DOUTOR CID E O ESCRITOR

Cristovão Tezza

Dois capítulos do romance O fantasma da infância, publicados separadamente na antologia "Corrupção - 18 contos", editada pela
Transparência Brasil e Ateliê Editorial, em 2002


1

Um homem com a noção dramática do valor do silêncio. O doutor Cid calou-se, e (penso eu, porque não o vi, enterrado em mim mesmo e me desenterrando pelo choro) deve ter ficado apenas profissionalmente surpreso, como o cientista diante do ratinho branco - uma surpresa satisfeita, digamos desse modo. Satisfeita mas discreta, respeitosa mesmo: voltou-me as costas, uísque à mão, contemplando a parede nua de seu laboratório científico, à espera de que a experiência se desenrolasse até o final e comprovasse a hipótese passo a passo. Quanto a mim, o rato branco (não, não é autopiedade - há momentos, parece, em que as coisas são tão brutalmente o que elas são que não dependem de ponto de vista para ganharem forma), deixei esgotar o fosso de mim mesmo, porque antes de se formular qualquer resposta - a dignidade, a grande justificativa, a honra, os valores humanos, ou qualquer pequeno lixo que eu me acrescentasse - tudo já desabava pela corrosão de meu próprio olhar. O que é, afinal de contas, a minha intocável superioridade: o meu olhar bifronte e fágico. Tudo a descoberto é o mesmo que nada a descoberto. Então chorei solto um choro vagabundo que vai sozinho e não precisa de ajuda.
Durou alguns minutos o ritual - eu soluçando, ele olhando a parede branca. Ao final, reassumindo pouco a pouco o equilíbrio da espécie humana, pelo menos no que ela tem de visível, passei o lenço no rosto (lembrando Laura, que dizia ser eu o derradeiro homem da terra a usar lenço), engoli mais um soluço, o último, e preparei a retirada, agora sim, digna - discreta, porém digna. Faltava apenas resolver um pequeno osso da garganta:
- Antes de eu ir embora, doutor Cid, gostaria de saber como o senhor conhece tantos detalhes da minha vida.
Só agora ele deixou de olhar a parede. Fitamo-nos, já sem agressão. E eu me surpreendi: ele parecia verdadeiramente preocupado comigo. Não era teatro:
- Você está bem, Devinne?
Foi delicado da parte dele. E mais ainda porque não caiu na tentação, esta sim idiota, de pedir desculpas.
- Acho que sim. - Apalpei os bolsos atrás de cigarro, esquecido de que já havia fumado o último. Rapidamente ele me estendeu uma carteira:
- Fique com esta.
Tirei um cigarro, que ele acendeu também rapidamente com um isqueiro de ouro, sempre me analisando, uma atenção suave, de cima para baixo, ele em pé, eu ainda afundado. Devolvi a carteira:
- Obrigado. Um cigarro basta.
Ele fez um gesto de quem não aceitaria de jeito nenhum a carteira de volta, e antes que aquela pantomima se prolongasse ao ridículo, eu estendendo a carteira, ele recusando-se a recebê-la, coloquei-a na mesinha. E retomei o que me interessava, sem vergonha da minha voz úmida:
- O senhor não respondeu ainda.
- Como sei tanto de você?
Uma pergunta para ganhar tempo. Talvez ele avaliasse se devia ou não responder. Insisti:
- Sim.
Um suspiro impaciente: que escritor obtuso! E afinal:
- Informação, Devinne. Sou um homem bem informado. Informação é poder. Sabedoria, ética, ou seja lá o nome pomposo que você dá ao seu fracasso, nada disso é poder. Não é simples?
Agressivo, mas cristalino. Um homem mortalmente ofendido que explode em choro e, em seguida, sente irresistível atração por especular com seu próprio algoz sobre a diferença entre informação e sabedoria. Um homem como eu, assim delicado, só sobrevive por força das conquistas da civilização, que depois de milhares de anos conseguiu sustentar a frágil idéia de que um homem - qualquer um, até eu, basta nascer - tem um direito abstrato à vida. Por isso estou em pé - e me levantei da poltrona, como quem comprova uma tese. Um homem tão normal, que voltei temerário ao mundo lógico, agora sim tentando crescer, vingativo, diante de um bulldog:
- Eu não preciso de poder. Não é ele que me alimenta.
