescentando até que é uma cidade fria, o que, 
                rigorosamente, não é mais, ou que é um lugar 
                sem assaltos, miséria ou problemas mais sérios. 
                Bem, Curitiba sempre foi uma espécie de paraíso 
                do projetista urbano, que em vários momentos da história 
                via diante de si uma planura sem acidentes para ali desenhar o 
                seu projeto abstrato. Prosseguindo: desembarcamos nesta boa terra 
                com a esperança de aqui amealharmos algum dinheiro para 
                consolidar algum patrimônio, um pedaço de terra, 
                à custa de trabalho duro e honesto, obedecendo à 
                lei e não criando problemas, e não nos misturando 
                muito, porque o mundo é cheio de perigos e mais vale um 
                pássaro na mão que dois voando. 
              Alemães, poloneses, ucranianos e mais tarde italianos 
                e outros povos foram ocupando essa terra e ao mesmo tempo definindo-a. 
                Se os italianos criaram, entre outros, o enclave de Santa Felicidade 
                (o mais famoso), que a rigor parece outra cidade, cabendo nela 
                todos os chavões simpáticos que atribuímos 
                a eles, o riso fácil, a comida farta, o espalhafato dos 
                restaurantes, o gosto ostensivo pelas marcas folclóricas 
                da origem e mesmo o kitsch poderoso que vai criando uma Itália 
                imaginária de isopor e bandeiras para consumo de ônibus 
                de turistas (parece que em Santa Felicidade há o segundo 
                ou o terceiro maior restaurante do mundo, e milhares de turistas 
                desabam lá tirando fotografias de castelos construídos 
                a fórmica, néon, pedra e plástico), coube, 
                como já disse, aos alemães e eslavos cuidarem do 
                coração duro da cidade, aquela estranheza primordial, 
                quase metafísica, de quem de fato não se sente em 
                casa em lugar nenhum do mundo, porque o mundo é uma realidade 
                permanentemente hostil. 
              Curitiba não tem carnaval. Na semana do carnaval há 
                como que um esvaziamento sinistro da cidade, uma diáspora 
                da alegria -multidões descem em desespero para o desconforto 
                absurdo do litoral, entupido de carros, de falta dágua, 
                de barulho, de gente, de caos, quase sempre de chuvas torrenciais, 
                e desaparecem da cidade. Então, os verdadeiros curitibanos, 
                como eu, passeiam por aquele vazio agradável e silencioso 
                -andamos quilômetros, em plena terça-feira gorda, 
                sem encontrar em lugar algum um mínimo signo do carnaval, 
                uma criança mascarada, um balão, uma serpentina 
                na calçada. Nada. Aqui e ali entrevemos o clarão 
                de uma televisão ligada, em volume não muito alto, 
                no carnaval da Globo, que assistimos com um espanto verdadeiramente 
                curitibano. O que faz sentido: o carnaval na televisão 
                é essencialmente a apoteose do não-carnaval, a expressão 
                acabada da sua derrota, o nosso triunfo. 
              Essa sensação de estrangeiros -parece que nunca 
                estamos em casa, exatamente como nossos antepassados não 
                estavam ao chegar ali- foi acrescentando mais alguns traços 
                ao temperamento curitibano. O principal talvez seja o traço 
                conservador, naturalmente conservador -o curitibano não 
                gosta muito de criar caso, gritar ou exigir aos brados alguma 
                coisa; é como se ainda houvesse um substrato mental nos 
                dizendo que aqui não é a nossa casa. Uma espécie 
                de comporte-se, silencioso e poderoso, e, quem sabe, 
                ainda com uma aura religiosa no ar, um certo instinto de missa. 
                E é um substrato tão poderoso que qualquer estrangeiro 
                -digamos, um carioca, um catarinense do litoral ou um baiano, 
                acostumado a viver em voz alta- ao chegar em Curitiba levará 
                sempre um primeiro choque: súbito, sente-se que há 
                uma fina camada de gelo entre as pessoas, um sentimento de distância, 
                invisível mas permanente. 
