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Um olhar de Curitiba
Cristovão Tezza
Texto apresentado no auditório da Biblioteca Mário
de Andrade, em 11 de setembro de 2003, em São Paulo, no
ciclo de palestras Viagem pelas metrópoles brasileiras:
arte, história, política e cultura, coordenado
pelo professor Francisco Foot Hardman.
Minha convivência com a cidade de Curitiba está
completando 43 anos. Desembarquei lá aos oito anos, vindo
de Lages, Santa Catarina, em janeiro de 1961, e praticamente nunca
mais saí da cidade, exceto por alguns períodos de
aprendizagem em outras terras e cidades -mas sempre voltei a Curitiba.
Este meu olhar sobre a cidade é na origem, portanto, um
olhar estrangeiro, de alguém que, se sentindo integralmente
curitibano, como eu me sinto -e toda a minha literatura testemunha
isso- tem entretanto um pé para fora, um olhar de fora.
Mas este olhar de fora talvez seja mesmo um traço constitutivo
das nossas capitais, na medida em que o avanço da urbanização
brasileira nas últimas décadas foi inchando as cidades
maiores de estrangeiros, com todos os problemas e
conseqüências dessa história. Numa cidade maior,
numa cidade de prédios, numa cidade cuja extensão
já vá bem além do tamanho do nosso passo
e do nosso olhar, numa cidade sem horizontes, como em geral são
os centros urbanos, todas as relações de familiaridade
e de intimidade mudam de dimensão.
A cidade é um espaço abstrato. Nós nos movemos
menos pela contigüidade dos quintais, dos acidentes do terreno,
dos espaços de referência integrados no nosso dia-a-dia,
e mais por uma relação abstrata de deslocamentos;
vivemos como que num mapa de metrô; o ato de subir 30 andares
num elevador, percorrendo, digamos, centenas de famílias
cuja existência é apenas uma idéia sem rosto,
mas compactamente presente do outro lado da parede, de certo modo
define a geografia urbana, a sua lógica e o seu mundo.
Assim, ser estrangeiro é parte integrante da
natureza urbana.
Toda aquela essência bucólica, essência também
entre aspas, que vem definindo parte substancial da cultura de
um Brasil rural, familiar, integrado e permanentemente ao alcance
do olhar, do passo e da mão, como a fruta que se colhe
da árvore, o sino da tranqüila missa de domingo, a
praça como o espaço social do povo e de sua linguagem,
tudo isso, sabemos, não existe mais.
Na verdade, nunca existiu exatamente, exceto como um projeto
cultural, como construção de cultura -na verdade,
uma poderosa construção cultural que até
hoje tem marcas. Essa nossa suposta essência pastoril -de
fato, para sermos justos, trata-se de um projeto pastoril universal,
que em diferentes momentos da história, aos pêndulos
ideológicos, contrapõe o idílio da vida natural
à corrupção das cidades- é substituída
por outra construção da cultura, vinculada às
luzes de um homem mais abstrato, sem raízes, mas com muito
mais direitos e com muito mais liberdade, um homem mais solitário,
mas também mais poderoso, um homem que, em tese, habita
não mais o quintal da infância, mas a cidade universal.
Em tese, no nosso mundo novo realmente admirável, todas
as relações sociais mudam de natureza. Ninguém
está mais condenado a conviver com o vizinho, como duas
famílias que convivem há gerações;
ninguém mais está condenado a seguir sua natureza
ou o seu destino, como nos heróis épicos; a própria
idéia de obediência já não é
mais uma força natural, como a água
da chuva ou a luz do sol. A obediência, no mundo urbano,
expressa também uma relação mais intelectual
que emocional, a expressão de uma escolha -afinal, o que
define um cidadão é a sua liberdade, e a idéia
de liberdade tem de necessariamente abranger todas as esferas
da atividade humana, separando-se aí, de uma vez por todas,
para sempre, o mundo sagrado do mundo leigo. O mundo urbano é
regido pela cultura leiga -só pode ser leigo; uma cidade
sagrada é uma espécie de contradição
absurda.
Mas é claro que toda essa elucubração é
uma elucubração urbana: isto é, na vida concreta,
a cidade é um espaço de troca e de contaminações
de culturas, e essas culturas vivem permanentente em contraste,
pressionando umas às outras. Como por princípio
a cidade não é um lugar familiar, somos todos estrangeiros
nesta luta de linguagens urbanas.
Tudo para voltar a Curitiba e começar por defini-la como
uma cidade de estrangeiros. Certamente trata-se de um exagero,
mas para maior nitidez vamos começar por esse ponto. Localmente,
uma cidade de estrangeiros porque o notável crescimento
por que passou a cidade nos últimos 40 anos, passando dos
500 mil habitantes da minha infância para os quase dois
milhões de hoje, povoou-a, é claro, de gente de
fora, e em vários estratos sociais; pela beirada, como
costuma acontecer, a periferia curitibana foi se enchendo de favelas,
de ocupação de terrenos, de sub-moradias, de todo
esse espectro profundamente brasileiro que define nossas migrações
internas.
