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LÍNGUA BRASILEIRA
Publicado em "Leituras Compartilhadas", revista de (in)formação para agentes de leitura (ano 6, fascículo 19; p. 13-15), publicação de Leia Brasil - Organização Não Governamental de Promoção da Leitura - www.leiabrasil.org.br
Cristovão Tezza
Que o português do Brasil é diferente do português de Portugal, sabemos todos. Se por escrito não são tantas diferenças assim, basta ouvir um português falando que já nos sentimos estrangeiros: Ora pois, diremos, é outra língua! Mas, no mundo dos padrões, são diferenças já oficializadas via gramática e dicionários. O que merece atenção especial, entretanto, é a própria diversidade brasileira, que parece ter ganho fôlego de alguns anos para cá. É mais ou menos como se o brasileiro passasse de repente a invadir a sua própria terra com a sua própria voz – e o resultado, é claro, desagrada. Esse é um terreno pantanoso, difícil de se focar com racionalidade.
Como de gramático e louco todo mundo tem um pouco – e como as pessoas que escrevem bem já têm por natureza um habeas corpus para dizer o que querem sobre a língua, a lingüística, isto é, a ciência que estuda as línguas (basicamente tentando responder à questão: “Como funcionam?”) parece não existir. Se há uma área em que o chamado “senso comum” ganha foros de ciência, essa área é a da linguagem. Se alguém dissesse hoje sobre medicina ou astronomia o equivalente ao que se diz por aí sobre a língua, já estaríamos todos mortos pelas ventosas medievais e o Sol giraria poderoso e indiscutível em volta da Terra. “Brasileiro não sabe falar”, “a língua portuguesa está acabando”, etc. – em geral são afirmações apocalípticas, imbuídas de um certo ímpeto lingüístico-punitivo, que ao mesmo tempo que confere autoridade ao falante (aquele chato que sabe duas regras de crase e sai por aí, furibundo, catando milho nos jornais), esmaga os outros pelo que eles têm de fundamental: a linguagem. E quando aparece alguém dizendo que é preciso pensar a questão da língua brasileira de outro modo, imediatamente sacam do bolso a acusação mortal: “Ah, então vale tudo agora? Vamos todos escrever errado, cada um faz o que quer, a língua é essa esculhambação?” Não, não é uma resposta de bar, ao calor da cerveja – já ouvi grandes escritores, de cujas obras aliás sou leitor devoto, dizendo exatamente a mesma coisa.
Antes de mais nada, é bom rever aquele feijão-com-arroz inicial de quem quer pensar a língua. Um bom roteiro seria, primeiro, separar língua de escrita, que são realidades sociais profundamente diferentes (embora, para o leigo, pareçam a mesma coisa) e que na vida real cumprem papéis bastante distintos. O segundo ponto é perceber que toda língua é de fato um conjunto imenso de variedades gramaticais; do ponto de vista histórico, o assombroso é o esforço de unidade, e não a diáspora dessas variedades, que tem sido a regra universal desde Babel. E a terceira escala desta viagem é o conceito de língua padrão – justamente aquela variedade especial, de prestígio, que o senso comum tende a confundir com a própria idéia de “língua”, substituindo ou ignorando ou suprimindo a belíssima massa verbal viva, cotidiana, das milhares de gramáticas do nosso dia-a-dia, que lhe dão consistência, alimento e vitalidade. A língua padrão (em seu sentido principal) é uma construção de artifício, vinculada à representação gráfica da linguagem, historicamente determinada e realimentada sempre pelas instâncias de poder político, religioso, social e cultural. Não há nada de mau ou errado nisso – por exemplo, a língua padrão é, em todas as sociedades complexas, praticamente o único meio pelo qual entramos na perspectiva da História, no mundo das leis e dos regulamentos e na riqueza do patrimônio cultural. A questão central a guardar aqui é que esse padrão não é “sagrado”; por ser uma construção da cultura e da vontade política, ele se transforma e se renova ao longo do tempo. Ele não é “a língua” – é a sua cristalização formal momentânea.