              Em poucos dias o nosso estrangeiro já não dará 
                tapinhas nas costas com tanta familiaridade e nem visitará 
                ninguém sem nítidos, claros, ostensivos avisos prévios. 
                O apareça lá em casa, essa mentira simpática, 
                marca saborosa de todo brasileiro, não se ouve muito em 
                Curitiba. Temos em geral de quatro a seis amigos, que duram uma 
                vida inteira. Já vivi em cidades rodeado de 250 amigos, 
                que desapareciam na primeira esquina. Observem o tom acusatório 
                da expressão que desapareciam na primeira esquina 
                -há aqui uma velada acusação contra as traições 
                do mundo, sempre perigoso, falso e hostil, uma acusação 
                essencialmente curitibana. 
              É interessante pensar no contraponto da introversão 
                curitibana: como não somos do ramo, nossa extroversão, 
                quando explode, é sempre excessiva, exagerada, às 
                vezes descontrolada -é como se perdêssemos, libertados, 
                a noção de medida das coisas. O nosso tapinha nas 
                costas é sempre um pouco mais forte. Às vezes dói. 
                Em dezembro de 1959, um problema de nota fiscal na compra de um 
                pente numa loja da praça Tiradentes desencadeou um quebra-quebra 
                monumental, verdadeiramente catártico, sem intenção 
                de saque ou roubo, no episódio conhecido como guerra 
                do pente. 
              Em alguns jogos decisivos entre Coritiba e Atlético, freqüentemente 
                há uma depredação irracional de ônibus 
                urbanos e das famosas estações-tubo, mesmo fora 
                do perímetro ou dos limites de guerra entre torcidas, depredação 
                mais irracional ainda se sabemos que o transporte coletivo de 
                Curitiba é um dos melhores e mais eficientes do país. 
              Para não dizer que isso é apenas problema de raiz 
                social (que certamente também é), idêntico 
                a episódios semelhantes no resto do Brasil, podemos lembrar 
                um jornal curitibano de literatura, com ressonância nacional, 
                o Rascunho, que conta entre seus colaboradores com ótimos 
                nomes da vida literária brasileira, cuja editoria se compraz 
                às vezes em linchar bons poetas e bons escritores com estardalhaço, 
                na primeira página, a título de crítica literária, 
                o que na verdade parece ser apenas um desejo irrefreável 
                de chutar a canela alheia com uma agressividade assustadora. Uma 
                espécie, digamos, de extroversão cultural, 
                um desejo secreto de quem não quer se comportar na missa 
                de domingo mas não tem o trato cotidiano do debate, algo 
                que de algum modo pudesse civilizar a discordância. A nossa 
                discordância, represada por muito tempo, quando enfim aparece, 
                tem um quê de anormal. É claro que não podemos 
                psicologizar os pontos de vista a ponto de esvaziá-los 
                intelectualmente -mas, afinal, conteúdos são formas. 
              Esse conservadorismo de raiz da cultura curitibana é também 
                uma expressão institucional. O seu reflexo mais evidente 
                é o jornalismo da cidade, historicamente porta-voz dos 
                governos locais e nacionais -o que talvez também explique, 
                lá no fundo, a nossa eventual extroversão 
                cultural, uma compensação descompensada da 
                docilidade oficial. 
              Um dos símbolos da cidade é a Universidade Federal 
                do Paraná, cuja criação -ela é a mais 
                antiga do país- tinha como um de seus ideários definir 
                uma identidade regional, o que em si já é uma confissão 
                de ausência de identidade. Há assim desde a origem 
                uma espécie de oficialismo que perpassa todas as atividades 
                culturais de Curitiba. Um oficialismo que, de cima para baixo, 
                na própria constituição do Estado do Paraná, 
                historicamente, foi uma espécie de faca com o queijo, 
                porque encontrava diante de si uma população, digamos, 
                estrangeira, pronta a não criar caso e a obedecer 
                a regulamentação oficial que ia lhe delineando os 
                passos. 