Um desastre. Um desastre ridículo, o do ressentimento impotente. Não tenho razão. Previ o sorriso que veio, que nem chegava a ser cínico - a curva dos lábios do doutor Cid era apenas o toque discreto, quase involuntário, da superioridade, e de novo me faltou chão. Ir embora daqui - determinei, mas faltava um último pedaço, antes que ele retomasse a palavra ao modo dele:
- Informação? - Tentei desprezá-lo inutilmente só pelo tom de voz, que saía rachada: - Que tipo de informação, doutor Cid? - Uma tentativa, também ridícula de ameaça: - Da polícia? Como o senhor sabe de mim?
Outro susto, lembrei que meus livros não traziam qualquer indicação biográfica, que há muitos anos eu não era notícia em lugar nenhum e que jamais tinha ouvido falar em doutor Cid na vida.
- Elementar, meu caro... como é mesmo o amigo de Sherlock Holmes?
- Watson - e, mimético, voltei a me sentar, porque ele também se sentava, com o ar tranqüilo de quem vai contar uma longa história. (Ainda que eu não tenha feito outra coisa em quarenta anos, eu não gosto de deixar nenhum pedaço para trás.)
- Isso. Elementar, meu caro Watson. - Uma risadinha simpática. - Não se preocupe, Devinne: nada a ver com a polícia, vade retro! - e agora ele riu solto. Prestei atenção. - Tenho fontes próprias, bem melhores. E fontes que... para voltar ao que realmente me interessa... fontes que dispensam por completo essa ética de almanaque, aquela em que você pensa que vive. Porque afinal de contas, Devinne - por favor, não me leve a mal, já discutimos que chegue - homens como você acabam não tendo nem poder, nem sabedoria, nem ética.
Por que eu continuava sentado ali, até tranqüilo, ouvindo aquele asno? Porque ele me fascinava - e, depois do choro, a borracha do meu corpo já estava de novo flexível. Além disso, eu tinha um trunfo: a qualquer momento me levantaria e iria embora para nunca mais. Iria a pé, atravessaria a noite de Curitiba pensando em cada minuto do encontro, e uma massa ainda sem forma, rua a rua, ganharia os contornos de um belíssimo novo livro. Para Laura, com carinho. Fiquei quieto, esperando que o idiota falasse mais - nenhuma palavra seria desperdiçada.
- Fiquei satisfeito quando a Vera me passou o recado com o teu nome. Telefonema à meia-noite, muito sugestivo. Aliás, a idéia do anúncio foi dupla, minha e dela, e nos divertimos com isso. Mas isso é outra história.
Indócil, prestes a levantar e ir embora sem dizer adeus - mas como já estava decidido, não custava descobrir um pouco mais daquele idiota arrogante.
- Sim. Deve ter sido divertido.
Ele riu do meu ressentimento, mas de uma forma quase carinhosa. Como quem compreende:
- Você ainda vai entender. Não quer outro uísque?
- Não.
Começava a germinar na minha cabeça a idéia da vingança - quem sabe eu ainda pudesse processá-lo? Ele serviu-se de mais uísque, sem pressa. Por que eu esperava ali sentado, depois de tudo? Um homem vazio. Ou, conforme Laura, um homem com uma vocação irresistível para a penitência.
- Veja, Devinne, como é elementar. Raciocine comigo. No momento do telefonema, o anúncio não poderia estar na tua mão, porque ele foi contratado para ser publicado hoje. Bastou ir à banca de manhã para saber que não foi publicado. Logo, você tinha acesso à redação do jornal. Era o mais óbvio, e um telefonema da Vera confirmou a hipótese em dois minutos. Logo, o anúncio saiu da agência, passou pela tua mão e foi parar no teu bolso, sem entrar na paginação do jornal. É até possível, bem possível, Devinne, que a tua mão no bolso do casaco, nesse momento, esteja apalpando o formulário do anúncio. Acertei?
