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PARTÍCULAS ELEMENTARES
Texto apresentado no debate sobre o livro Partículas
Elementares, de Michel Houellebecq, em 4 de novembro de 1999,
no auditório da Folha de S. Paulo
Cristovão Tezza
Antes de mais nada, gostaria de agradecer o convite para participar
deste debate sobre o livro de Michel Houellebecq, ao lado da professora
Leda Tenório da Motta, do romancista Bernardo Ajzenberg
e do próprio autor, presenças, aliás, que
por sua qualidade me deixam tranqüilo quanto aos rumos desse
encontro. Peço licença para uma breve apresentação
pessoal, que tem diretamente a ver com o tema de "Partículas
Elementares", o romance que Michel Houellebecq está
lançando hoje. Talvez eu devesse falar de improviso, para
ser fiel às minhas origens, os famigerados anos 70 que
estão no centro da minha formação - tudo
que sou, penso e escrevo, tudo que de certa forma colaborou para
que eu seja esse ser incerto que sou, veio daquela efervescência
confusa que a partir de 1968 deu uma outra face ao mundo, para
o bem ou para o mal. Falaria certamente de improviso se este ano
fosse, digamos, 1972, quando eu percorria o Brasil com o precário
Centro Capela de Artes Populares, liderado pelo guru Wilson Rio
Apa, propugnando um teatro popular de rua que integrasse a vida
e a arte. De sandálias, calças velhas, sempre sem
dinheiro, cabelos nos ombros e uma faixa vermelha na testa, os
meus dezenove anos recusavam o sistema, a universidade, a cultura
letrada, a família, o império da mídia, o
poder econômico, os militares, os políticos - meu
primeiro voto na vida, em 1970, no apogeu da ditadura, foi nulo.
Ao lado dessa barbárie assumida - barbárie aos olhos
de hoje -, havia também uma poética incompetência
para sobreviver: fiz um curso de relojoaria por correspondência.
Consertando relógios numa pequena cidade, como um artesão
medieval, teria supostamente tempo para criar a minha arte e viver
em comunhão com a natureza, lendo Herman Hesse e Khrisnamurti,
com prefácios de Aldous Huxley.
Pelas ironias da minha história - e principalmente pelo
fato de que eu já estava determinado a ser um escritor,
esse era o meu desejo central - vim parar no extremo oposto do
projeto inicial: hoje, trinta anos depois, sou um professor universitário
que estuda a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, e um romancista
de temática urbana já sem nenhuma ilusão
comunitária, mística ou religiosa. Escritor, hoje
só consigo falar por escrito; em tudo, sinto que é
o universo da escrita que me conduz. Meu olhar sobre o imaginário
que me formou passou a ser, ao longo dos anos, crescentemente
impiedoso. Para dizer em uma frase, à medida em que a escrita
avançava na minha vida, mais a minha infância existencial
se tornava, mesmo, apenas infância - o império do
irracional. Tivesse eu o mínimo pendor religioso, qualidade
de que sempre fui desprovido, é possível que encontrasse
algum caminho seguro naquelas trevas da barbárie assumida.
Mas Khrisnamurti me atraía não pela possibilidade
de transcendência, mas pelo mecanismo de sua frase, que
me parecia lógico; e cada vez me era mais difícil
o esforço de colocar os arquétipos de Jung nos trilhos
de algum mundo real. De qualquer forma, o tempo é irredimível
- eu sou, também, esse passado. que hoje contemplo a uma
distância tranqüila.
Tudo isso me veio à cabeça lendo o livro de Michel
Houellebecq - que, antes de qualquer consideração
outra, é uma narrativa fascinante, irresistível,
para usar o chavão dos resenhistas, que combina de forma
equilibrada um certo tom de fábula cientificista à
Kurt Vonnegut Jr., pensando livremente sobre os rumos da cultura
contemporânea, com uns toques de Charles Bukowski, a obsessão
do sexo permeando todas as páginas (até conhecer
Houellebecq eu achava que o Brasil era o paraíso da liberdade
sexual, mas errei; pelo livro, esse paraíso é a
França...), mas frio, um sexo ginecológico dissecado
objetivamente, sem transgressão, sem tensão nem
tesão; e o romance está pontilhado de parágrafos
rápidos de ciência, da física quântica
à biologia molecular, e de tiradas filosóficas aqui
e ali, tudo debaixo de um narrador ágil, coloquial, contemporâneo
e totalizante, a cujo serviço toda a visão de mundo
do livro se articula.