No miolo, por uma classe média de fora (como a minha família)
que veio se transferindo para Curitiba para nunca mais sair de
lá. Em Curitiba, chama a atenção, em vários
ramos e atividades profissionais, o número de não-curitibanos
na faixa hoje dos 40 a 50 anos -parece que, em Curitiba, ninguém
é de lá. Bem, os filhos desta geração,
da minha geração, já são todos curitibanos,
mas são filhos que aprenderam a ver a cidade pelo olhar
dos pais. De certa forma, é uma geração que
mantém ainda residual o seu toque de estranheza com relação
ao espaço em que vive.
E Curitiba é também uma cidade de estrangeiros
pela própria população que a formou: ucranianos,
poloneses, alemães e italianos terão grande relevância
na definição mais profunda da cidade. Desde já,
faço a ressalva de que esse é tema de sociólogos
e historiadores, que saberão definir com mais rigor do
que essas impressões a constituição curitibana.
Mas eu gostaria de marcar alguns pontos primeiros bastante nítidos
que nos definem genericamente -primeiro, o fato de os alemães
terem exercido, senão uma ostensiva ou exclusiva influência,
à maneira de algumas cidades catarineneses ou gaúchas,
uma densa influência na vida burguesa curitibana desde meados
do século XIX, estando presentes, como cidadãos
urbanos, em praticamente todos os ramos de atividades. Wilson
Martins, em Um Brasil Diferente (São Paulo: T. A. Queiroz
Editor, 1989), cita, por exemplo, um tribunal de júri do
século XIX constituído quase integralmente por sobrenomes
alemães, o que me parece bastante significativo.
Nesse sentido, a influência alemã teria sido muito
mais intensa, subterrânea e duradoura, do ponto de vista
da formação da cidade, por estar entranhada nas
atividades que afinal organizam os agrupamentos urbanos, do que
a influência polonesa, que em geral leva a fama (lembremos
Leminski se definindo como polaco, e as imortais polaquinhas
de Dalton Trevisan), somando-se com a influência talvez
ainda mais presente dos ucranianos.
Esse conjunto eslavo (mais os italianos, de que falaremos
adiante), que na origem formava o cinturão verde da cidade,
as colônias agrícolas, normalmente é visto
como definidor maior do nosso traço típico. Os eslavos
deixaram um substrato poderoso, é verdade: seria o nosso
lado rural, sempre forte, aquele contraponto sagrado que nos enche
de culpa e de sentimento de gravidade diante das coisas do mundo.
Assim, para defini-lo numa imagem, o curitibano seria uma espécie
de alemão protestante urbano com uma alma rural, católica
e eslava.
Em outro momento de seu livro, numa metáfora que me parece
muito feliz, Wilson Martins define Curitiba como a cidade da carteira
de identidade, e não do passaporte. Em suma: o curitibano
é, historicamente, um conservador. Para fazer um contraponto
contemporâneo que reforça essa visão, ouvi
recentemente numa entrevista um publicitário afirmar, comentando
o resultado de uma pesquisa, que o curitibano consumidor é
tipicamente alguém que não tem muito dinheiro, mas
tem patrimônio. Em suma, ele não arrisca nada. O
curitibano médio, nesta classificação impressionista
que fazemos aqui, é alguém que se estabelece em
algum lugar com a dimensão da eternidade, com a perspectiva
familiar, com o desejo de uma profunda estabilidade da alma. O
curitibano, desde sempre, parece que veio para ficar, tanto o
alemão e o ucraniano de um século e meio atrás
quanto o migrante dos últimos 50 anos, como eu.
Fazendo um pouco de poesia, é como se nós curitibanos
ainda estivéssemos com um pé no século XIX,
desembarcados nesta boa terra -Curitiba não tem morro,
não tem enchente, não tem terremoto; e a lenda mais
recente desse paraíso tropical sem os males do trópico,
vai acrescentando até que é uma cidade fria, o que,
rigorosamente, não é mais, ou que é um lugar
sem assaltos, miséria ou problemas mais sérios.
Bem, Curitiba sempre foi uma espécie de paraíso
do projetista urbano, que em vários momentos da história
via diante de si uma planura sem acidentes para ali desenhar o
seu projeto abstrato. Prosseguindo: desembarcamos nesta boa terra
com a esperança de aqui amealharmos algum dinheiro para
consolidar algum patrimônio, um pedaço de terra,
à custa de trabalho duro e honesto, obedecendo à
lei e não criando problemas, e não nos misturando
muito, porque o mundo é cheio de perigos e mais vale um
pássaro na mão que dois voando.