              Lembro um episódio: quando o cinto de segurança 
                ainda não era obrigatoriedade nacional, o prefeito de Curitiba 
                baixou uma lei pioneira obrigando seu uso na cidade. No dia seguinte, 
                metade dos motoristas curitibanos, em geral selvagens no trato 
                do pedestre, portavam orgulhosamente o cinto. Já no Rio, 
                a mesma lei provocou uma horda de camelôs vendendo camisetas 
                com o cinto desenhado no peito; e em Porto Alegre, a exigência 
                levou a protestos públicos veementes contra aquele abuso 
                de poder. 
              Pois bem, o curitibano aceita a regulamentação 
                oficial, mas, como vingança, desenvolve um dos seus talentos 
                marcantes, e dos mais saborosos, que é a autofagia. Um 
                dos espaços clássicos da cidade se chama Boca 
                Maldita, e, como tudo na cidade, acabou se institucionalizando 
                numa espécie machista de clube de velhos que é uma 
                hilariante caricatura do pior conservadorismo. Mas tem um substrato 
                verdadeiro: gostamos de falar mal dos outros, principalmente dos 
                outros curitibanos. E, é claro, falamos à sorrelfa, 
                entre nós mesmos, porque no jornal, tradicionalmente, não 
                podemos falar mal de ninguém. Sobre essa compulsão 
                crítica -aliás, lembremos que Wilson Martins é 
                de Curitiba, e tem de fato um olhar essencialmente curitibano 
                sobre o mundo-, recordo uma crônica do saudoso Jamil Snege, 
                ótimo escritor curitibano, que tinha o título de 
                como se tornar invisível em Curitiba. Para 
                se tornar invisível em Curitiba, dizia Jamil, basta ter 
                um talento genuíno. Tenha talento, dizia Jamil, e a cidade 
                vai tornar você invisível. Você vai desaparecer. 
               
              O interessante deste olhar do Jamil Snege, com quem ao longo 
                dos anos absorvi boa parte de minha alma curitibana, é 
                que havia um toque fatalista nesta concepção de 
                mundo. Porque Jamil, um dos olhares mais ferinos da cidade, jamais 
                quis sair de Curitiba, e eu digo tanto sair literariamente de 
                lá quanto fisicamente; de fato, Jamil Snege, que eu saiba, 
                viajou poucas vezes para fora da cidade. Além disso, recusou 
                todas as oportunidades de ser editado por grandes editoras, cuidou 
                de cada livro seu com uma atenção absolutamente 
                artesanal e tinha a pachorra de ele mesmo distribuir os volumes 
                (sempre rapidamente esgotados) em duas ou três livrarias 
                da cidade. 
              O publicitário Jamil, aliás um publicitário 
                brilhante, jamais fez publicidade da própria obra. Em todo 
                esse modo de viver a literatura perpassa a idéia de atitude, 
                o ato de escrever não como o ato de produzir bens de cultura, 
                inseridos confortavelmente num mercado de livros, mas como uma 
                expressão existencial. Há nessa atitude, que considero 
                curitibaníssima, um misto de pudor e timidez, uma certa 
                idéia docemente provinciana de que aparecer 
                é algo agressivo, ou, igualmente, é algo que nos 
                deixa desarmados à mercê do olhar alheio. É 
                melhor, é mais seguro nos escondermos. 
              Pois bem, chegamos agora, nessa seqüência de impressões 
                curitibanas, num dos mais estranhos paradoxos da cidade de Curitiba. 
                Esse espaço do mais profundo e metafísico conservadorismo 
                oficial tornou-se, ao mesmo tempo, uma sólida referência 
                nacional e internacional de modernidade urbana e qualidade de 
                vida. Lembro de que, anos atrás, em Roma, alguém 
                me disse absolutamente maravilhado ao saber que eu era de Curitiba: 
                Você é de Curitiba!? A terceira melhor cidade 
                do mundo em qualidade de vida! -acrescentou o romano, encantado 
                pela imagem da cidade. 