Lentamente, tirei do bolso a mão com o papel amarrotado e o coloquei no cinzeiro. Era inútil sentir vergonha; mesmo assim, o rosto queimou. Quase expliquei: foi um impulso inocente; uma brincadeira; uma prova de poder; um... Baixei os olhos para o tapete - feliz, ele devia estar contemplando aprovativamente o ratinho branco. A hora exata de ir embora sem me despedir; mas não fui.
- Acertou.
- Correto. Bem, sabe que essa descoberta também nos divertiu um pouco?
Não respondi. E de Laura, o que e o quanto ele sabia? Quem seria frio o suficiente para ir embora sem ouvir o resto? Levantei-me, súbito, e me servi de uísque sem pedir licença - um modo (canhestro) de mostrar a ele que eu continuava ali por mera condescendência. Mas o doutor Cid não me via - via a hipótese. Eu era um esboço que pouco a pouco tomava corpo.
- Devinne, tudo isso fazia sentido. Vendo o anúncio, você entreviu alguma coisa boa; um pequeno sonho, algum lucro, digamos assim. Ou uma aventura; ou uma loteria. Tão boa que não quis repartir a informação com ninguém, pelo menos enquanto não conferisse, sozinho, a tal oferta. Por quê?
Não respondi; mas ele perguntava para ele mesmo. Um homem lógico, e somando a lógica com a frieza, o raciocínio tomando-o por inteiro, comecei a me convencer de que estava diante de um psicótico, alguém que inviabiliza qualquer relação de calor com os seres humanos, porque as relações abstratas entre as categorias mentais ocupam todas as gotas do sangue. Um adolescente que aprendeu a lógica - o jogo de xadrez; as grandes soluções para a humanidade; o poder do pensamento positivo - e parou nela para sempre. E com prazer:
- Ora, primeiro porque informação é poder, como queria demonstrar, e o poder, qualquer um, é irresistível. Depois porque, vivendo como vive, você é um homem inseguro que aprendeu a ter um medo terrível da competição. Devinne, confesse: você sempre fracassou quando competiu. Já fiz um levantamento completo.
Não agüentei:
- Espere aí, doutor Cid...
- Já sei! - e ele me empurrou de novo para a poltrona, irritado; os adolescentes entram em pânico quando a arquitetura lógica de seus desejos é contrariada. - Você vai dizer que a arte, a criação, a extraordinária genialidade dos artistas não aceita a regra do jogo do sistema. Você, naturalmente, está acima disso. Você é um grande criador e só tem Deus no páreo. Não tem nada a ver com essa horda de escravos que rasteja a vida pensando em dinheiro, na roupa da moda e na última novela da tevê. Essa é a justificativa de primeira instância, a mais infantil. A vida inteira digitando classificados; para compensar, cria um orgulho descomunal: a superioridade passa a ser tão evidente, que se transforma na obra em si. Nem é preciso fazer mais nada, porque provavelmente o que você fizer não estará à sua altura. Quantos anos mesmo sem escrever?
De boca aberta, estúpido, inteiro retesado, tentei adivinhar até onde ia o delírio daquele louco. Um desejo fundo de argumentar: o senhor não me conhece! não pode ver a minha alma! Mas permaneci em silêncio, entregue ao espanto. Desejo fundo de que Laura estivesse ao meu lado e me indicasse o caminho. (Muito simples: ela faria um sinal de olhos para que fôssemos embora.)
- Estou gostando do modo como você presta atenção, Devinne. Um homem inteligente e um homem curioso - essa combinação é sempre boa. Uma pena tanto medo e tanta insegurança. Bem, eu reconheço que o terror da competição na vida é um traço muito forte da cultura brasileira. Até o terror de formular a competição. O que significa um campo muito bom para os mais ferozes. Veja o meu caso: competindo, fiquei rico, poderoso e, sem falsa modéstia, sábio. A ponto de compreender, pedaço a pedaço, um cérebro confuso e, perdão, estragado como o seu. E, cá entre nós, Devinne, de homem para homem: confuso e miseravelmente pobre, da pior pobreza, daquela escolhida.