Alemães, poloneses, ucranianos e mais tarde italianos
e outros povos foram ocupando essa terra e ao mesmo tempo definindo-a.
Se os italianos criaram, entre outros, o enclave de Santa Felicidade
(o mais famoso), que a rigor parece outra cidade, cabendo nela
todos os chavões simpáticos que atribuímos
a eles, o riso fácil, a comida farta, o espalhafato dos
restaurantes, o gosto ostensivo pelas marcas folclóricas
da origem e mesmo o kitsch poderoso que vai criando uma Itália
imaginária de isopor e bandeiras para consumo de ônibus
de turistas (parece que em Santa Felicidade há o segundo
ou o terceiro maior restaurante do mundo, e milhares de turistas
desabam lá tirando fotografias de castelos construídos
a fórmica, néon, pedra e plástico), coube,
como já disse, aos alemães e eslavos cuidarem do
coração duro da cidade, aquela estranheza primordial,
quase metafísica, de quem de fato não se sente em
casa em lugar nenhum do mundo, porque o mundo é uma realidade
permanentemente hostil.
Curitiba não tem carnaval. Na semana do carnaval há
como que um esvaziamento sinistro da cidade, uma diáspora
da alegria -multidões descem em desespero para o desconforto
absurdo do litoral, entupido de carros, de falta dágua,
de barulho, de gente, de caos, quase sempre de chuvas torrenciais,
e desaparecem da cidade. Então, os verdadeiros curitibanos,
como eu, passeiam por aquele vazio agradável e silencioso
-andamos quilômetros, em plena terça-feira gorda,
sem encontrar em lugar algum um mínimo signo do carnaval,
uma criança mascarada, um balão, uma serpentina
na calçada. Nada. Aqui e ali entrevemos o clarão
de uma televisão ligada, em volume não muito alto,
no carnaval da Globo, que assistimos com um espanto verdadeiramente
curitibano. O que faz sentido: o carnaval na televisão
é essencialmente a apoteose do não-carnaval, a expressão
acabada da sua derrota, o nosso triunfo.
Essa sensação de estrangeiros -parece que nunca
estamos em casa, exatamente como nossos antepassados não
estavam ao chegar ali- foi acrescentando mais alguns traços
ao temperamento curitibano. O principal talvez seja o traço
conservador, naturalmente conservador -o curitibano não
gosta muito de criar caso, gritar ou exigir aos brados alguma
coisa; é como se ainda houvesse um substrato mental nos
dizendo que aqui não é a nossa casa. Uma espécie
de comporte-se, silencioso e poderoso, e, quem sabe,
ainda com uma aura religiosa no ar, um certo instinto de missa.
E é um substrato tão poderoso que qualquer estrangeiro
-digamos, um carioca, um catarinense do litoral ou um baiano,
acostumado a viver em voz alta- ao chegar em Curitiba levará
sempre um primeiro choque: súbito, sente-se que há
uma fina camada de gelo entre as pessoas, um sentimento de distância,
invisível mas permanente.
Em poucos dias o nosso estrangeiro já não dará
tapinhas nas costas com tanta familiaridade e nem visitará
ninguém sem nítidos, claros, ostensivos avisos prévios.
O apareça lá em casa, essa mentira simpática,
marca saborosa de todo brasileiro, não se ouve muito em
Curitiba. Temos em geral de quatro a seis amigos, que duram uma
vida inteira. Já vivi em cidades rodeado de 250 amigos,
que desapareciam na primeira esquina. Observem o tom acusatório
da expressão que desapareciam na primeira esquina
-há aqui uma velada acusação contra as traições
do mundo, sempre perigoso, falso e hostil, uma acusação
essencialmente curitibana.
É interessante pensar no contraponto da introversão
curitibana: como não somos do ramo, nossa extroversão,
quando explode, é sempre excessiva, exagerada, às
vezes descontrolada -é como se perdêssemos, libertados,
a noção de medida das coisas. O nosso tapinha nas
costas é sempre um pouco mais forte. Às vezes dói.
Em dezembro de 1959, um problema de nota fiscal na compra de um
pente numa loja da praça Tiradentes desencadeou um quebra-quebra
monumental, verdadeiramente catártico, sem intenção
de saque ou roubo, no episódio conhecido como guerra
do pente.
Em alguns jogos decisivos entre Coritiba e Atlético, freqüentemente
há uma depredação irracional de ônibus
urbanos e das famosas estações-tubo, mesmo fora
do perímetro ou dos limites de guerra entre torcidas, depredação
mais irracional ainda se sabemos que o transporte coletivo de
Curitiba é um dos melhores e mais eficientes do país.