              Bom curitibano, e naturalmente autofágico, levei um choque 
                com aquele desconcertante elogio, ainda mais de um habitante de 
                Roma, cidade que eu percorria com o prazer deliciado de quem conhece 
                uma espécie rara de paraíso -pois aquele romano 
                dizia que a minha cidade era certamente melhor que a dele. Mas 
                em que sentido alguém que mora no centro de Curitiba, como 
                eu, num prédio cercado de fios elétricos que ameaçam, 
                digamos, eletrocutar aquele que tentar invadir meu espaço, 
                e que mesmo assim freqüentemente acorda de madrugada, num 
                escândalo de janelas que se abrem, com sirenes da polícia 
                e alarmes de carros estourados em troca de toca-fitas, pode dizer 
                que mora na terceira melhor cidade do mundo em qualidade 
                de vida? 
              Eu poderia dizer que Curitiba tem, no inverno, o céu azul 
                mais bonito do Brasil -de fato, é um céu belíssimo-, 
                mas o curitibano não pode contemplá-lo com freqüência, 
                porque, como nossas calçadas são as piores do mundo 
                (aqui não é autofagia -quem vai a Curitiba comprova 
                isso), temos de andar olhando para o chão, o que também 
                faz sentido e dá uma certa solidez ao princípio 
                curitibano universal de nunca dar o passo maior que as pernas. 
                Olhar o céu e andar ao mesmo tempo são atividades 
                incompatíveis para o curitibano. 
              Bem, para não dizerem que este olhar é mesmo o 
                olhar de um estrangeiro -afinal, eu nem nasci lá, como 
                já me disseram várias vezes- invoco o testemunho 
                de Dalton Trevisan, o grande mestre da cidade e um dos maiores 
                escritores do Brasil. Entre as muitas maldições 
                curitibanas que ele escreve, primeiro em folhetos quase clandestinos 
                e depois, refeitas à exaustão naquela oficina impiedosa 
                de textos que é a cabeça daltoniana até a 
                edição em livro, há um poema chamado Essa 
                cidade não é a minha (Veja Paraná, 
                25 de setembro de 1991), em que ele comenta justamente a fama 
                universal da cidade. 
              uma das três cidades do mundo de melhor qualidade 
                de vida 
                segundo uma comissão da ONU 
                ora o que significa uma comissão da ONU 
                não me façam rir senhores 
                nem sejamos a esse ponto desfrutáveis 
                por uma comissão de vereadores da ONU 
              Neste mesmo poema, Dalton vai contrapondo com aquele seu humor 
                irritadiço e violento uma espécie de nova 
                Curitiba àquela Curitiba de sua infância, que, 
                aqui de fora, podemos chamar de literária. 
                Que nova Curitiba será essa? Diz ele: 
              ai da cólera que espuma os teus urbanistas 
                apostam na corrida de rato dos malditos carros 
                suprimindo o sinal e a vez do pedestre 
                inaugurada a caça feroz aos velhinhos de muleta 
                se não salta já era 
                em cada esquina os cacos da bengala de um ceguinho 
                quem acerta primeiro o paraplégico na cadeira de roda 
              não me venham de terrorismo ecológico 
                você que defende a baleia corcunda do pólo sul  
                (...) 
                não te reconheço Curitiba a mim já não 
                conheço 
                a mesma não é outro eu sou 
                (...) 
                nenhum cão ou gato pelas tuas ruas 
                todos atropelados 
                (...) 
                nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista 
                toda de acrílico azul para turista vez 
                (...) 
                não me toca a tua glória dos fogos de artifício 
                o que vejo na mídia é tua alminha violada e estripada 
                (...) 
