MATERIAL DIDÁTICO - UM DEPOIMENTO

Publicado em "Educar em Revista" (Curitiba, PR: Editora UFPR, nº 20; jul/dez de 2002; p. 35-42)

Cristovão Tezza

Talvez um dos princípios mais universais de quem se interessa pelas questões pedagógicas em sala de aula, principalmente na área de língua portuguesa, seja o de que cada professor deve fazer seu próprio material didático. Em especial na universidade - sendo a universidade o lugar por excelência da produção de saber e não o de sua reprodução mecânica, essa máxima parece irretocável. Entre adotar manuais genéricos, dos quais freqüentemente apenas parte se aproveita, ou que muitas vezes acabam por desvirtuar o programa em função da obediência ao que já está pronto para consumo, e preparar o próprio material na medida certa das necessidades do programa e das carências das turmas, não há nenhuma dúvida de que o desejável é a segunda opção. Nesse sentido, aliás, a universidade costuma nutrir uma profunda desconfiança dos materiais didáticos, desconfiança afinal justificada, tantas são as barbaridades que se distribuem por aí muitas vezes com patrocínio ou estímulo oficial. Na área de língua portuguesa - mantendo-me na minha própria experiência - o problema mais grave dos livros didáticos tem sido a ausência de qualquer discussão mais profunda sobre o conceito de norma padrão; em geral, os manuais em grande parte ignoram todo o saber sobre a língua acumulado pela lingüística nos últimos cem anos, reproduzindo gramáticas normativas que vêm há séculos se copiando umas às outras. O manual didático, nessa área, é tipicamente aquele livro que ensina, burocrático, "a linguagem certa" - e, por motivos mais ou menos óbvios, é exatamente nesse tipo de modelo que a maioria esmagadora dos alunos e dos professores está interessada. O problema desta tal "linguagem certa" é que ela acaba por destruir uma compreensão mais generosa do potencial da linguagem - pior ainda, o seu modelo acaba sendo um empecilho para o aprendizado de um padrão escrito de qualidade.

Assim, temos todas as razões para propugnar uma espécie de guerrilha didática - que cada professor elabore seu próprio trabalho didático. Há argumentos de sobra para defender tal postura, desde o trabalho permanente de atualização que ele obriga até a percepção concreta dos problemas dos estudantes reais que estão diante do professor. Pelo menos até que alguém se veja, de fato, na situação de professor de muitas turmas no mesmo período letivo, o que tem sido a regra nas universidades privadas; no caso das públicas, essa é certamente a regra dos professores iniciantes, auxiliares ou assistentes. Na vida real, o ideal de autonomia didática acaba se esfarelando simplesmente pela impossibilidade. Não dá para preparar material didático todos os dias. O professor acabaria por ficar escravo de seus meios e não de seus fins. Além do mais, elaboração de "material didático" não é exatamente o objeto central da pesquisa universitária; pode-se mesmo dizer que não é sequer, rigorosamente, assunto universitário.