Para não dizer que isso é apenas problema de raiz
social (que certamente também é), idêntico
a episódios semelhantes no resto do Brasil, podemos lembrar
um jornal curitibano de literatura, com ressonância nacional,
o Rascunho, que conta entre seus colaboradores com ótimos
nomes da vida literária brasileira, cuja editoria se compraz
às vezes em linchar bons poetas e bons escritores com estardalhaço,
na primeira página, a título de crítica literária,
o que na verdade parece ser apenas um desejo irrefreável
de chutar a canela alheia com uma agressividade assustadora. Uma
espécie, digamos, de extroversão cultural,
um desejo secreto de quem não quer se comportar na missa
de domingo mas não tem o trato cotidiano do debate, algo
que de algum modo pudesse civilizar a discordância. A nossa
discordância, represada por muito tempo, quando enfim aparece,
tem um quê de anormal. É claro que não podemos
psicologizar os pontos de vista a ponto de esvaziá-los
intelectualmente -mas, afinal, conteúdos são formas.
Esse conservadorismo de raiz da cultura curitibana é também
uma expressão institucional. O seu reflexo mais evidente
é o jornalismo da cidade, historicamente porta-voz dos
governos locais e nacionais -o que talvez também explique,
lá no fundo, a nossa eventual extroversão
cultural, uma compensação descompensada da
docilidade oficial.
Um dos símbolos da cidade é a Universidade Federal
do Paraná, cuja criação -ela é a mais
antiga do país- tinha como um de seus ideários definir
uma identidade regional, o que em si já é uma confissão
de ausência de identidade. Há assim desde a origem
uma espécie de oficialismo que perpassa todas as atividades
culturais de Curitiba. Um oficialismo que, de cima para baixo,
na própria constituição do Estado do Paraná,
historicamente, foi uma espécie de faca com o queijo,
porque encontrava diante de si uma população, digamos,
estrangeira, pronta a não criar caso e a obedecer
a regulamentação oficial que ia lhe delineando os
passos.
Lembro um episódio: quando o cinto de segurança
ainda não era obrigatoriedade nacional, o prefeito de Curitiba
baixou uma lei pioneira obrigando seu uso na cidade. No dia seguinte,
metade dos motoristas curitibanos, em geral selvagens no trato
do pedestre, portavam orgulhosamente o cinto. Já no Rio,
a mesma lei provocou uma horda de camelôs vendendo camisetas
com o cinto desenhado no peito; e em Porto Alegre, a exigência
levou a protestos públicos veementes contra aquele abuso
de poder.
Pois bem, o curitibano aceita a regulamentação
oficial, mas, como vingança, desenvolve um dos seus talentos
marcantes, e dos mais saborosos, que é a autofagia. Um
dos espaços clássicos da cidade se chama Boca
Maldita, e, como tudo na cidade, acabou se institucionalizando
numa espécie machista de clube de velhos que é uma
hilariante caricatura do pior conservadorismo. Mas tem um substrato
verdadeiro: gostamos de falar mal dos outros, principalmente dos
outros curitibanos. E, é claro, falamos à sorrelfa,
entre nós mesmos, porque no jornal, tradicionalmente, não
podemos falar mal de ninguém. Sobre essa compulsão
crítica -aliás, lembremos que Wilson Martins é
de Curitiba, e tem de fato um olhar essencialmente curitibano
sobre o mundo-, recordo uma crônica do saudoso Jamil Snege,
ótimo escritor curitibano, que tinha o título de
como se tornar invisível em Curitiba. Para
se tornar invisível em Curitiba, dizia Jamil, basta ter
um talento genuíno. Tenha talento, dizia Jamil, e a cidade
vai tornar você invisível. Você vai desaparecer.
O interessante deste olhar do Jamil Snege, com quem ao longo
dos anos absorvi boa parte de minha alma curitibana, é
que havia um toque fatalista nesta concepção de
mundo. Porque Jamil, um dos olhares mais ferinos da cidade, jamais
quis sair de Curitiba, e eu digo tanto sair literariamente de
lá quanto fisicamente; de fato, Jamil Snege, que eu saiba,
viajou poucas vezes para fora da cidade. Além disso, recusou
todas as oportunidades de ser editado por grandes editoras, cuidou
de cada livro seu com uma atenção absolutamente
artesanal e tinha a pachorra de ele mesmo distribuir os volumes
(sempre rapidamente esgotados) em duas ou três livrarias
da cidade.
O publicitário Jamil, aliás um publicitário
brilhante, jamais fez publicidade da própria obra. Em todo
esse modo de viver a literatura perpassa a idéia de atitude,
o ato de escrever não como o ato de produzir bens de cultura,
inseridos confortavelmente num mercado de livros, mas como uma
expressão existencial. Há nessa atitude, que considero
curitibaníssima, um misto de pudor e timidez, uma certa
idéia docemente provinciana de que aparecer
é algo agressivo, ou, igualmente, é algo que nos
deixa desarmados à mercê do olhar alheio. É
melhor, é mais seguro nos escondermos.
