A LEMBRANÇA MAIS ANTIGA DA MINHA VIDA

Cristovão Tezza



A lembrança mais antiga da minha vida vem dos quatro ou cinco anos. É um galo. Um galo branco, de crista sanguinolenta e meio caída, como quem vem da guerra. Tinha uns olhos belíssimos aquele galo da minha infância, ocos e aguados e perpetuamente em fúria.
O galo me fascinava. Eu passava horas e horas no quintal da casa olhando para o meu galo. Não sei mais o que pensa uma criança de cinco anos, ou como pensa. Também não sei o que poderia significar um galo para uma criança inocente - se é que isso existe. Mas não posso me esquecer da minha paixão. Uma admiração legítima pela grandeza dele, sem qualquer traço de inveja - só admiração. Eu olhava para o galo, e o galo, de tempos em tempos, olhava para mim, furioso. Tenho uma vaga lembrança de que, se no começo ele me hostilizava abertamente, avançando, ameaçando subir pela tela de arame em arroubos histéricos de ódio, depois o galo passou a me aceitar. Conservava a raiva, mas já reconhecendo em mim apenas um inimigo inofensivo. Entretanto - e acho que era isso o que mais me impressionava - em nenhum segundo relaxava a guarda do seu ódio. Se eu resolvia lhe jogar grãos de milho, como um discreto namoro, um pedido de paz, antes de atacar o milho ele investia contra mim, abso-luto, arrogante, com um orgulho tão grande quanto estúpido. Só com a minha capitulação, com a minha disparada em sentido contrário - eu morria de medo do galo que amava - só então ele avançava contra o milho e as galinhas que se atrevessem em volta.
Em suma: um Rei.
E o canto, o canto inesquecível daquele galo burro e soberano na sua burrice auto-suficiente! O canto me pasmava. Ele subia nos tocos sujos de bosta, nos bem altos, repolhava as asas brancas num furor megalomaníaco, olhava em volta com o pescoço se alongando ao limite dos ossos e músculos e penas, ridículo, grandioso, e desfechava aquele canto prolongado de taquara rachada, com o papo se enchendo de vento, e inteiro arrepiado, na emoção ver-dadeira da própria grandeza! Todo o sangue do galo, toda a sua alma estufava-se na garganta e na cabeça, a crista mais vermelha ainda, num crescendo de rubor. E, após o número, os olhos recrudesciam em fúria, perscrutando em volta, tentando adivinhar, nas frestas miúdas do seu cérebro, a mais leve sugestão de ironia contra o espetáculo. E se chegasse até o seu tosco mecanismo mental a conclusão de que riam dele, de que o seu canto não provocava mais que o escárnio dos outros seres? Com certeza morreria, inerme contra o inimigo: morreria explo-dido dentro do próprio ódio, a alma incapaz de conter-se nos limites estreitos daquele organismo miúdo. Ao final do canto, depois de circunvagar o olhar em flechadas súbitas, envenenadas, o penacho trêmulo, ele se fixava em mim, odiento, um ou dois segundos apenas. E ai de mim se eu não amasse o seu canto! Mas o que ele encontrava nos meus olhos era tão somente devoção.
Eu me fascinava também com a dignidade estupenda das suas pernas ressecadas, uma antiqüíssima bota ajustada perfeitamente a cada nervo. E as garras, as unhas, as esporas, sempre na ânsia de sustentar a Terra inteira debaixo dos pés, de não deixá-la cair! Eu imaginava (imagino agora) que aquele ódio nada mais era que o desconforto sem solução de tamanha grandeza condenada até a morte às penas de um volume ridículo, de um formato estapafúrdio, desarmônico, de uma figura empalhada de circo. O galo sabia disso: agora tenho certeza.
Não sei quanto durou minha paixão. Ficou a imagem: eu desse lado da cerca, encantado. Talvez transparecesse já no meu rosto a tristeza da ingratidão, talvez eu insistisse tanto em visitar o galo somente na esperança de um dia amolecer aquela ruindade, rasgar aquela máscara, descobrir por baixo das penas um menino assustado, como eu. Era uma proposta de amizade que não tinha pressa. Mas se tornava tão forte minha dependência espiritual daquele titã de crista caída que a família tomou providências. Enquanto eu amava meu galo, eles tramavam. Era preciso me salvar das esporas traiçoeiras daquele galo, que sequer correspondia ao meu amor.
E eles tramavam uma conspiração magnífica, pois quando vi meu pai assomar na porta da cozinha e avançar pelo quintal até o galinheiro, diante do qual eu namorava o galo, percebi no mesmo instante que nos seus gestos e sorrisos e falas, no próprio passo cadenciado havia o preparo prévio de um cuidadoso ritual. De fascinado pelo galo, passei a me encantar com o pai, antes mesmo que eu pudesse relacionar uma coisa (o galo) com outra (o pai). "O senhor vai entrar no galinheiro?" Ele riu e entrou. Eu meti os dedos nos arames da cerca e vi o que deve ter sido o maior espetáculo da minha vida, a luta magistral de dois heróis, o galo e meu pai, no meio de uma hecatombe de galinhas em pânico. Até aí eu estava totalmente absorvido pelo momento mesmo da luta, sem pensar - apenas vendo. O galo fez um estrago medonho no meu pai - e no miolo do meu espanto estava a admiração por aquela fúria esganiçada e grandiosa, na defesa de sua dignidade. No fim, quando meu pai finalmente conseguiu agarrar o galo pelo pescoço, mãos ensangüentadas e camisa em tiras (e o galo ainda esperneava furiosamente, no limite da morte), olhei para o homem - e os olhos dele tinham exatamente o mesmo ódio do galo, mas muito menos grandeza. Um ódio tão estúpido quanto o do galo, mas sem as justificativas deste, o que de algum modo eu consegui perceber.
Fiquei calado. Meu pai sacudiu o galo com raiva - "eta bichinho filho da puta" - e saiu do galinheiro. Fui atrás, começando a descobrir que além do ritual havia uma conspiração punitiva, cuja vítima, mais do que o galo, era eu. Nunca me esqueço: "Eu vou te ensinar como se mata um galo aproveitando o sangue." Nem pensei em morcilha, mas em alguma coisa vertiginosa que meus cinco anos não podiam localizar.
Entramos no galpão, meu pai na frente, com o galo, que de tempos em tempos dava pinotes sufocados pelos dedos de ferro, e eu atrás, vendo o galo morrer. Não chorei nem nada. O pai arrancou penas do pescoço do galo, assim, em seco, colocou ele sobre um toco, e, com mãos de mestre - eu não tirava os olhos - meteu um punhal na veia, que esguichou sangue numa vasilha esmaltada.
O galo foi morrendo devagar.
À noite, minha mãe depositou na mesa a travessa de ensopado. Quando tirou a tampa eu reconheci, debaixo do vapor, amontoados em meio ao molho ferrugem, os destroços do meu galo. O pai falava qualquer coisa com meu irmão, e riam, e minha mãe também comentava qualquer coisa, sem rir. Eu me lembro que fizeram meu prato, arroz , feijão preto, ovo frito por cima, batatinha, farofa, duas folhas de alface (que é bom pra pele, disse minha mãe) e um pedaço do galo, um pedaço razoável, de carne escura, que em condições comuns deveria estar no prato do meu pai.
Na lembrança seguinte estou correndo para o banheiro, mas vomito no corredor, e co-meço a chorar - parece que eu quero fugir. Recordo claramente a voz da minha mãe: "Eu falei que esse menino não está bem! Eu falei!"


(Do romance Trapo)


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