Mas se o sonho que subjaz ao princípio de que cada professor deve fazer seu material de sala de aula é uma utopia inatingível, o material didático (e tudo que diz respeito a ele) terá, sim, uma profunda relevância para a universidade. Pode-se dizer que essa relevância tem uma natureza política, tomando-se a palavra no seu sentido mais amplo e generoso. O material didático pode ser a ponte mais direta, imediata, entre o saber da universidade, a sua dinâmica e as suas transformações, e a vida real desta multidão que todos os dias assiste aulas pelo Brasil afora. Nesse sentido, a produção universitária nesta área tem por obrigação primeira ser universitária, isto é, descompromissada com a simples reprodução de saberes congelados ou estratificados. Sem perder de vista a sua dimensão didática, que é fundamental, o material produzido pela universidade deverá ter em vista (nunca é demais repetir) a dimensão crítica e transformadora.
Minha experiência como autor de livros didáticos - sempre em parceria com o lingüista Carlos Alberto Faraco - nasceu diretamente da sala de aula. Isto é, nasceu da necessidade que senti desde o primeiro dia de elaborar meu próprio material didático. Esse meu primeiro projeto, digamos assim, tinha um público mais ou menos específico, que não se confundia com nenhuma faixa tradicional: o calouro dos cursos de Letras, ou mesmo o estudante de primeiro ano de outros cursos. (Em Florianópolis, na UFSC dos anos 80, cheguei a dar aulas de língua portuguesa para alunos de matemática, física e medicina - pode-se imaginar o entusiasmo com que eu era recebido em sala.) O que a área de língua portuguesa contempla para o estudante de Letras? Naturalmente, há o leque das disciplinas específicas do curso - lingüística, teoria literária, gramática histórica, etc. Mas, neste leque, ficava sempre restando uma disciplina vaga, uma espécie de "Fundamentos da Comunicação", ou "Redação" ou algo do gênero, vaga pelos próprios programas que definiam tais disciplinas, indecisos entre o ensino de regras gramaticais (no que não se diferenciava em nada do ensino médio) e alguma "prática de redação" que também não tinha perfil nenhum. Eventualmente, alguma distinção técnica entre "dissertação" e "narração" ou outra bobagem do gênero que ainda hoje enche os manuais - e os alunos. Em geral, tais distinções puramente formais, congeladas em modelos centenários, ignoram completamente a vida real da língua escrita.

A idéia dessa disciplina fantasma que parece ter nascido ao longo dos anos 70, quando aumentou substancialmente o número de universitários no Brasil (o que dá a ilusão de que "o ensino caiu" e que "antes era bom", quando antes se contemplava apenas uma parcela mínima da população - os especialistas que me corrijam, se estou errado), era enfrentar, como hoje e sempre, o fato de que "ninguém mais sabe escrever". E o fato mais grave ainda de que o estudante do ensino médio chegava à universidade sem saber escrever. Ou a universidade lavava as mãos ("Isso é problema do ensino médio!"), ou enfrentava a questão em seu próprio quintal, que foi mais ou menos, bem ou mal, o que acabou acontecendo. Pois era exatamente esse o meu público alvo. Da preocupação em elaborar um material didático destinado a esse público - ou, antes, a levantar o que de fato deve ser feito com esse aluno a respeito do texto - nasceu o livro "Prática de Texto para estudantes universitários", que escrevi em parceria com Carlos Alberto Faraco. O embrião desse trabalho, aliás, já estava num livro do próprio Faraco, este em parceria com David Mandrik - "Português Atual" - destinado mais especificamente aos estudantes do ensino médio, embora seu espírito tenha sido o de enfrentar exatamente aquela faixa indecisa entre o ensino médio e a universidade.

A história da "Prática de Texto" foi longa. Começou em 1987, inicialmente em forma de apostilas limitadas, cópias xerox destinadas aos alunos de Letras e de Comunicação Social da UFPR, em "edições" experimentais sempre modificadas semestre a semestre. Num dado momento, começou a surgir uma grande demanda pelo material, dentro da própria universidade, até que ele acabou sendo publicado em forma de livro, em 1992, pela editora Vozes. Em 2001, o material foi inteiramente reformulado, ampliado e atualizado. Em outro momento, sentimos necessidade de diversificar o nosso material, tornando-o acessível - sem prejuízo de seu ideário teórico - a estudantes não universitários; desse projeto nasceu o "Oficina de Texto", cuja linha mestra didática passa sempre pela diferença entre oralidade e escrita.