Nesse momento o olhar sobre o livro se divide - o leitor precisa
decidir o que ele está lendo, exatamente; em que registro
"Partículas Elementares" se enquadra como linguagem
literária. O tom dominante - pelo menos o que me pareceu
o melhor no livro - é o da sátira, uma sátira
demolidora que passa sobre a cultura dos anos 70 e seguintes como
um rolo compressor. Todos os sinais da época aparecem ali,
todas as atitudes e os comportamentos, todos os projetos e leituras
- sob o olhar competente e impiedoso do narrador que organiza
a lembrança daquele mundo. Tudo - exceto a alma, digamos
assim, mas isso faz parte da sátira. A qualidade da sátira,
por ser o império de um único ponto de vista, é
diretamente proporcional à qualidade intelectual do satirista,
à força crítica do seu impulso narrador e
à coerência de sua visão de mundo. Sem esse
centro, ela resvala facilmente para o sarcasmo, o ressentimento
e a gratuidade. Não é o caso aqui - nas mãos
de Houellebecq, o comportamento dos anos 70 ganha uma luminosidade
hilariante, ridícula e cruel. Uma crueldade semelhante,
digamos, à de Sinclair Lewis quando criou o seu Babbitt,
o protótipo do pequeno-burguês rotariano fascinado
pelos objetos de consumo e pelo lustro de seu automóvel,
defensor da família, da moral e dos bons costumes, exatamente
o modelo do ser mesquinho e desprezível que justificaria,
décadas depois, romper com tudo, chutar o pau da barraca
e tentar reconstruir um mundo capaz de criar alguma coisa melhor.
Que foi o que se tentou fazer, a partir dos beatniks...
A sátira dos dois meio-irmãos, filhos da cultura
libertária dos anos 70 e exatamente por isso portadores
de toda espécie de praga existencial, da falta de sentimentos
autênticos à obsessão onanista com o prazer
sexual, faz um belo sentido ficcional - é muito convincente
como material literário em sentido estrito; mesmo irresistível,
para repetir o chavão. Mas o narrador de "Partículas
Elementares" tem pretensões declaradamente maiores;
a construção da fábula, pontilhada de referências
filosóficas e culturais pretende postular nada menos do
que alguma coisa chamada de "mutação metafísica"
- postular ou condenar? Num processo vertiginoso de simplificação
ficcional, o amplíssimo movimento cultural que se sintetiza,
como slogan de consumo, nas figuras típicas dos anos 70,
vai se transformar no livro na encarnação de algum
mal metafísico, um certo instinto homicida responsável
pela falta de amor, de moral, de bons costumes, de desordem, de
caos, de individualismo irresponsável, de bagunça,
vai se transformar na falta de tudo aquilo que norteava a cabeça
pequena de Babbitt na solidez bruta de seus anos vinte.
Uma vez detonada a tese central do livro, e escravo dela, o narrador
começa a escorregar em inconsistências, algumas inocentes,
como a idéia bizarra de que a mulher é capaz do
amor, mas o homem não, o que pode ser uma boa metáfora,
mas certamente é péssima ciência; e outras
nem tão inocentes, como o recurso sistemático do
narrador de comparar processos biológicos com formas da
cultura, algo que nos remete diretamente ao naturalismo mais mecânico
da virada do século - do outro século, bem entendido.
Em tudo transparece a idéia de um sujeito filosófico
mecanizado pela biologia, um sujeito monolítico, unitário,
desprovido de interação e incapaz de transformação;
um objeto, em suma, no sentido mais opaco e avulso do termo. Algo
que, de fato, faz as delícias do positivismo. O poder da
sátira, agora, naufraga a serviço de uma ou duas
palavras de ordem até a rápida, digamos, "solução
final" do livro.
Sendo uma obra de ficção, é claro que tudo
vale - o estatuto da ficção é justamente
esse álibi maravilhoso que nos permite revelar sempre,
e apenas, o peso relativo da consciência humana, o fato
insuperável de que ela é uma consciência entre
outras, e que apenas nesse espaço social cria-se qualquer
sentido; não é a verdade que é o objeto da
ficção, mas o ato de pensá-la; sem essa ressalva
essencial, a literatura se transforma em panfleto, em discurso
autoritário, ou mesmo em voz totalitária - fora
da qual toda palavra é erro. O narrador de "Partículas
Elementares", ao reorganizar as vozes de Michel e Bruno,
os dois meio-irmãos que o livro reconstrói, acaba
por se fechar na sua concha monolítica. A crescente simplificação
das variáveis que o livro instaura num primeiro momento
acaba por levá-lo ao beco sem saída do próprio
irracionalismo que pretende condenar. A busca da integração
entre arte e vida, essa utopia igualitária que nos acompanhou
e nos enganou tanto tempo - o máximo que a estetização
da vida consegue criar é uma parada militar, com toda a
sua beleza, a sua ordem e o seu progresso - parece que nos levou,
segundo o livro, à criação de uma nova espécie?
E uma nova espécie da pior espécie?
Bem, não importa - ficam aqui no ar as provocações
sugeridas pelo brilho literário de "Partículas
Elementares". Mas o que realmente me intriga - e esse talvez
seja o momento de descobrir - é a razão de Michel
Houellebecq ter se encantando tão profundamente pela filosofia
de Augusto Comte. Afinal, eu sempre achei que nós, brasileiros,
tínhamos o monopólio do exotismo...
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