Pois bem, chegamos agora, nessa seqüência de impressões
curitibanas, num dos mais estranhos paradoxos da cidade de Curitiba.
Esse espaço do mais profundo e metafísico conservadorismo
oficial tornou-se, ao mesmo tempo, uma sólida referência
nacional e internacional de modernidade urbana e qualidade de
vida. Lembro de que, anos atrás, em Roma, alguém
me disse absolutamente maravilhado ao saber que eu era de Curitiba:
Você é de Curitiba!? A terceira melhor cidade
do mundo em qualidade de vida! -acrescentou o romano, encantado
pela imagem da cidade.
Bom curitibano, e naturalmente autofágico, levei um choque
com aquele desconcertante elogio, ainda mais de um habitante de
Roma, cidade que eu percorria com o prazer deliciado de quem conhece
uma espécie rara de paraíso -pois aquele romano
dizia que a minha cidade era certamente melhor que a dele. Mas
em que sentido alguém que mora no centro de Curitiba, como
eu, num prédio cercado de fios elétricos que ameaçam,
digamos, eletrocutar aquele que tentar invadir meu espaço,
e que mesmo assim freqüentemente acorda de madrugada, num
escândalo de janelas que se abrem, com sirenes da polícia
e alarmes de carros estourados em troca de toca-fitas, pode dizer
que mora na terceira melhor cidade do mundo em qualidade
de vida?
Eu poderia dizer que Curitiba tem, no inverno, o céu azul
mais bonito do Brasil -de fato, é um céu belíssimo-,
mas o curitibano não pode contemplá-lo com freqüência,
porque, como nossas calçadas são as piores do mundo
(aqui não é autofagia -quem vai a Curitiba comprova
isso), temos de andar olhando para o chão, o que também
faz sentido e dá uma certa solidez ao princípio
curitibano universal de nunca dar o passo maior que as pernas.
Olhar o céu e andar ao mesmo tempo são atividades
incompatíveis para o curitibano.
Bem, para não dizerem que este olhar é mesmo o
olhar de um estrangeiro -afinal, eu nem nasci lá, como
já me disseram várias vezes- invoco o testemunho
de Dalton Trevisan, o grande mestre da cidade e um dos maiores
escritores do Brasil. Entre as muitas maldições
curitibanas que ele escreve, primeiro em folhetos quase clandestinos
e depois, refeitas à exaustão naquela oficina impiedosa
de textos que é a cabeça daltoniana até a
edição em livro, há um poema chamado Essa
cidade não é a minha (Veja Paraná,
25 de setembro de 1991), em que ele comenta justamente a fama
universal da cidade.
uma das três cidades do mundo de melhor qualidade
de vida
segundo uma comissão da ONU
ora o que significa uma comissão da ONU
não me façam rir senhores
nem sejamos a esse ponto desfrutáveis
por uma comissão de vereadores da ONU
Neste mesmo poema, Dalton vai contrapondo com aquele seu humor
irritadiço e violento uma espécie de nova
Curitiba àquela Curitiba de sua infância, que,
aqui de fora, podemos chamar de literária.
Que nova Curitiba será essa? Diz ele:
ai da cólera que espuma os teus urbanistas
apostam na corrida de rato dos malditos carros
suprimindo o sinal e a vez do pedestre
inaugurada a caça feroz aos velhinhos de muleta
se não salta já era
em cada esquina os cacos da bengala de um ceguinho
quem acerta primeiro o paraplégico na cadeira de roda
não me venham de terrorismo ecológico
você que defende a baleia corcunda do pólo sul
(...)
não te reconheço Curitiba a mim já não
conheço
a mesma não é outro eu sou
(...)
nenhum cão ou gato pelas tuas ruas
todos atropelados
(...)
nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista
toda de acrílico azul para turista vez
(...)
não me toca a tua glória dos fogos de artifício
o que vejo na mídia é tua alminha violada e estripada
(...)