Posso dizer que esse trabalho representou uma experiência extraordinária para mim. De certa forma, elaborar um material didático é sempre enfrentar sem subterfúgios a realidade concreta, a vida da sala de aula, do ensino; enfrentar as próprias limitações pedagógicas; descobrir o valor extraordinário da clareza como pressuposto, mais que didático, ético da linguagem; localizar com mais nitidez as relevâncias e as irrelevâncias do processo de aprendizagem; atualizar conteúdos; e, talvez o mais importante, a preparação de um material é em si um modo objetivo de prestar atenção em quem nos ouve, não por democratismo demagógico, mas para saber de fato para quem estamos falando. Ao mesmo tempo - e isso está muito claro para mim - a elaboração de um material didático representa a afirmação de uma escolha didática, de uma visão de mundo, de um ponto de vista; enfim, a afirmação de uma referência, o que me parece indispensável em tempos de relativismo generalizado; e, eticamente, todo material didático tem a obrigação de abrir o leque dos "universos possíveis". Como em qualquer pesquisa universitária, uma afirmação num material didático exige sempre uma fundamentação aberta ao estudante.

Vou tentar sintetizar aqui as questões que iam se apresentando para mim na vida real da sala de aula e que tentamos traduzir, Faraco e eu, na elaboração do material.

1. Toda questão sobre a língua deve começar de uma perspectiva lingüística, e não normativa. Isso me parece um tópico fundamental, e não só na universidade - o pressuposto lingüistico deve ser o ponto de partida de qualquer discussão sobre a linguagem; representa simplesmente a afirmação da ciência como a matéria primeira da qualquer projeto civilizatório. Mas, se não queremos assumir tanta pretensão, o conceito pode ser entendido também de forma puramente utilitária: um estudante com alguma base lingüística - isto é, dispondo de uma compreensão da diversidade concreta da língua, que nela se manifesta em aspectos formais distintos (na sintaxe, na morfologia, no léxico) - aprenderá mais facilmente a regra puramente normativa, porque saberá em que mundo essa regra funciona.

2. Assim, na perspectiva lingüistica, a noção de variedade é absolutamente fundamental - ela perpassa todos os usos da linguagem, da oralidade à escrita. É preciso dar as condições para que o estudante seja capaz de perceber a variedade lingüistica como expressão indispensável de sua própria realidade.

3. É preciso perceber a diferença entre língua e sua representação gráfica, ou entre oralidade e escrita, não simplesmente como um tópico avulso a ser decorado, mas como elemento constituinte dos usos da linguagem que determina universos gramaticais e valorativos substancialmente distintos.

4. É preciso perceber a norma culta ou língua padrão como uma construção histórica. Esse pode ser exatamente o momento em que o usuário da língua começa a vê-la como um "proprietário" dela - se a utopia didática estiver certa, o estudante terá, a partir daí, condições muito mais precisas de dominar o padrão escrito. Talvez não seja muita ingenuidade imaginar que se passa do estado de "obediência" para o estado de "compreensão".

5. Há um pergunta que deverá ser respondida, se todos os pressupostos acima estiverem corretos: para que serve a norma culta ou língua padrão? Essa é outra questão que me parece muito importante. Afinal, se os alunos sofrem tanto para dominar o padrão escrito, não seria indispensável que eles entendessem por quê? Até para decidir se é isso mesmo que eles querem.

Ao mesmo tempo em que estas questões lingüísticas são levantadas, é preciso, afinal, pôr a mão na massa na prática lingüística, digamos assim - o estudante precisa ele mesmo trabalhar a escrita, sem álibi. Aqui alguns tópicos nos pareceram relevantes:

1. Já há muito tempo a língua padrão não deriva dos textos literários. Pode parecer estranha essa afirmação da boca de quem escreve romances, mas, em sala de aula, esse é um pressuposto indispensável. A literatura é uma das linguagens contemporâneas, uma linguagem muito importante, é verdade, mas não pode servir de referência para os usos concretos da escrita cotidiana. Confundir padrão com literatura leva fatalmente à deformação da própria idéia de norma padrão, que passa a ser percebida (é claro que erroneamente) como um uso ornamental da língua. Essa visão, aliás, ainda é poderosa no ensino - e talvez seja responsável por boa parte do desastre que vemos na prática de texto dos alunos.

