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VEJA PARANÁ
Suplemento Regional da Revista Veja
25 de setembro de 1991 - P. 14-15
O OLHAR DE CURITIBA
Reclamam de Dalton Trevisan, descobrem seus defeitos e lhe
cobram empadinhas. Mas o santo homem continua sendo o paradigma
de Curitiba, a avessa, a indecifrável
CRISTOVÃO TEZZA
Em nenhum lugar do mundo o olhar do Outro será tão
mortal como em Curitiba. Não ria na festa, exceto como
disfarce; não chore no enterro, a menos que estejam vendo;
não erga os braços, temerário assim no meio
da rua. Em último caso, protegido no bar, solte os nervos
da gargalhada, do tapa demasiado forte nas costas, do palavrão
retumbante e confira no mesmo instante o viés alheio: a
extroversão não é alegria, é um risco
calculado. A fila de ônibus é feita de Outros - por
isso que se respeita. Não fale tão alto, exceto
quando bêbado - e então fale tudo de uma vez, tudo
aquilo que você vem observando a vida inteira e nunca lhe
deram chance. Leia os jornais da terra, que são ruins de
pedra, e vigie nas entrelinhas o que os calhordas andam inventando
nos palácios. Investigue cada nome da coluna social: o
próximo pode ser você, e mal acompanhado. Melhor
nem sair no jornal: os outros vão rir, e a inveja vai te
comer. Nas cerimônias públicas, fique firme, a gravata
ajeitadinha, e meta o olho na calça curta da autoridade,
na peruca torta da madame, na viadagem do orador, no ridículo
daquele um que está sentado duas poltronas à frente
cheio de caspa no paletó. Quem é esse que sem mais
nem menos lhe pede informação na rua? Não
é daqui, senão ia sozinho.
Como sozinho vai Dalton Trevisan, desde sempre, o paradigma de
Curitiba, a avessa, a indecifrável, a incorruptível
Curitiba, que por nenhum preço do mundo aceita um carimbo
na testa, por mais alto que a banda toque.
E como reclamam dele! Como metem o pau, como descobrem defeitos,
como lhe cobram empadinhas! E as pedras, então? Rútilas,
cortantes na cabeça. De tal modo que ele, santo homem,
decidiu compilá-las em dois ou três parágrafos
- Quem tem medo de vampiro? - para maior facilidade de manuseio.
Inútil: o jornalismo ingênuo decidiu que ele fazia
autocrítica! Um curitibano fazendo autocrítica,
já se viu?! Ridículo! Nem no Partidão! Antes
beber da água do Rio Belém!
Em outra encarnação - Curitiba está povoada
de espíritos - Dalton Trevisan também foi curitibano,
quando a cidade sequer existia; e ao nascer foi só esperar
que o Vampiro lhe desse uma face, sempre a mesma, de microscópicos
relevos que ocupam todas as ruas, por mais que tombem as casas,
que se atravessem os expressos, que se iluminem os acrílicos,
que se plantem pinheirinhos. Saudades de Curitiba de trinta anos
atrás? Saudades das polaquinhas? Saudades da velha manca?
Nem é preciso. Curitiba é um Olhar, e até
meu avô sabia que olhar não ocupa espaço.
Mas como esmaga!
Nenhuma cidade tem mais vergonha na cara que Curitiba - tanta,
que emudece, na timidez doida e doída, no silêncio
pesado de alguma coisa mais grave, mais forte, mais alta que o
riso fácil brasileirinho.
Só uma proteção: olhe você também.
E os Outros darão o troco, porque o nosso jogo é
este, fuzilante.
Olham e dizem: mas ele escreve sempre a mesma história,
e cada vez mais torto! Pois por que não reclamam de Samuel
Beckett, que passou a vida dizendo a mesma frase pela metade e
nunca provou uma broinha de fubá mimoso? Está certo
que o tal bradava a morte do Homem, sem usar vírgula; mas
Dalton Trevisan aponta com o dedo, e a sintaxe irritadiça,
quem está morrendo - é aquele ali na esquina, com
uma espinha na testa, é a piranha de meia furada, é
o Dario que já morreu e roubaram o relógio dele.
