"Urupês": memórias da liberdade

Cristovão Tezza


O primeiro livro que li inteiro, além das cartilhas de escola, foi “A chave do tamanho”, de Monteiro Lobato, um volume ensebado que escolhi na Biblioteca Pública para inaugurar minha carteirinha de sócio. Não sei bem por que peguei logo esse livro, um dos mais espessos, e com poucas gravuras em preto e branco. Um momento histórico da minha pequena história: não fui amante de livros de nascença (alguns vivem essa dádiva) e nos aniversários sofria antecipadamente com a perspectiva de receber, de presente, não uma espingarda de rolha, uma kombi de plástico ou um time de futebol de botão, mas um livro, um livro certamente edificante que eu largaria na segunda página.

Pior que isso, só ganhar um pulôver, ou, o fim, uma calçadeira para o sapato vulcabrás da promoção. Assim, foi com certo orgulho e algum exibicionismo que levei aquele exemplar para casa -talvez ainda houvesse salvação para mim. Tempos antes eu havia sido reprovado em redação, prova eliminatória, no exame de admissão ao ginásio do Colégio Estadual do Paraná, o que me obrigara a freqüentar o famigerado quinto ano primário, reduto de marmanjos incapazes e desqualificados em geral.

Li “A chave do tamanho” em um dia e meio, num estado de encantamento: tudo ali me dizia respeito. Não era só Monteiro Lobato que eu descobria: eu descobria, afinal, o poder transcendente da leitura. O velho chavão de alguém que por um fato qualquer “se torna outra pessoa” foi verdadeiro para mim, terminada a leitura do livro. E lá estava eu de novo na Biblioteca Pública, carteirinha na mão, para ler tudo que houvesse de Monteiro Lobato na prateleira. Metódico -talvez o termo “febril” seja mais adequado-, segui o roteiro que a própria coleção da Editora Brasiliense oferecia, uma espécie de página-guia com o título “Obras completas de Monteiro Lobato”, em 43 volumes.

Ao lado, a fotografia do meu herói, com aquelas sobrancelhas monumentais. Comecei pela chamada 2ª série, “Literatura Infantil”, em 17 volumes, um a um, só pulando a seqüência quando o volume da vez já havia sido emprestado. Muito da minha concepção de literatura derivou desse conjunto: a literatura entendida como um corpus integrado de narrações, uma “coleção”, uma família literária -nenhum livro está sozinho no mundo. Uma paixão que se estendeu ao teatro; nessa época, montei um teatrinho de papelão, criei fantoches com os personagens do Sítio do Picapau Amarelo e reescrevi algumas histórias de modo que só houvesse duas figuras em cena de cada vez -só tenho duas mãos, e o sentimento pela vizinha da minha idade que, desgraçadamente, não se interessava por Monteiro Lobato nem pelo meu teatro de fantoches. Um papelão, afinal, sem público, mas não me importava, dramatizando sozinho, eu, Emília e o Visconde de Sabugosa, minha tragédia adolescente.

Terminada a série infantil e o terceiro conjunto da coleção, de traduções e adaptações –“Contos de Andersen”, “Robinson Crusoe” etc.-, era hora de entrar na parte principal, “Literatura Geral”, o que seria, enfim, minha passagem ao mundo adulto. Mais que isso: era hora de comprar um livro, de ser proprietário de um livro, de começar a minha coleção, a minha biblioteca. (Suponho que quando Bill Gates colocou no Windows essas etiquetas ridículas -“meu computador”, “meus documentos”, “meu porta-arquivos”- certamente tocou numa das chaves da adolescência perpétua, o imaginário dos 13 anos de idade como a utopia mental do universo.)

Dinheiro para comprar livro não havia, naqueles tempos difíceis. Assim -milagre!- sugeri à minha mãe que, de aniversário, me desse um livro. E anotei o título num papel: “Urupês”, de Monteiro Lobato, o volume 1 da “Literatura Geral”. Tenho até hoje esse exemplar, uma brochura com um desenho geométrico, azul, na capa, que padronizava a coleção (tempos depois comprei o número 2, “Cidades mortas”, que tinha o mesmo desenho em verde), com a dedicatória esperançosa da minha mãe, e a data: 21 de agosto de 1965, os meus 13 anos. Era a 12ª edição de “Urupês”, de 1962, e o meu exemplar traz o número 1864 -naquele tempo os livros eram numerados.

