DA ARTE DE JOGAR PIÃO

Cristovão Tezza

(Para Jamil Snege, in memoriam)


Segura-se o pião com a mão esquerda, enquanto a direita enlaça-lhe o pescoço, sem dar nó, puxando a fieira verticalmente até a base da ponta de ferro, de onde voltará a subir em anéis apertados e unidos, feitos com carinho e atenção - da qualidade desta amarração dependerá o destino do lance, a sua parte técnica. É importante que o pião seja velho e o verniz esteja gasto pelo uso - na pele brilhante a fieira escorrega e o resultado é o desastre.

Chegando a fieira ao trecho bojudo, em torno da maior circunferência prende-se o último anel com o polegar enquanto a mão direita prepara o golpe, dando voltas na outra ponta como quem firma na palma um chicote improvisado, até que os dedos, livres mas tensos, segurem o pião, que é indócil, com delicadeza - o indicador na cabeça, o polegar na base. Concentrando-se, deve-se sustentar o pião com uma breve inclinação à direita (para compensar a puxada do chicote quando a peça cair no mundo), e erguer o braço lento e suave até a altura da orelha, não mais, que é exagero, nem menos, que é fraqueza. Fixa-se um ponto no chão e lança-se o pião um palmo além dele, como quem arremessa uma pedra para saltitar na água. (Se o jogador for canhoto, faça-se tudo ao espelho, que será o mesmo.)

O pião desenrola-se furioso no ar, mas isso não se verá; a puxada da fieira, percebe-se no tato, deve acontecer só no último segundo, quando quase desnecessária. Livre enfim, o pião procurará em desespero o seu ponto de equilíbrio, contra todas as provas da lógica, sob o olho de um furacão mesquinho que o quer ver no chão, mas ele não cai, absurdo. Se o chão for liso, como deve ser, o pião, apenas respirando, dormirá, absolutamente imóvel sobre a terra, um espetáculo de silêncio e uma aula impossível de geometria. Podemos sentir, sob o eixo estático, como a agulha de um aparelho metafísico, o tremor sutil da rotação do mundo.


(Publicado no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo,
em 4 de julho de 2004)


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