Mandaria aquele filho da puta - o mais luminoso filho da puta que eu jamais conheci - tomar no cu? Dei um gole de uísque, escondido no gelo de uma idéia: iria transformar toda a bosta do doutor Cid num personagem e enterrar minha lâmina em cada pedaço daquele metal gosmento e semovente. (Mas a raiva não escreve. Calma: esperar um ano e, aí sim, o doutor Cid estará pronto para virar pó.)
- Então não me venha com essa idéia ridícula de que a arte, a verdadeira arte - e o canalha fazia gestos irônicos, grandiloqüentes - que a arte dos deuses não compete, está fora do sistema, acima da podridão geral. E no entanto, o grande André Devinne, o autor de Os cacos do espelho, o badalado da diocese, o tipo bêbado que faz de si a sua obra de boteco, o genial e incompreendido Devinne, esconde no bolso um anúncio do jornal para não encontrar pela frente nenhum semelhante que pudesse fazer sombra na conquista de, por exemplo, quatrocentos ou quinhentos dólares extras. Mas, é claro, a literatura está acima disso.
Ao ver lutas de pesos-pesados - aqueles trogloditas trocando murros até à morte - sempre me perguntei porque o ódio que se acumula no que apanha quase nunca é suficiente para criar a energia de um revide instantâneo, capaz de destruir o mais forte. Aquele homem estava me destruindo de uma forma perigosa, e eu sentia agoniado que a explosão de choro tinha secado o permanente estado de revolta que sempre me deixou vivo. Eu estava tremendo, como quem desaba - antes de me erguer da poltrona, me concentrei nas minhas palavras, que deviam ser pedras enxutas, compactas, mas já estavam mortalmente contaminadas de fraqueza. Ir embora, Devinne. Em silêncio. Não fale. Babei:
- Eu sei quem é o senhor: o senhor é o maior filho da puta que eu jamais conheci na vida. O senhor...
Ele sorriu. Satisfeito?
- Em síntese, Devinne (e olha que eu gosto do que você escreve!), você não tem nem dinheiro, nem poder, nem informação, nem sabedoria e nem ética. Se me permite usar o seu próprio calão - e ele aproximou os óculos metálicos a um palmo do meu rosto - você é uma pequena merda.

2

Afinal me ergui, num silêncio autista com tantas direções simultâneas que acabava não indo a lugar nenhum. Sou um homem bom, estou absolutamente seguro de que sou um homem bom - nenhum dos meus milhares de defeitos ou deformações, por mais fortes que sejam, conseguiu arranhar a porcelana da minha bondade, da minha boa qualidade humana, do impulso que a qualquer estímulo estará pronto à carícia, ao perdão, ao beijo, à solidariedade. É sempre a comunhão que me vem antes - só por acidente (nervos quebrados, falta de ar, tímpanos estourados, gases nas vísceras, um soco no nariz, pequenos e inexplicáveis interesses) a dolorosa e cultivada comunhão humana se rompe. Mesmo assim, se me dão tempo, a casca da pele se engrossa e eu resisto, refugiado fragilmente na minha superioridade. É uma guerra pequena e dura, prolongada, invisível - e podemos morrer dela. Mas não seria aquele ogro - um homem substancialmente mau - que iria me matar. Se eu entrasse no jogo, seria esmagado - porque me pareceu que tudo que ele dizia estava certo, mas ao final da mais exata aritmética o resultado era um ser inventado que não tinha nada de mim. Fiquei tranqüilo assim, no fio do arame, uma pequena vertigem de paz, mas forte o suficiente para me fazer sorrir, um sorriso limpo, sem ironia. Falar era perigoso, língua presa na gaiola aberta, mas arrisquei, delicado:
- Doutor Cid, acho que não temos mais nada a conversar. Por favor, não se incomode em me levar de volta. Uma longa caminhada vai me fazer bem.