Na página de rosto, carimbei -eu tinha um joguinho de carimbos, com tipos cambiáveis- o nome da minha coleção nascente: Biblioteca Liberdade, de acordo com a visão de mundo dominante na época, dominante porém derrotada, e no canto superior direito o número do exemplar: 1. O volume tem 300 páginas -na página 150, exatamente na metade, está minha rubrica adolescente, imitando o hábito misterioso de meu pai, que costumava assinar os seus livros exatamente na página central. O engraçado é que, abaixo da rubrica, escrevi “nº 5”, o que indica talvez que eu já fosse proprietário de quatro livros, dos quais não tenho memória -mas na classificação muito mais importante da Biblioteca Liberdade que eu acabava de fundar, “Urupês” seria o volume inaugural.

O livro era uma edição crítica de “Urupês”, muito bem editada, contendo uma breve biografia de José Bento Monteiro Lobato, por Edgard Cavalheiro (mais tarde eu leria a biografia completa, em dois volumes, escrita pelo mesmo autor), relação de obras, fontes bibliográficas para o estudo de Lobato, observação sobre a ortografia lobatiana, nota sobre a relação dele com a Academia Brasileira de Letras e até as homenagens da geografia -em São Paulo, há uma cidade de nome Urupês, e outra chamada Monteiro Lobato. Além disso, trazia as ilustrações em bico-de-pena das primeiras edições do livro, de autoria do próprio Lobato. E, é claro, a coletânea de contos, acrescida do prefácio da segunda edição, com o artigo “Velha Praga” e o breve ensaio que dá título ao livro, “Urupês”.

Enfim, eu tinha diante de mim não um pacífico livro de contos, uma tranqüila obra de ficção a ser degustada ou um objeto a ser avaliado estritamente pelo seu caráter artístico, essa perspectiva que nas décadas seguintes seria dominante -para mim, “Urupês”, meu primeiro livro adulto, representava na verdade uma declaração de guerra. Lobato não escrevia livros; ele tomava atitudes. Tudo nele era problemático, agressivo, opiniático, independente, solitário. Claro que não é o caso aqui de analisar “Urupês” na frieza histórica, no seu papel no modernismo brasileiro, um trabalho de especialistas. O que estou tentando reconstituir com os cacos da memória, mais de 30 anos depois, é a natureza dessa influência na minha formação, a partir de um livro difícil para uma criança.

Primeiro, o choque com a linguagem -saído do coloquial vivíssimo de sua obra infantil, eu dava de cara com um vocabulário que a cada duas linhas me obrigava a uma viagem ao dicionário, sem falar da sintaxe com fortes traços lusitanos. Na segunda linha do primeiro conto, aparecia um “dava azo á dúvida”, com a crase ao contrário; adiante, um “sabe-lo-ás em tempo”. E, em cada parágrafo, o narrador tomava uma posição concreta e agressiva sobre as coisas do mundo, para o que a literatura propriamente dita servia de escada, sempre fiel à sua ortografia pessoal (que aqui transcrevo fielmente): “Toda gente” é um monstro com orelhas d’asno e miolos de macaco, incapaz duma ideia sensata sobre o que quer que seja.

No ensaio “Urupês”, de fato um manifesto que dispensava o truque da ficção, Lobato avança a dizer o contrário de “toda gente”, fazendo do nosso exótico caboclo, essa glória de um Brasil puro, autêntico e não contaminado pela corrupção civilizada, um “Jéca Tatú” cujo “grande cuidado é espremer todas as consequencias da lei do menor esforço -e nisto vai longe”. A ponto de preferir banquinho de três pernas -“inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão”.