Por que hoje no Brasil se fala tanto que “o português corre perigo”? Há muitas explicações para esse mito, desde a idéia de que a língua de Carlos Drummond de Andrade está ameaçada pela placa de hot-dog da esquina (o que gerou até um inacreditável projeto de lei para proibir estrangeirismos), até a constatação de que houve uma “decadência do ensino”. O medo do hot-dog é, perdão, ridículo – o choque dos empréstimos lingüísticos é traço inerente a toda língua e sinal de sua riqueza, não de sua decadência; um breve olhar pela história do português já nos informa que atravessamos os séculos devorando estrangeirismos (tupi or not tupi!). Quanto ao ensino, aí sim, chegamos a outro ponto, mas em outra perspectiva. O ensino era “maravilhoso” quando se destinava a uma parcela pequena da sociedade brasileira, seus 30% urbanizados e letrados da classe-média que cresceu até os fins dos anos 1960. Mas nos últimos 40 anos processou-se uma ampliação significativa do alcance escolar ao mesmo tempo em que se consolidou a mudança do espaço urbano brasileiro, cuja população suplantou a rural – e nesse processo, a “língua brasileira” mostrou a cara, quase que subitamente. O padrão elitizado que se mantinha apenas numa faixa da população não encontrou vontade política para se universalizar junto com a escola que se expandia. Ao mesmo tempo, a ampla mobilidade social e geográfica do povo brasileiro, aliada ao crescimento das comunicações de massa trouxe à tona, agressiva, esta língua subterrânea que, até então, só entrava nos salões devidamente paramentada por Guimarães Rosa ou confinada no exótico da chamada “cultura popular” ou “caipira”.
Em outras palavras, a língua brasileira, hoje, está à solta. E é claro que essa presença viva – como ocorreu e ocorre em todas as línguas do mundo, em todas as épocas de forte mudança social e interpenetração de linguagens – provoca modificações nas formas do padrão normativo. Algumas dessas modificações são iluminadas fortemente, e portanto encontram mais resistência – o controle sobre o verbo haver, por exemplo (até hoje o “tinha uma pedra no meio do caminho” é “inaceitável”, por incrível que pareça) – e outras passam debaixo da porta, porque os letrados não não as reconhecem como “erro” (o mundo rico e vago das regências, por exemplo, como “implicar em”, ou o corte das preposições nas orações relativas – “tenho medo que ele faça isso”). A riqueza do imperativo duplo brasileiro (diga isso / diz isso, vem / venha), que se criou no longo processo de reorganização do nosso sistema verbal pelo advento do “você” assumindo o lugar do “tu”, é considerado “erro” por uma visão tacanha (e, esta sim, ignorante) da língua; e muitos manuais insistem, por exemplo, na distinção “este/esse”, praticamente desaparecida da vida real da linguagem, falada ou escrita. Mas há esperança: o melhor documento sobre o padrão real brasileiro hoje está justamente no seu maior dicionário, o Houaiss, que, em seus exemplos, tem o ouvido muito mais atento às marcas da mudança da língua brasileira que as gramáticas escolares que andam por aí.
O caminho da assimilação de formas novas, no padrão escrito, é sempre lento. Não precisamos ter medo delas: o padrão brasileiro é de uma incrível vitalidade. Língua nenhuma tem “proprietários”, mas uma certa faixa escolar de letrados imagina-se, indignada, brandindo uma imaginária escritura passada em cartório, dona da língua. Numa coisa eles estão certos: o padrão escrito é, de fato, uma construção política, e portanto depende de controle; o que é preciso saber, agora, é que ele muda e que ele deve ser, em última instância, a expressão de seus usuários. Já está mais do que na hora de pensar em uma gramática normativa brasileira que, sem perder de vista o seu eixo histórico, abrisse algumas portas mais generosas à realidade lingüística que se escancara em torno. Seria muito bom se o padrão das gramáticas normativas se aproximasse mais do padrão real dos nossos bons escritores e jornalistas, que, mesmo quando não sabem disso, estão transformando a língua todos os dias. Não, não é que agora “vale tudo” – na criação da língua padrão, como na velha sabedoria, só “vale o escrito”.
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