Disfarçando a tontura do uísque e dos murros, dei dois passos moles em direção à porta. Ele ergueu a voz, um tom estranho de ameaça:
- Nem seria possível, Devinne. Aquele carro, a essa hora, nem existe mais. Já deve estar em estado adiantado de desmanche em algum lugar do Boqueirão. - Parei e olhei para o homem. Ele tirava mais coelhos da cartola: - Rodas, pneus, motor, caixa de câmbio, paralamas, vidros, portas, motor de arranque, tudo está sendo empilhado em prateleiras. Tudo vale dinheiro. Digamos que, assim, ele vale dez vezes o que valeria no momento em que te trouxe aqui.
A frase me saiu com um toque de desprezo aristocrático (em alguma coisa - o sobrenome - eu seria melhor que ele):
- Quer dizer que é esse o seu trabalho? Comprar carros velhos e vendê-los aos pedaços para a sucata nacional?
Ele deu uma boa risada.
- Ah, Devinne, eu admiro você. Sabe que você é um homem bom, apesar de tudo? Sempre positivo, sempre trabalhando com as hipóteses normais, honestas, corretas! Qualquer débil mental perceberia imediatamente que aquele carro é roubado, Devinne! Qualquer pivete da praça Osório entenderia instantaneamente o que eu quis dizer.
Era penoso raciocinar diante daquele homem. Abri a boca.
- Então... então o senhor quer dizer que é um ladrão de carros!?
Ele riu, deliciado.
- Ah, Devinne, não seja tão cru, tão seco assim! Por que você não diz que eu sou um empresário alternativo, um executivo bem sucedido da economia informal, a mais florescente do país? Afinal, à custa de uns tantos proprietários irritados, quase todos muito acima da média de renda brasileira, e em geral escorados em seguros seguríssimos, outro ramo da economia que progride velozmente pelo esforço de homens como eu, à custa das empresas de seguro, que aliás estão cada vez mais ricas porque é óbvio que o número de carros não-roubados é muito superior ao de carros roubados, à custa deles (para falar a verdade, ao lucro deles), dou emprego, comida e abrigo a centenas de brasileiros que, de outra forma, já estariam mortos.
Pausa teatral. Ele saboreou as próprias palavras e o meu espanto, ainda sem perceber o medo que eu senti, começando lentamente a juntar os pedaços daquela aventura infeliz. Frio no estômago, eu descobria que aquele homem ou era um louco, ou um assassino, ou ambos. Sair dali o quanto antes.
- O que você acha, Devinne?
Abri um sorriso inseguro. Agora era o caso de fazer conscientemente o jogo dele.
- Bem, sob certos aspectos até que o senhor tem razão... - e olhei para a porta fechada. Havia cães naquele quintal, guarda-costas. Eu estava condenado. Senti uma saudade brutal de Laura. Inútil fingir indiferença: o doutor Cid era melhor que eu em tudo. Desde que eu cheguei não tinha feito outra coisa senão ficar na defesa, e cada vez mais grogue. Aquele tarado ia me matar. Por quê?
- Sob todos os aspectos, Devinne, todos! Não fique aí babando esse moralismo cristão, que afinal não tem nada a ver com ética. Ética é uma montanha mais alta, e diz respeito exclusivamente a você. Nem venha me acusar de egoísmo. Egoísmo é uma palavra vazia. Lembre-se que você, como eu, como a Vera, cada um é sozinho um aglomerado de gente ao mesmo tempo, e se a ética diz respeito exclusivamente a você, diz respeito, por tabela, a todo mundo. Ou você vive, pensa, respira, anda, dorme e come dentro de uma bolha hermeticamente lacrada? A ética, qualquer uma, é sempre uma obra coletiva. Pense o tempo todo em você mesmo e tranqüilize-se: os outros estão juntos, pensando com você, sussurrando no ouvido. Eles fazem parte do nosso mosaico. - O doutor Cid suspendeu a voz, sempre satisfeito, e afinal prestou atenção em mim: - Mas se sirva de mais uísque, Devinne. Você está pálido. Uísque é ótimo pra pressão baixa. Duas pedras?