O instinto crítico de Monteiro Lobato vai se misturando com um humor irritado e irresistível, um amontoar de paradoxos em que o tema de seu texto será sempre a transformação do Brasil inteiro. Lamentando as “benerencias sem conta da mandioca”, que afinal mantêm o Jéca vivo, Lobato diz que se a mandioca medrasse na Inglaterra, “talvez os vissemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tamisa”. E quanto à arte do nosso Jéca? “Nada”. Menos que o homem das cavernas, que “entalhava perfis de mamutes em chifres de rena”. Em suma, “o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas”.

Impossível ficar indiferente a Monteiro Lobato. Ao mesmo tempo em que ele faz da vítima o culpado -há quem diga que seu ódio ao caboclo refletia apenas seu fracasso como fazendeiro-, e de certo modo deixa transparecer os preconceitos de raça e de um darwinismo social típicos da ciência da época (que impregnaram uma obra do porte de “Os Sertões”, por exemplo), há nele, mais que tudo, como uma ética, esse horror de vísceras à cultura do “coitadinho” que afinal permeava e permeia grande parte das relações sociais brasileiras, do caboclo ao senador.

O prazer da independência era o que eu apreendia, muito mais que um ideário estético. Uma independência que chegava ao ponto de contestar a grafia oficial da língua padrão, esse último reduto do sagrado na nossa cultura leiga. Hoje, quando tudo que se discute nos meios de comunicação a respeito da língua brasileira são as regrinhas que caem no vestibular, repetidas com veneração em meio a uma profunda ignorância lingüística que às vezes sequer distingue língua de grafia, a figura de Monteiro Lobato -a sua nitidez- dá saudade.

Mais que a leitura de um livro de contos, eu encontrava naquela edição de “Urupês” uma espécie de rumo existencial, uma biografia, um pacote completo para pensar o Brasil e o mundo, da ortografia pessoal ao horror à Academia; dos grandes projetos fracassados, editoras e poços de petróleo, à denúncia social; do profundo americanismo, como valor, ao profundo nacionalismo, como prática; do modernismo de “Urupês” ao conservadorismo obtuso do crítico de arte -em suma, um herói da adolescência, com todas as pontas e as contradições que isso significava.

Do ponto de vista estético, ficou pouco de Lobato. O sentido principal de seu maior sucesso, a extraordinária obra de literatura infantil, perpassou tudo que ele escreveu: a transitividade da literatura, o texto como instrumento, a literatura a serviço de uma causa, a criação como tese. Envelhecida a tese, a obra submerge ao peso de seus limites. Um desses limites, os traços de um racismo atávico, que descobri surpreendido ao reler seus livros para minha filha -traços que não teriam nenhuma importância se fossem obras inscritas no universo simplesmente da literatura (seria tolo discutir, por exemplo, se Shylock é mostra de anti-semitismo), mas em obras objetivamente educadoras, território em que a literatura infantil se inscreve, goste-se ou não disso -a chamada literatura infantil é uma literatura didática, no sentido estrito do termo. Anastácia, a “negra beiçuda”, congela-se nas mãos de Lobato num papel social e cultural pré-determinado, enquanto todo o resto do mundo vive a transformação como valor. Para a percepção de uma criança, esse é um quadro mental considerável.

Finalmente, havia em “Urupês” -isto é, naquela biografia literária, na imagem de Monteiro Lobato que eu absorvia apaixonado- um ideário político, uma exigência de escolhas, de opções, de decidir o que fazer como projeto existencial. O livro caía na minha mão um ano depois do golpe de 64, em breve haveria o sobre-golpe de 68, e o Brasil afundaria em suas duas décadas de atraso militar, enquanto a alternativa mais radical -mas é como se não houvesse alternativa- era, vista de hoje, um totalitarismo também militar. Assim, a solidão lobatiana, a atitude implícita na sua arte, aquela independência ranheta -porque, de fato, Monteiro Lobato é um dos grandes solitários na nossa história- representou uma ótima companhia para a minha passagem à vida adulta.

 

Publicado em Trópico, revista virtual do UOL


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