|
VIAGENS
Cristovão Tezza
Fiz duas viagens à Alemanha, inesquecíveis. A primeira
aconteceu em 1975. Eu estava matriculado no primeiro ano de Letras
na Universidade de Coimbra, em Portugal, mas a bendita Revolução
dos Cravos fechou todos os primeiros anos. Tomado do melhor espírito
de aventura anos 70, saí de mochila pelo mundo, pedindo
carona. Nessa primeira investida, dobrei a estrada e cheguei até
Genebra - perfeita em tudo, exceto pelas máquinas, que
não davam o troco do ônibus. Sem emprego, voltei
por Barcelona, onde passei um único dia, idílico.
Num calçadão maravilhoso - e eu achava que Curitiba
tinha inventado o calçadão! - comprei um exemplar
de Historias de Cronopios y de Famas, do meu ex-guru Cortázar,
visitei museus, ruas, praças. Até hoje, meu sonho
de paraíso é uma casa de dois andares erguida na
persistente memória de Barcelona. Voltando a Coimbra, recarreguei
as baterias para enfim entrar na Alemanha, desta vez mais pragmático:
gastei tudo que tinha em uma passagem de trem Coimbra-Frankfurt.
Com o troco, cortei os cabelos, comprei um colete, levei à
mão minha velha olivettinha, e, na fronteira, um exemplar
do Financial Times, que eu fingia ler atentamente enquanto o policial
investigava meu passaporte. Dois vagões adiante, um amigo
de Blumenau foi despachado de volta, com a gaiola de passarinhos,
a garrafa térmica e um saco de farinha.
Desembarquei na Hauptbanhoff com 23 escudos no bolso e nenhuma
palavra em alemão na cabeça. Talvez não seja
exagero dizer que os 40 minutos que se seguiram - colocando no
bolso as moedinhas de pfenning que o câmbio me rendeu, saindo
à rua, atravessando uma ponte sobre o Main e avançando
em direção a um certo Hospital das Clínicas
- foram os mais intensos e apavorantes da minha vida. No prédio,
meio que por instinto avancei pelos subterrâneos até
chegar a um certo Herr Pinheiro, um argelino de sotaque português,
lacônico, que me estendeu um uniforme branco. "Você
começa imediatamente". Também não será
exagero dizer que minha entrada, todo de branco, na lavanderia
do hospital, representou um dos momentos mais brutalmente felizes
da minha vida - eu ria sozinho, enquanto uma senhora alemã
(o único alemão que eu vi de perto nesta minha primeira
viagem), de aparência feroz, mas com uma alma boníssima,
explicava-me, numa sucessão didática e paciente
de gestos e sons, como esticar os lençóis e colocá-los
na prensa da máquina, retirando rapidamente as mãos,
de modo que - Ashbelt! Dlüssrl!, ela me puxava pelo pescoço
para eu ver o outro lado - os lençóis magicamente
se dobravam e passavam, caindo como plumas num carrinho que, assim
que enchesse, seria imediatamente trocado por outro vazio por
um turco peludo e simpático, com quem eu trocava interjeições
e sorrisos.
E de onde vinham os lençóis? De um balcão
gigante, atrás do qual, como um imperador, o espanhol de
boca mais suja que eu jamais conheci - ofensas inimagináveis,
sorridentes e ininterruptas à Madre de Dios, à Santa
Virgem, a Cristo, a Franco - comandava um guindaste, um conjunto
de garras que tiravam de um forno giratório e fumegante
quantidades imensas de lençóis secos, arremessando-os
diante de mim. Era uma competição: eu jamais conseguiria
descansar - passado o último lençol através
da máquina, e lá vinham aquelas toneladas brancas
sob o comando do espanhol e de sua risada. Súbito, ele
repetia para ninguém sua aposta metafísica, braços
abertos: "Cuatro millones de pesetas! Cuatro millones de
pesetas!"
Ao meio-dia, senhoras portuguesas (há 30 anos na Alemanha,
sem falar alemão) me trouxeram pão, queijo, marmelada,
vinho - para o doutor de Coimbra. Foi absolutamente inútil
explicar que eu não era doutor. Agradeci, comovido. Numa
porta dos fundos, abria-se um salão com um mundo de costureiras,
simetricamente dispostas atrás das máquinas de costura.
Apaixonei-me por uma italiana, belíssima, a sétima
da terceira fila; nos intervalos, minha Claudia Cardinale lia
fotonovelas e eu mastigava o pão. Jamais conversamos -
mas que olhares! À tarde, mais novidades: fui transferido
para a limpeza geral do prédio, sempre em duplas agora.
E à noite, o melhor de tudo: a cozinha do hospital. Trenzinhos
elétricos traziam milhares de bandejas que separávamos
em esteiras automáticas que jogavam tudo numa caverna de
vapores de onde voltavam para subir ao hospital no dia seguinte
e assim até o fim dos tempos. Às dez da noite, alimentado
e exausto, consegui provisoriamente um quarto subterrâneo,
uma espécie de depósito abandonado; na porta de
vidro, eu via a palavra mais duradoura que jamais encontrei, algo
como Libstrasshoffblüesdramgstderr. Deitado num sofá,
sonolento, contemplava a palavra de trás para diante, ressaltada
pela luz do corredor. Acho que nessas noites absolutas nasci como
escritor.
A segunda viagem à Alemanha aconteceu em - mas lá
se foram as sessentas linhas da crônica.
("Quase duas viagens à Alemanha" - Gazeta Mercantil,
Sup. Fim de Semana, 29 e 30 de julho de 2000 - p. 22)
voltar
|