                Curitiba foi não é mais 
              Entre as muitas leituras que podemos fazer sobre esta espécie 
                de réquiem daltoniano sobre a cidade, podemos reconhecer 
                inicialmente apenas o traço do tempo: Curitiba cresceu, 
                com o crescimento vieram os carros, os prédios, a falta 
                de tempo, o fim dos cães vadios na rua, o fim do rio Belém, 
                numa palavra, o fim do clássico idílio rural 
                de que falávamos no início. No caso de Dalton, trata-se 
                de um idílio bastante particular, mas no qual se reconhece, 
                enfim, por mais violentas que sejam as imagens, o nosso Brasil 
                exótico, familiar, sensual. Veja-se: 
              o que fica da Curitiba perdida 
                uma nesga de céu presa no anel de vidro 
                o cantiquinho da corruíra na boca da manhã 
                um lambari de rabo dourado faiscando no rio Belém 
                quando havia lambari quando rio Belém havia 
                o delírio é tudo meu do primeiro par de seios 
                o primeiro par de tudo de cada polaquinha 
              Claro, esse idílio daltoniano é atravessado 
                com violência pela corrosão da ironia, e, talvez, 
                nessa sociologia ligeira que se arrisca fazer aqui, pelo inconfundível 
                toque curitibano das culpas mais medonhas. Ele não quer 
                nada com a Curitiba oficial enjoadinha ufanista. O 
                que ele quer é 
              da outra que eu sei 
                o amor de João retalha a bendita Maria em sete pedaços 
                a cabeça ainda falante 
                (...) 
                o necrófilo uivador nos túmulos vazios das três 
                da manhã 
                (...) 
                verde não te quero verde 
                antes vermelha do sangue derramado das tuas bichas doidas 
                e negra dos imortais pecados de teus velhinhos pedófilos 
              Enfim, uma certa alma curitibana se define inteira em poucos 
                versos daltonianos, uma Curitiba profundamente mental, que resiste 
                teimosa a se definir pelo seu espaço (o espaço como 
                alguma coisa irrelevante): 
              por favor não me dê a mão 
                não gosto que me peguem na mão 
                essa tua palma quente e úmida 
                odeio o sinal de polegar no meu punho 
                (...) 
                bicho daqui não sou 
                no exílio sim órfão paraguaio da guerra do 
                Chaco 
              Poderíamos perguntar: por que diabos um dos maiores escritores 
                brasileiros de todos os tempos se dedica com tanto afinco a amaldiçoar 
                sua cidade? Numa perspectiva estritamente literária, Dalton 
                realiza o paradoxo de, ao invocar um suposto paraíso rural, 
                uma suposta vida idílica anterior ao progresso massificador 
                e abstrato da urbanização, destrói completamente 
                o imaginário romântico -fortíssimo na nossa 
                tradição literária, desde as Iracemas de 
                antanho- por fazer desse passado não o kitsch da casinha 
                de sapé à margem de um rio tranqüilo com uma 
                bela árvore nos dando a sombra, mas a expressão 
                bíblica de horrores monumentais, mas quem sabe autênticos, 
                essenciais, telúricos, verdadeiramente divinos, o 
                medieval pátio dos milagres na Praça Rui Barbosa. 
              A ironia é um modo também de se auto-destruir, 
                de não deixar nem por um segundo que o conforto de uma 
                frase feita se acomode em algum idílio possível 
                -porque o que Dalton diz, em cada texto que escreve, é 
                que não há salvação possível 
                na face da terra. Talvez não seja muita liberdade poética 
                afirmar que essa descrença essencial, com o seu toque calvinista 
                -temos de continuar a trabalhar, sem esperar resultados- defina 
                em boa parte a alma curitibana, muito mais do que qualquer projeto 
                urbano, política de transporte ou declaração 
                da ONU. 
              Mas voltemos ao ponto central, a imagem de Curitiba. Certamente 
                nenhuma outra cidade brasileira conseguiu construir uma imagem 
                tão indiscutivelmente positiva, no imaginário brasileiro 
                e internacional, como Curitiba. A mesma Curitiba que, para Dalton 
                Trevisan é a Curitiba oficial enjoadinha ufanista 
                / toda de acrílico azul para turista ver, é 
                para milhares de pessoas uma espécie de paraíso 
                urbano possível, a cidade cultural do Brasil, o grande 
                centro do teatro brasileiro, a cidade ecológica brasileira, 
                a cidade que tem o melhor transporte urbano, etc. 