2. A compreensão de uma norma padrão passa pela percepção das dezenas ou centenas de linguagens que se estratificam na escrita cotidiana, desde os textos de horóscopos até os textos publicitários. Todas essas variedades são relevantes para o domínio do padrão - já que o próprio padrão não existe em si. Todo padrão é a consolidação de um gênero, um gênero socialmente e historicamente construído sobre a multidão de sub-gêneros da oralidade e da escrita, e é nesse terreno que se apreende a linguagem, incluindo aí as variedades orais.

3. Em nosso trabalho, procuramos ressaltar o fato básico (mas sobre o qual pouco se fala) de que no universo concreto da escrita há uma visível distinção entre padrão normativo (para dizer numa palavra, a norma exigida em um concurso do Banco do Brasil ou nos vestibulares, contemplada pelos tópicos gramaticais dos compêndios tradicionais) e um padrão real, isto é, a língua escrita de boa qualidade que representa o uso contemporâneo da linguagem brasileira em seus veículos de prestígio. Isto é, em praticamente todos os tópicos gramaticais há uma fissura crescente entre a norma escolar e a vida real da escrita; uma fissura, aliás, que não representa nenhuma tragédia, mas apenas o fato universal da mudança lingüística, mesmo na sua modalidade mais conservadora, a escrita. Essa é uma questão que não pode ser ocultada pelo professor, qualquer que seja sua posição diante do problema.

4. Perceber a distinção básica entre informação e opinião é extremamente útil para a prática de texto, até mesmo para a compreensão de que, de fato, uma coisa não existe sem a outra, mas a confusão entre esses dois universos costuma destruir o texto. Aliás, a típica redação escolar é uma amostra terrível deste mundo difuso em que a palavra escolar, fora do tempo e do espaço, não informa nem opina.

5. A especificidade da escrita apresenta exigências técnicas incontornáveis. Isto é, ninguém aprende a escrever nada sem enfrentar, na prática, a produção de textos, o que significa confrontar em cada curva no papel a distância difícil entre o que se diz e o que se escreve, desde a noção quase que puramente gráfica de parágrafo até a convenção abstrata da vírgula; desde a necessidade do uso dos relatores nos momentos em que a vida real soluciona com um dedo apontado, até o artifício dos plurais em seqüência, em desaparecimento na vida cotidiana. No terreno dessa prática, não podemos ter nenhum dogma - tudo que favoreça o domínio da escrita pode estar na cartilha, desde a simples cópia (essa grande injustiçada, podemos dizer, porque não escrevemos apenas "mentalmente" - a escrita é também uma permanente repetição de formas) até os exercícios mais complexos de transformação sintática. Em qualquer caso, considero extremamente recomendável que o material didático só trabalhe com textos que de fato existam no mundo real - principalmente nos tópicos gramaticais avulsos. Que, aliás - se o objetivo central é o domínio da escrita, e não a formulação de regras - devem ser sempre subsidiários, posteriores, complementares.

6. Finalmente (ou antes de tudo!): a palavra só faz sentido como texto, e não como frase. A gramática normativa termina no primeiro ponto que encontra. Mas a escrita só existe como texto.

Desse apanhado geral da minha experiência, faltou talvez frisar a qualidade maior de todo material didático, que tem a ver, afinal, com a natureza da vida: o inacabamento. É preciso sempre desconfiar dos compêndios definitivos; um bom material talvez seja antes uma sugestão de material didático, em que o rigor teórico não perca de vista o poder das intuições. Como todo mundo é (felizmente!) diferente, não será má idéia manter sempre viva no horizonte a utopia segundo a qual cada um deve criar seu próprio material, incluindo aí o estudante. Se não como realidade imediata, pelo menos como um sonho que se alimenta.

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