E acabou-se a página. Que culpa o Vampiro tem se o sangue
é sempre o mesmo? Não é só na Europa;
também em Curitiba não há nenhuma esperança
na face da terra. Alguém precisa nos lembrar disso, por
escrito, porque a memória é frágil, e o mundo
está cheio de levianos alegrinhos fingindo que a vida é
o mar de rosas da rádio Colombo - e não esse espanto
desajeitado que atravessa o mundo inteiro, do mesmo modo que a
Barreirinha.
Olham e dizem: mas que vocabulário estreito, que coleirinha
de chavões! Pra que mais, se o que ele quer é uma
só palavra na veia, a que mata! O bom veneno é o
já testado, como o café da Boca.
Olham e dizem: mas por que esse nojo do povinho, dos miseráveis,
dos pequenos? Pois por acaso alguém é Nobre, alguém
é Grande? Você conhece? Mora aonde?
E depois de olharem e dizerem até a última gota
de cafezinho, querem recuperar a ovelha desgarrada (que todos
somos) tentando lhe pregar uma peça de ouro, um medalhão
no peito, para desfrute na praça, com casquinhas pra todo
lado e logotipo moderno. Nunca! Pois Curitiba é assim:
não se entrega; comparece à cerimônia, mas
ri até o gozo dos que caem na arapuca e sobem no palco
para receber os louros e as palminhas. Quem perdoa a coroação
de Emiliano Perneta? (Mas a boca-livre estava ótima.)
Por último: mas nem uma fotografia? Se Vampiro não
sai em espelho, vai sair em fotografia? Quem fotografa Curitiba
vê fachadas - muito bonitas - e mais nada. Olhe bem. Ela
está em outra parte. Não perca tempo com as fachadas.
Melhor o azulejo branco do velho Palácio e o cheiro do
bife, melhor a peçonha destilada na cerveja.
Dalton Trevisan, é certo, será sempre assim, revisitado
a cada linha reescrita mil vezes. Quanto à sua secreta
alma gêmea, Curitiba, esta dependerá da força
dos espíritos ante a horda dos invasores do Terceiro Milênio
- o povão da periferia, os catarinas migrantes, os funcionários
transferidos, os nordestinos teimosos... Acabam de se mudar e
em uma semana já não visitam ninguém sem
convite prévio - é a primeira das Sete Provas de
Fogo, que às vezes levam uma vida inteira. Basta passear
no calçadão da XV, percorrer os domingos do Passeio
Público - é essa a cor de Curitiba? De qual delas?
Do Município Oficial, teimando em inventar uma História
que se perdeu, ou, quem sabe, nunca existiu além do paranismo
risível, mas que sobrevive heróico e retumbante
nas páginas da Gazeta? Da Curitiba estrangeira que chegou
e vem chegando de toda parte fazendo filhos curitibanos e ocupando
apartamentos? Ou do Olhar intangível e onipresente que
coloca cada pose no seu devido lugar, com a impiedade dos profetas?
No ano 2000 - que está na porta! -, que alma teremos nós?
O rosto já sabemos: calçadões-rolantes, heliporto
na Santos Andrade, bonde solar. Mas e a alma?
Que se preparem os espíritos. Será uma luta lenta,
silenciosa e medonha. Porque é mais fácil mudar
todas as canaletas do Expresso em sete dias que suprimir o Olhar,
a Ira e a Curitiba de Dalton Trevisan.
Curitibano desde 1960, o escritor
Cristovão Tezza. 39 anos, é professor de Língua
Portuguesa na UFPR e autor de O Terrorista Lírico,
Trapo e A Suavidade do Vento, entre outros.
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