Folha de S.Paulo, Caderno Mais! - 11/dez/05

LIBERTAÇÃO

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ESCRITOR CRISTOVÃO TEZZA FICCIONALIZA UMA OPERAÇÃO DE TRANSPLANTE DE FACE ENVOLVENDO DUAS IRMÃS


Você não pode exigir muito nessas condições - veja que, agora, você não é nada, apenas a idéia de alguém, um projeto, uma possibilidade. Quer se ver antes da operação? Não? Tudo bem, eu também não gostaria. Assine aqui. Ótimo. Você fez bem. A opção é o nada. Bem, pense nos cegos - eles têm a liberdade absoluta da imagem, o desmembramento perpétuo. São puro conceito. Estou brincando. Um pouco de humor sempre é bom. Claro, claro. Tem de amarrar esse braço aqui. O outro também. Não tenha medo. É que às vezes, na mudança de face, a gente sente aquele impulso irresistível de passar a mão. No rosto, quero dizer. A máscara é o riso. Sim, há sempre algum outro que é o verdadeiro eu, é o que dizem. O problema - dói? -, o problema é que, de tanto exercitar a face, a gente não sabe mais trabalhar a alma sem ela. Veja as metáforas, como são poderosas: livrar a cara, salvar a cara. Sujeito cara-de-pau. Que caradura. Até para chamar os amigos: Cara! Você não imagina! Fique tranqüila. A costura é praticamente perfeita. Arte é procedimento. A gente vai conversando, transplante rápido. Lembra a sua irmã Beatriz? E que hoje. Ou até ontem. Não se mexa agora. De qualquer modo, quem perde a cara não perde a alma. Eu sinto que você será a mesma pessoa. Não, ela não teve a cara-de-pau de mandar flores, condolências, bilhete, oferecimento de dinheiro. Uma vez você me disse que ela destruiu a sua vida. Mas veja, não foi nenhuma tragédia. E depois, pense bem - a traição nunca é unilateral. Quando um não quer, a velha história. Bem, eu nunca tive nada a ver com isso. Sou apenas um bom médico -todos dizem. E você é minha prima. E tivemos sorte. Eu com a minha pesquisa, você com o seu desespero. Espere - não vire a cabeça. Quase eu disse: não vire o rosto. Não é engraçado? Uma espécie de justiça divina pelas minhas mãos modestas e ineptas. A Beatriz roubou seu amor, pois não? Aquele homem com quem você viveu - quanto?- três anos e dois meses e nenhum filho. E eles viveram felizes para sempre. Quer dizer, ela, essa está feliz para sempre. Você não sabia? Se separaram. Agora ele está sozinho. Você terá de conviver com isso. Podemos começar? Feche os olhos.

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Tudo é novela barata - mas acordar com outra cara é o último limite. Se bem que, com algum esforço da imaginação, dá para misturar o Conde de Monte Cristo com Frankenstein, em versão feminina: eis eu, largada e amarrada nessa cama - não posso coçar o meu outro nariz! -, nas mãos de um médico louco - e parente - que ganhará um prêmio às custas da minha face. Minha?! Eu não tenho mais face: sou agora uma outra pessoa que me oculta. Como tudo é espetáculo, posso ganhar uns trocados nessa festa.
Ainda não me vi, mas gostei de contemplar meu ex-marido trazendo flores. Inacreditável. Ficou horas aqui do meu lado conversando. Que gentileza! Eu ainda não posso rir muito - porque dói -, mas a situação já não me soa tão terrível.
Sou mesmo um sucesso, dizem. Claro, a imprensa vive dessas coisas - uma girafa de duas cabeças sempre é notícia. Bem, sou a autêntica mulher de duas caras: uma virtual, outra física, que ainda não vi, mas não estou assustando ninguém, parece. Espelhos proibidos, decretou o primo. Nada de fotos -eu preciso me acostumar lentamente com a idéia de ser outra pessoa, ele diz.
Essa mudança de personalidade! Coisa de espião -sou uma espiã de mim mesma. Alguém que agora, finalmente, pode viver na sombra de sua sombra. E, para ser bem sincera, eu era uma mulher pouco atraente. Agora sou atraente - por outras razões, é verdade, mas enfim, depois dos 15 anos de idade nada de novo acontece na vida de ninguém. Pois na minha aconteceu.
E aí está meu ex-marido, com o espelho de prata, espelho, espelho meu, parece que todos concordaram que esse é o momento da revelação, o primo sorri, tranqüilo diante do triunfo, as enfermeiras felizes, meu pai, minha mãe, a imprensa -sou outra pessoa, sou minha irmã Beatriz, que, agora é verdade, enfim desapareceu da minha vida.


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