              Que sem dúvida muito disso é realmente um factóide 
                para turista ver -curiosamente na capital brasileira 
                que talvez menos tenha atração turística, 
                pois de fato não há quase nada de realmente interessante 
                na cidade-, é fato também que Curitiba tem algumas 
                qualidades urbanas (mesmo contando com o motorista que já 
                foi definido como o mais mal-educado do Brasil) que são 
                de causar inveja em muitas cidades. Começa pela sua escala 
                -é uma cidade ainda razoavelmente pequena, o que nos dá 
                tempo, o bem mais precioso de todos. Para as classes médias, 
                a cidade inteira está ao alcance da mão. Para quem 
                mora longe, a cidade talvez tenha o melhor transporte público 
                do país. 
              Pois bem, essa Curitiba famosa resultou de um projeto urbano 
                de longo prazo muito bem-sucedido, e que em sua essência, 
                para sorte dos curitibanos, não foi essencialmente modificado 
                ou desestruturado por nenhum dos diferentes governos que ocuparam 
                a cidade nos últimos 40 anos. Aliás, para fazer 
                justiça, é preciso estender mais esse projeto urbano 
                de longo prazo: na verdade, Curitiba tem uma tradição 
                de cuidado urbano verdadeiramente centenária. Um único 
                exemplo: na década de 20 o prefeito Garcez do Nascimento 
                (que construirá o primeiro arranha-céu de Curitiba, 
                o edifício Garcez), planejou uma série de grandes 
                avenidas no lado sul da cidade (Visconde de Guarapuava, Sete de 
                Setembro, Silva Jardim, etc.), amplas e modernas, onde não 
                havia ainda praticamente nada, e que servirão para sustentar, 
                sem estragos, impacto ambiental ou desapropriações 
                traumáticas boa parte da célebre organização 
                viária implantada na cidade 50 anos depois.  
              Fiquemos nas últimas décadas, quando de fato se 
                ergueu a Curitiba que chamará a atenção do 
                Brasil e do mundo. A história desse projeto, a partir de 
                um não especialista, como eu, pode ser definida assim. 
                Em 1960, quando cheguei criança em Curitiba, a cidade, 
                embora bastante funcional e sempre bem organizada, não 
                tinha de fato expressão alguma. Curitiba não era 
                nada; não tinha, a rigor, nenhuma identidade. Havia um 
                slogan mentiroso que chamava Curitiba de cidade sorriso; 
                em outros momentos, era chamada de cidade universitária, 
                e aqui a definição fazia algum sentido pela importância 
                fundamental da Universidade Federal do Paraná para Curitiba. 
                Mas definir uma capital de Estado como cidade universitária 
                é muito pouco. 
              Curiosamente, uma pesquisa recente promovida publicitariamente 
                por uma instituição bancária perguntava qual 
                deveria ser o símbolo de Curitiba, e a Universidade 
                Federal ganhou. Houve uma curiosa polarização política 
                nessa pesquisa sem nenhum rigor, digamos, científico, 
                porque todas as outras possibilidades (o Jardim Botânico, 
                a Ópera do Arame, etc.) haviam sido criadas pelos governos 
                Jaime Lerner, justamente nessas últimas décadas. 
                Assim, a escolha da universidade na enquete, uma escolha inescapavelmente 
                conservadora, teve um certo sabor ideológico de contestação. 