Curitiba foi não é mais
Entre as muitas leituras que podemos fazer sobre esta espécie
de réquiem daltoniano sobre a cidade, podemos reconhecer
inicialmente apenas o traço do tempo: Curitiba cresceu,
com o crescimento vieram os carros, os prédios, a falta
de tempo, o fim dos cães vadios na rua, o fim do rio Belém,
numa palavra, o fim do clássico idílio rural
de que falávamos no início. No caso de Dalton, trata-se
de um idílio bastante particular, mas no qual se reconhece,
enfim, por mais violentas que sejam as imagens, o nosso Brasil
exótico, familiar, sensual. Veja-se:
o que fica da Curitiba perdida
uma nesga de céu presa no anel de vidro
o cantiquinho da corruíra na boca da manhã
um lambari de rabo dourado faiscando no rio Belém
quando havia lambari quando rio Belém havia
o delírio é tudo meu do primeiro par de seios
o primeiro par de tudo de cada polaquinha
Claro, esse idílio daltoniano é atravessado
com violência pela corrosão da ironia, e, talvez,
nessa sociologia ligeira que se arrisca fazer aqui, pelo inconfundível
toque curitibano das culpas mais medonhas. Ele não quer
nada com a Curitiba oficial enjoadinha ufanista. O
que ele quer é
da outra que eu sei
o amor de João retalha a bendita Maria em sete pedaços
a cabeça ainda falante
(...)
o necrófilo uivador nos túmulos vazios das três
da manhã
(...)
verde não te quero verde
antes vermelha do sangue derramado das tuas bichas doidas
e negra dos imortais pecados de teus velhinhos pedófilos
Enfim, uma certa alma curitibana se define inteira em poucos
versos daltonianos, uma Curitiba profundamente mental, que resiste
teimosa a se definir pelo seu espaço (o espaço como
alguma coisa irrelevante):
por favor não me dê a mão
não gosto que me peguem na mão
essa tua palma quente e úmida
odeio o sinal de polegar no meu punho
(...)
bicho daqui não sou
no exílio sim órfão paraguaio da guerra do
Chaco
Poderíamos perguntar: por que diabos um dos maiores escritores
brasileiros de todos os tempos se dedica com tanto afinco a amaldiçoar
sua cidade? Numa perspectiva estritamente literária, Dalton
realiza o paradoxo de, ao invocar um suposto paraíso rural,
uma suposta vida idílica anterior ao progresso massificador
e abstrato da urbanização, destrói completamente
o imaginário romântico -fortíssimo na nossa
tradição literária, desde as Iracemas de
antanho- por fazer desse passado não o kitsch da casinha
de sapé à margem de um rio tranqüilo com uma
bela árvore nos dando a sombra, mas a expressão
bíblica de horrores monumentais, mas quem sabe autênticos,
essenciais, telúricos, verdadeiramente divinos, o
medieval pátio dos milagres na Praça Rui Barbosa.
A ironia é um modo também de se auto-destruir,
de não deixar nem por um segundo que o conforto de uma
frase feita se acomode em algum idílio possível
-porque o que Dalton diz, em cada texto que escreve, é
que não há salvação possível
na face da terra. Talvez não seja muita liberdade poética
afirmar que essa descrença essencial, com o seu toque calvinista
-temos de continuar a trabalhar, sem esperar resultados- defina
em boa parte a alma curitibana, muito mais do que qualquer projeto
urbano, política de transporte ou declaração
da ONU.
Mas voltemos ao ponto central, a imagem de Curitiba. Certamente
nenhuma outra cidade brasileira conseguiu construir uma imagem
tão indiscutivelmente positiva, no imaginário brasileiro
e internacional, como Curitiba. A mesma Curitiba que, para Dalton
Trevisan é a Curitiba oficial enjoadinha ufanista
/ toda de acrílico azul para turista ver, é
para milhares de pessoas uma espécie de paraíso
urbano possível, a cidade cultural do Brasil, o grande
centro do teatro brasileiro, a cidade ecológica brasileira,
a cidade que tem o melhor transporte urbano, etc.
Que sem dúvida muito disso é realmente um factóide
para turista ver -curiosamente na capital brasileira
que talvez menos tenha atração turística,
pois de fato não há quase nada de realmente interessante
na cidade-, é fato também que Curitiba tem algumas
qualidades urbanas (mesmo contando com o motorista que já
foi definido como o mais mal-educado do Brasil) que são
de causar inveja em muitas cidades. Começa pela sua escala
-é uma cidade ainda razoavelmente pequena, o que nos dá
tempo, o bem mais precioso de todos. Para as classes médias,
a cidade inteira está ao alcance da mão. Para quem
mora longe, a cidade talvez tenha o melhor transporte público
do país.
Pois bem, essa Curitiba famosa resultou de um projeto urbano
de longo prazo muito bem-sucedido, e que em sua essência,
para sorte dos curitibanos, não foi essencialmente modificado
ou desestruturado por nenhum dos diferentes governos que ocuparam
a cidade nos últimos 40 anos. Aliás, para fazer
justiça, é preciso estender mais esse projeto urbano
de longo prazo: na verdade, Curitiba tem uma tradição
de cuidado urbano verdadeiramente centenária. Um único
exemplo: na década de 20 o prefeito Garcez do Nascimento
(que construirá o primeiro arranha-céu de Curitiba,
o edifício Garcez), planejou uma série de grandes
avenidas no lado sul da cidade (Visconde de Guarapuava, Sete de
Setembro, Silva Jardim, etc.), amplas e modernas, onde não
havia ainda praticamente nada, e que servirão para sustentar,
sem estragos, impacto ambiental ou desapropriações
traumáticas boa parte da célebre organização
viária implantada na cidade 50 anos depois.