Fiz que sim e olhei para as janelinhas próximas ao teto, investigando a bolha hermeticamente lacrada. No máximo passaria meu braço por ali, para os cães comerem. Copo de bêbado, derrubei gelo no chão - e o doutor Cid rapidamente recolheu-os para mim, gentil. Quase batemos as cabeças. Inútil: o crânio dele deveria ser de aço inoxidável. Ele seria capaz de esmagar minha cabeça com a testa só como demonstração lógica de uma lei da física.
- Para falar a verdade, Devinne, exagerei um pouco. O comércio de carros roubados é apenas uma ramificação menor das minhas empresas. Eu até relutei um pouco para entrar nele, um negócio de baixo nível, mais para PM desempregado que para empresário sólido, mas o poder tem esse defeito: ele se alimenta, cada vez mais, de mais poder. É uma lei universal, Devinne, em tudo: não se pode parar. Por exemplo: os carros roubados alimentam as companhias de seguro que alimentam as máfias da segurança que alimentam a tecnologia do alarme e assim por diante. Todos juntos vão ocupando espaços, dando empregos, produzindo riquezas... A máquina se alimenta dela mesma, ininterrupta. O ideal é ter um dedo em cada fase do ciclo. Eu estou chegando lá. Comer ou ser comido, é a velhíssima e sábia lei da natureza. E eu não tenho vocação pra sardinha. - Parou, sacudindo o gelo no copo, concentrado, surpreendido com uma pequena descoberta. - Engraçado: os artistas, os santos, os moralistas, a arraia miúda, parece que todos têm uma vocação irresistível pra sardinha. - Meteu súbito o dedo no meu peito, que afundou: - Sabe o que é isso, Devinne? - Fiz que não, descobrindo mais uma vez o estalo do ouro no fundo da sua boca, a um palmo desconfortável da minha. Ele baixou a voz: - O medo, Devinne. O medo.
E explodiu a risada, que teve pelo menos o dom de afastá-lo de mim. Um homem feliz, num dos melhores momentos de sua vida: dono do palco, da luz, da força, do carisma, da lógica. Das palavras, nada ficava em pé, mas ele estava em pé. Um homem inteiramente de acordo com ele mesmo; nenhuma fissura, nenhum vácuo, nenhum pé trocado, nada; um pesadelo inteiriço e feliz. Me puxou pelo braço, cordial:
- Mas sente aí, Devinne, que a conversa está boa. Bem, eu confesso que trabalhar nesse ramo dos carros roubados foi providencial no projeto Devinne.
- Projeto Devinne?!
- Depois explico. Cá entre nós, um momento de fraqueza que eu tive. Mas enfim...
Eu confesso, desgraçadamente eu confesso: sou um homem tão mimético, tão capaz de pegar a cor das pedras que me cercam, que a simples faísca, os sons da seqüência projeto Devinne abriram no mesmo instante uma senda de salvação que em décimos de segundo se transformou num renascimento - depois de quarenta anos de fracasso, quarenta anos de perda, eu entraria no lado escuro da vida, na marginalidade real, física, concreta, eu entraria no fascinante mundo do risco. Jogar no lixo a identidade, o CPF, a carteira de trabalho e o atestado de bons antecedentes, e assessorar, 38 no bolso, um magnata do crime. E não era estratégia de defesa de alguém acuado; por um décimo de segundo, a hipótese se tornou de fato um projeto possível de vida. (Ou terá sido, mais uma vez, o eterno esforço inútil de tentar a sintonia com um semelhante?)
- ... mas enfim essa fraqueza é outro assunto. Do que eu falava mesmo?
Eu estava de novo acomodado na poltrona, refugiando o medo na curiosidade. Voz baixa:
- Da utilidade dos carros roubados.