              É um detalhe interessante porque explica muito do projeto 
                curitibano moderno, que vou chamar aqui sem muito rigor de projeto 
                Lerner, para lembrar o nome que se imortalizou sendo três 
                vezes prefeito da cidade e duas vezes governador de Estado e que 
                promoveu, via executivo, todas as grandes transformações 
                que deram à cidade a cara que ela tem hoje. Pois bem, sobre 
                uma cidade que como dissemos não tinha expressão 
                nenhuma -apenas aquela alma curitibana fortíssima que para 
                mim define a cidade- o projeto Lerner criou quase que inteiramente 
                a imagem de uma nova cidade, imagem projetada sobre alguns conceitos 
                urbanos bastante modernos, a partir de eixos de transporte coletivo, 
                política de ocupação de espaços e 
                um certo ideário de valorização do pedestre, 
                simbolizado no início dos anos 70 na transformação 
                da rua XV de novembro em um calçadão. (Veja-se que, 
                nem de longe, é um técnico ou um político 
                que escreve aqui: apenas um habitante da cidade que cresceu com 
                ela ao longo de 45 anos e que nela se fez escritor  minha 
                autoridade, se cabe essa palavra aqui, é estritamente literária.) 
              Essa mudança estrutural da cidade foi acompanhada, sempre, 
                de campanhas publicitárias extremamente profissionais; 
                tudo que se fazia, do ponto de vista físico, recebia um 
                equivalente abstrato na programação visual, de certa 
                forma um logotipo, que a cada época marcava 
                a imagem da cidade. Ainda mais -essas marcas visuais, parte essencial 
                do projeto da imagem da cidade, sempre mantiveram uma extraordinária 
                unidade: a cidade inteira sempre esteve submetida, na criação 
                dessa curitiba urbana dos últimos 40 anos, a um conceito 
                visual unitário, centralizado e criado de cima para baixo. 
                Por isso se diz que Curitiba é a cidade da figura única: 
                temos um único arquiteto, um único projetista, um 
                único escritor, um único artista plástico, 
                e daí por diante. As marcas visuais percorrem grande número 
                dessas novas atrações turísticas, inventadas 
                recentemente: Jardim Botânico, Ópera do Arame, Rua 
                24 horas, etc. 
              Concomitantemente a isso, viveu-se em Curitiba um processo de 
                revitalização de espaços históricos, 
                de preservação de fachadas, etc., com uma Fundação 
                Cultural bastante ativa na criação de espaços 
                de cultura, como cinemas, museus, etc., o que também deu 
                uma marca forte à cidade. E também uma marca estrangeira 
                -nunca conheci um curitibano da área cultural (exceto os 
                funcionários da Fundação) que em algum momento 
                não reclamasse de que a Fundação Cultural 
                na verdade era também só para inglês 
                ver e que os artistas locais estavam às moscas. Eu 
                mesmo reclamei muito disso, mas hoje, cinqüentenário, 
                acho que não é um grande problema. É apenas 
                realismo: Curitiba precisa mesmo de uma injeção 
                cultural de fora, porque somos poucos. 
              Um exemplo: o Perhapiness, evento que todos os anos 
                celebra a memória do poeta Paulo Leminski, na sua versão 
                2003 convidou para a série de mesas redondas, se não 
                estou enganado, 15 nomes importantes de fora, como Patrícia 
                Mello, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll, e apenas 
                dois nomes de Curitiba, um jornalista e um escritor. Pensando 
                bem, é uma boa política: os grandes nomes voltarão 
                falando maravilhas de Curitiba, e os dois curitibanos continuarão 
                a falar mal da cidade, como sempre. Se convidassem 15 curitibanos 
                e dois estrangeiros, o encontro seria massacrado pelos próprios 
                palestrantes, com apenas dois elogiando lá fora. A mesma 
                coisa acontece com o Festival de Teatro, uma iniciativa privada 
                muito bem sucedida que tem contado sempre com o apoio da Fundação. 
                Jamais conversei com um ator ou diretor local que, em algum momento, 
                não criticasse o festival por se sentir alijado da festa, 
                fartamente elogiada no resto do Brasil e até do mundo. 
              Temos, até aqui, um bom projeto urbano vinculado a um 
                apurado senso publicitário, que não só propagandeava 
                a boa nova, como lhe dava uma cara gráfica, imediatamente 
                identificável, em Curitiba e fora dela. E, afinal, o produto 
                às vezes correspondia, pelo menos em parte, à propaganda. 