Fiquemos nas últimas décadas, quando de fato se
ergueu a Curitiba que chamará a atenção do
Brasil e do mundo. A história desse projeto, a partir de
um não especialista, como eu, pode ser definida assim.
Em 1960, quando cheguei criança em Curitiba, a cidade,
embora bastante funcional e sempre bem organizada, não
tinha de fato expressão alguma. Curitiba não era
nada; não tinha, a rigor, nenhuma identidade. Havia um
slogan mentiroso que chamava Curitiba de cidade sorriso;
em outros momentos, era chamada de cidade universitária,
e aqui a definição fazia algum sentido pela importância
fundamental da Universidade Federal do Paraná para Curitiba.
Mas definir uma capital de Estado como cidade universitária
é muito pouco.
Curiosamente, uma pesquisa recente promovida publicitariamente
por uma instituição bancária perguntava qual
deveria ser o símbolo de Curitiba, e a Universidade
Federal ganhou. Houve uma curiosa polarização política
nessa pesquisa sem nenhum rigor, digamos, científico,
porque todas as outras possibilidades (o Jardim Botânico,
a Ópera do Arame, etc.) haviam sido criadas pelos governos
Jaime Lerner, justamente nessas últimas décadas.
Assim, a escolha da universidade na enquete, uma escolha inescapavelmente
conservadora, teve um certo sabor ideológico de contestação.
É um detalhe interessante porque explica muito do projeto
curitibano moderno, que vou chamar aqui sem muito rigor de projeto
Lerner, para lembrar o nome que se imortalizou sendo três
vezes prefeito da cidade e duas vezes governador de Estado e que
promoveu, via executivo, todas as grandes transformações
que deram à cidade a cara que ela tem hoje. Pois bem, sobre
uma cidade que como dissemos não tinha expressão
nenhuma -apenas aquela alma curitibana fortíssima que para
mim define a cidade- o projeto Lerner criou quase que inteiramente
a imagem de uma nova cidade, imagem projetada sobre alguns conceitos
urbanos bastante modernos, a partir de eixos de transporte coletivo,
política de ocupação de espaços e
um certo ideário de valorização do pedestre,
simbolizado no início dos anos 70 na transformação
da rua XV de novembro em um calçadão. (Veja-se que,
nem de longe, é um técnico ou um político
que escreve aqui: apenas um habitante da cidade que cresceu com
ela ao longo de 45 anos e que nela se fez escritor minha
autoridade, se cabe essa palavra aqui, é estritamente literária.)
Essa mudança estrutural da cidade foi acompanhada, sempre,
de campanhas publicitárias extremamente profissionais;
tudo que se fazia, do ponto de vista físico, recebia um
equivalente abstrato na programação visual, de certa
forma um logotipo, que a cada época marcava
a imagem da cidade. Ainda mais -essas marcas visuais, parte essencial
do projeto da imagem da cidade, sempre mantiveram uma extraordinária
unidade: a cidade inteira sempre esteve submetida, na criação
dessa curitiba urbana dos últimos 40 anos, a um conceito
visual unitário, centralizado e criado de cima para baixo.
Por isso se diz que Curitiba é a cidade da figura única:
temos um único arquiteto, um único projetista, um
único escritor, um único artista plástico,
e daí por diante. As marcas visuais percorrem grande número
dessas novas atrações turísticas, inventadas
recentemente: Jardim Botânico, Ópera do Arame, Rua
24 horas, etc.
Concomitantemente a isso, viveu-se em Curitiba um processo de
revitalização de espaços históricos,
de preservação de fachadas, etc., com uma Fundação
Cultural bastante ativa na criação de espaços
de cultura, como cinemas, museus, etc., o que também deu
uma marca forte à cidade. E também uma marca estrangeira
-nunca conheci um curitibano da área cultural (exceto os
funcionários da Fundação) que em algum momento
não reclamasse de que a Fundação Cultural
na verdade era também só para inglês
ver e que os artistas locais estavam às moscas. Eu
mesmo reclamei muito disso, mas hoje, cinqüentenário,
acho que não é um grande problema. É apenas
realismo: Curitiba precisa mesmo de uma injeção
cultural de fora, porque somos poucos.
