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LAGES
Cristovão Tezza
Depois de 40 anos, voltei a Lages, minha terra natal. O argumento
foi uma palestra na Universidade - mas a verdadeira razão
era enfrentar a memória, num espaço que pelas circunstâncias
da vida não deixou raízes. Voltar ao passado é
tarefa grave, quase religiosa, que não se deve assumir
com leviandade; o passado pode dizer quem somos, revelação
que nem sempre agrada.
Viajei de carro pela mesma estrada que em 1961 me trouxe a Curitiba
na emocionante cabine de um caminhão de mudança,
com a mãe e um irmão. De novo em Lages, estou no
bairro Coral - ou num outro espaço, de mesmo nome. Tento
me lembrar de um certo Cine Coral, onde assisti Os brutos também
amam (depois toscamente representado na rua Afonso Ribeiro,
com os meus vizinhos), mas não encontro (um dedo apontado
me diz que se transformou em igreja). A Universidade avançou
sobre o aeroporto da infância, onde Jânio Quadros
pousou glorioso num DC-3, e vê-lo foi meu primeiro contato
com a política nacional. Aos seis anos, como milhões
de brasileiros, eu era um janista roxo, de vassourinha e tudo.
O maior prazer é caminhar no centro da cidade, redescobrir
as ruínas da lembrança, como quem ganha o direito
de, durante um dia, voltar ao passado e desfilar por uma cidade
fantasma que amanhã vai desaparecer. Claro, a cidade concreta
é sempre muito menor do que a da memória, na medida
do olhar de criança - em duas horas percorri todos os limites
do meu mundo original. Cada pedaço da rua me diz alguma
coisa sólida: você esteve aqui - todos os dias você
vinha caminhando de casa para o Jardim na frente do Diocesano;
mais tarde, aprendeu a ler e escrever no segundo andar do Santa
Rosa; um ano depois, freqüentou o Grupo Escolar São
José, que não existe mais - e em frente havia uma
escola de acordeon pelo método Mario Mascarenhas. Os detalhes
se desdobram, mas não se encaixam: a vida se transforma
em objetos quebrados, incompletos, da lembrança. Contam-me
que o amigo Trilha, colega de escola e herói da minha infância
pelo poder de contestar poderes, morreu estupidamente numa brincadeira
infantil. Na cidade em que eu nasci a praça Joca Neves
era um magnífico terreno baldio: ali desfilavam todos os
chavões da minha infância, das pernas-de-pau às
pandorgas; comprava musse de goiaba no Armazém Pinheiro
e roubava peras e bergamotas em terrenos da vizinhança.
Investiguei detalhadamente a pitoresca fachada verde do antigo
cine Tamoyo, também transformado em templo - o que tanto
rezam, os brasileiros? A igreja da Santa Cruz continua no mesmo
lugar; nela exercitei o catolicismo pouco ortodoxo da minha história.
Em frente, havia o Clube Cruz e Souza - num carnaval, me vetaram
a entrada, primeiro choque com as complexidades do mundo. O Marajoara,
onde Rodolfo Mayer impressionou com As mãos de Eurídice,
parece que está em reforma. Olho para trás: em algum
lugar da praça meu pai morreu. Adiante, a Catedral - e
recordo as intermináveis quermesses de freiras para angariar
fundos.
Faltam entretanto as pessoas, as vozes, os sons, a gritaria, a
atmosfera, a alma da minha infância: nesse breve espaço
físico, nessas fachadas simples e bonitas que sobrevivem
aqui e ali com seus traços art-déco, entre um ou
outro bloco de concreto e varandas circulares com pedras imitando
arcos, aprendi a falar, e, pouco a pouco, os outros foram me dizendo
quem eu era, ou quem eu deveria ser, mas os outros não
estão mais ali. Só posso ouvir sozinho esse eco
fragmentado de mim mesmo que se chama infância e que ocupou
uma geografia chamada Lages.
Texto publicado originalmente em
agosto de 2000, no jornal Ô Catarina!, editado em
Florianópolis pela
Fundação Catarinense de Cultura.
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