                Mas há outros fatores importantes a considerar nesse processo. 
                Um deles é o fato de que a implantação do 
                projeto se fez a partir de governos impostos pela ditadura militar. 
                Isto é, Jaime Lerner foi prefeito indicado duas vezes. 
                E, naqueles anos tecnocráticos, ele gostava de alardear 
                que não era político, e não ser 
                político soava (ainda hoje aliás) como uma grande 
                qualidade. 
              Quem viveu a virada dos anos 60 para os anos 70 sabe o componente 
                psicológico, e mesmo ético, que pesava nas considerações 
                sobre o poder político. Lembro que meu primeiro voto na 
                vida foi nulo, em protesto contra a ditadura -um erro histórico, 
                aliás, porque contra ela a única força realmente 
                útil seria o voto, como o tempo acabou demonstrando. 
              Polarizado o Brasil entre os que não queriam votar e os 
                que não queriam o voto, a nova Curitiba ia se fazendo com 
                a faca, o queijo, a imprensa e o poder na mão. É 
                claro que, pensando retrospectivamente, tivemos alguma sorte, 
                porque o mesmo poder, imprensa, faca e queijo em outras mãos 
                poderiam simplesmente destruir a cidade, como aconteceu em tantas 
                outras partes do Brasil: Curitiba era de fato uma espécie 
                de tabula rasa, como expressão cultural, identidade regional 
                ou extensão geográfica. 
              Sobre esse silêncio prévio, tanto do curitibano 
                comum que por natureza é silencioso e está sempre 
                pronto a obedecer a lei, e sobre o silêncio político 
                dos que, também a faca com o queijo, distantes do círculo 
                do poder negavam legitimidade à cidade nova que se erguia, 
                o projeto Lerner criou, finalmente, uma Curitiba nítida, 
                com uma cara, uma carteira de identidade, uma expressão 
                e um ideário urbano de longo prazo que chegou a impressionar 
                até os vereadores da ONU do texto de Dalton 
                Trevisan. Mas não impressionava os seus habitantes, pelo 
                menos num primeiro momento -Jaime Lerner perderá sua primeira 
                eleição direta para prefeito da cidade que inventava. 
              Aliás, a idéia de que Curitiba é uma invenção 
                de Jaime Lerner não é assim tão absurda -mas 
                é preciso lembrar que todos os ingredientes para a invenção 
                da cidade, incluindo aí um histórico centenário 
                de bom planejamento urbano, estavam generosamente, até 
                ostensivamente diante de quem tivesse a imaginação 
                e o poder de usá-los e preencher aquele vazio que ansiava 
                por ter uma face reconhecível. 
              Mas tudo isso é história. Vendo de hoje, é 
                inegável que esses 40 anos criaram potencialmente defesas 
                contra a crescente urbanização, inevitável, 
                da cidade; criaram também uma certa cultura urbana, substancialmente 
                adequada ao substrato cultural do habitante de Curitiba. Uma prova 
                disso está, como dissemos, no fato de que prefeituras politicamente 
                antípodas se sucederam sem de fato destroçar ou 
                mesmo modificar a substância do projeto original, que acabou 
                marcando profundamente a cidade. 
              E, como bons curitibanos, sabemos que a vida é muito mais 
                densa, perigosa, complicada e inexcrutável do que um logotipo 
                na parede, mesmo que seja um logotipo que funcione. Tanto melhor 
                que seja uma boa cidade, ainda que tenha as piores calçadas 
                do mundo, porque assim podemos, trancados em casa -o verdadeiro, 
                o autêntico espaço do curitibano é o interior 
                de sua casa- com algum conforto pensar na vida, trabalhar sossegadamente, 
                contar com os quatro amigos que conhecemos há 37 anos, 
                mas que só se vêem acertando o encontro previamente 
                por telefone, quando então pedimos pizza e nos divertimos 
                bastante. Afinal, o que mais podemos esperar da vida? 
                 
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