Um exemplo: o Perhapiness, evento que todos os anos
celebra a memória do poeta Paulo Leminski, na sua versão
2003 convidou para a série de mesas redondas, se não
estou enganado, 15 nomes importantes de fora, como Patrícia
Mello, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll, e apenas
dois nomes de Curitiba, um jornalista e um escritor. Pensando
bem, é uma boa política: os grandes nomes voltarão
falando maravilhas de Curitiba, e os dois curitibanos continuarão
a falar mal da cidade, como sempre. Se convidassem 15 curitibanos
e dois estrangeiros, o encontro seria massacrado pelos próprios
palestrantes, com apenas dois elogiando lá fora. A mesma
coisa acontece com o Festival de Teatro, uma iniciativa privada
muito bem sucedida que tem contado sempre com o apoio da Fundação.
Jamais conversei com um ator ou diretor local que, em algum momento,
não criticasse o festival por se sentir alijado da festa,
fartamente elogiada no resto do Brasil e até do mundo.
Temos, até aqui, um bom projeto urbano vinculado a um
apurado senso publicitário, que não só propagandeava
a boa nova, como lhe dava uma cara gráfica, imediatamente
identificável, em Curitiba e fora dela. E, afinal, o produto
às vezes correspondia, pelo menos em parte, à propaganda.
Mas há outros fatores importantes a considerar nesse processo.
Um deles é o fato de que a implantação do
projeto se fez a partir de governos impostos pela ditadura militar.
Isto é, Jaime Lerner foi prefeito indicado duas vezes.
E, naqueles anos tecnocráticos, ele gostava de alardear
que não era político, e não ser
político soava (ainda hoje aliás) como uma grande
qualidade.
Quem viveu a virada dos anos 60 para os anos 70 sabe o componente
psicológico, e mesmo ético, que pesava nas considerações
sobre o poder político. Lembro que meu primeiro voto na
vida foi nulo, em protesto contra a ditadura -um erro histórico,
aliás, porque contra ela a única força realmente
útil seria o voto, como o tempo acabou demonstrando.
Polarizado o Brasil entre os que não queriam votar e os
que não queriam o voto, a nova Curitiba ia se fazendo com
a faca, o queijo, a imprensa e o poder na mão. É
claro que, pensando retrospectivamente, tivemos alguma sorte,
porque o mesmo poder, imprensa, faca e queijo em outras mãos
poderiam simplesmente destruir a cidade, como aconteceu em tantas
outras partes do Brasil: Curitiba era de fato uma espécie
de tabula rasa, como expressão cultural, identidade regional
ou extensão geográfica.
Sobre esse silêncio prévio, tanto do curitibano
comum que por natureza é silencioso e está sempre
pronto a obedecer a lei, e sobre o silêncio político
dos que, também a faca com o queijo, distantes do círculo
do poder negavam legitimidade à cidade nova que se erguia,
o projeto Lerner criou, finalmente, uma Curitiba nítida,
com uma cara, uma carteira de identidade, uma expressão
e um ideário urbano de longo prazo que chegou a impressionar
até os vereadores da ONU do texto de Dalton
Trevisan. Mas não impressionava os seus habitantes, pelo
menos num primeiro momento -Jaime Lerner perderá sua primeira
eleição direta para prefeito da cidade que inventava.
Aliás, a idéia de que Curitiba é uma invenção
de Jaime Lerner não é assim tão absurda -mas
é preciso lembrar que todos os ingredientes para a invenção
da cidade, incluindo aí um histórico centenário
de bom planejamento urbano, estavam generosamente, até
ostensivamente diante de quem tivesse a imaginação
e o poder de usá-los e preencher aquele vazio que ansiava
por ter uma face reconhecível.
Mas tudo isso é história. Vendo de hoje, é
inegável que esses 40 anos criaram potencialmente defesas
contra a crescente urbanização, inevitável,
da cidade; criaram também uma certa cultura urbana, substancialmente
adequada ao substrato cultural do habitante de Curitiba. Uma prova
disso está, como dissemos, no fato de que prefeituras politicamente
antípodas se sucederam sem de fato destroçar ou
mesmo modificar a substância do projeto original, que acabou
marcando profundamente a cidade.
E, como bons curitibanos, sabemos que a vida é muito mais
densa, perigosa, complicada e inexcrutável do que um logotipo
na parede, mesmo que seja um logotipo que funcione. Tanto melhor
que seja uma boa cidade, ainda que tenha as piores calçadas
do mundo, porque assim podemos, trancados em casa -o verdadeiro,
o autêntico espaço do curitibano é o interior
de sua casa- com algum conforto pensar na vida, trabalhar sossegadamente,
contar com os quatro amigos que conhecemos há 37 anos,
mas que só se vêem acertando o encontro previamente
por telefone, quando então pedimos pizza e nos divertimos
bastante. Afinal, o que mais podemos esperar da vida?
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