Voz alta:
- Ah, sim. Veja: sou um homem que já chegou a um ponto bastante confortável de segurança. O topo - e ele levantou a mão, mostrando didaticamente a altura da pirâmide. - É aquela história: para chegar até o doutor Cid é preciso ir derrubando andaimes, muitos e variados, do puxador da rua ao senador da República, e como cada um faz a sua parte sem perguntar nada, sei que posso tomar meu uísque com muito mais segurança que as velhinhas que atravessam ruas. O povo é sábio, Devinne. Sempre que a nossa abnegada polícia faz algum estardalhaço com a prisão de uma quadrilha, daquelas de sair no Jornal Nacional, o povo cochicha: é, mas os figurões mesmo, esses estão tomando banho de piscina. Só pegam ladrão de galinha! E é a mais cristalina verdade: os figurões, como eu, esses sempre estiveram e sempre estarão tranqüilos, exceto uma ou outra raríssima exceção, se é que há. Não é só porque a gente toma cuidado. A verdade é que os elos de produção não podem ser arrebentados pelo delegado da esquina, sem mais nem menos, ou então seria o caos. Para isto existem as leis, a ordem, o poder executivo, os ministros do supremo, as bancas de advocacia, a fiesp, as corporações dos empreiteiros, as redes de televisão, as comissões de inquérito, todos trabalhando juntos em prol do equilíbrio social. - O doutor Cid fez outra pausa teatral, com o sorriso metálico: - O que você acha?
Impossível contrariar um homem tão feliz. Era estranho: tudo que ele dizia era sinistro, mas ele não. Uma alma solta.
- Eu acho que o senhor tem razão.
Quase que eu disse: eu acho que o senhor tem razão, mas, apesar de tudo, o estado de direito.... Não. A única possibilidade de redenção social do homem está no comum acordo das leis... Não. A noção abstrata de justiça, a noção de que cada homem é um valor em si, construída duramente ao longo dos séculos... Não. Tudo que me ocorria era a decoreba de um primeiranista de direito. E a realidade é um vulcão de dez milhões de faces camaleônicas explodindo na minha cara a todo instante. Ele tinha razão, naquela noite, no coração do meu pânico: André Devinne não passa de uma pequena merda. Eu não posso ficar sozinho; eu preciso da minha Laura.
- Pois bem, meu amigo. Apesar da minha segurança, é sempre bom tomar cuidado, principalmente ao realizar nossos caprichos. Assim, o carro roubado foi providencial para te recolher da rua. Na hipótese altamente improvável de que alguém tenha te visto entrando nele, alguma testemunha idiota na hipótese mais improvável ainda de sentirem tua falta, nem o mais arguto inspetor Maigret do distrito chegará a algum lugar com essa informação. E o tal anúncio de jornal, que até poderia ser uma pista se o Conan Doyle trabalhasse na polícia, não saiu, nem vai sair; não existe. Aliás, está aqui - e ele apontou o papel amarrotado no cinzeiro. Percebeu? Você... - e o doutor Cid estalou os dedos - ... evaporou!
Outro murro. Silêncio. O doutor Cid, quem sabe condoído do meu estado de terror, tentou se justificar:
- Ora, Devinne. Convenhamos: você não queria que a Vera fosse te buscar num Mercedes importado, não? Com todo aquele olho gordo da crioulada solta na praça à meia-noite... Tenho todos os defeitos, menos o da vaidade - esse sim, é mortal num país como o nosso, esse bom Brasil.
Silêncio. É difícil dizer, mesmo agora - fica por conta do meu substrato cristão. Mas o doutor Cid não era um homem completamente agressivo. Duro, é verdade; seco até; frio, sempre. Mas tinha ainda no estoque do espírito um impulso de comunhão. Pôs a mão amiga no meu joelho:
- Devinne, não faça essa cara de cachorrinho perdido. Seja sincero, seja bem sincero: você quer mesmo voltar para lá? - e o braço apontou para a terra dos homens.

 




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