CARNAVAL EM CURITIBA
Cristovão Tezza
Lembro Jamil Snege, atrás da mesa, cigarro entre os dedos:
"Carnaval em Curitiba? Não dá. O sujeito
pula na rua, alegrinho, vem o guarda e prende!" Vendo de
um certo jeito, é uma espécie de maldição
esse carnaval - ou não-carnaval - na cidade. Temos até
de nos explicar por escrito, como agora. Parece que carregamos
a culpa pela falta de espírito carnavalesco, a vergonha
do falso rebolado, essa triste ausência de brasilidade,
quem sabe até falta de patriotismo! Quando o Brasil inteiro
dança, nós aqui, naquele silêncio de missa,
andando pelas ruas vazias, metendo o olho crítico no
primeiro engraçadinho que sai por aí fazendo escândalo.
Coisa de bêbados!
Nem as crianças se entusiasmam: uma terça-feira
gorda no Parque Barigüi, que descanso! Parece que estamos
passeando em Genebra num começo de primavera! Nenhuma
máscara de pirata ou palhaço, nada de serpentina,
nem um único confete no chão, naquelas trilhas
onde o pessoal sério faz a firme corrida vespertina,
bufando, como se não estivesse acontecendo nada no resto
do Brasil. É uma coisa tão desenxabida, que quem
defende o carnaval da cidade tem de fazê-lo aos gritos,
em altos brados, tem de exigir atitude das autoridades, reclamar
por leis mais severas, mandar requerimento aos vereadores! Ora,
alguma coisa tem de ser feita contra esse crime, parecem dizer,
contra essa terrível indiferença!
Bem, carnaval que precisa de lei ou regulamentação,
que precisa de muito apoio, defesas apaixonadas para uma platéia
apática ou apenas discretamente divertida, tem alguma
coisa errada - ou não tem nada errado; apenas não
existe. Parece que há uma incompatibilidade radical entre
o espaço curitibano e a idéia de carnaval. Digo
"espaço" porque, no período, uma horda
imensa de curitibanos foge daqui, desabala-se sôfrega
em filas intermináveis para descer ao litoral onde, apertada
na multidão que enche calçadas, praias, restaurantes,
bares, supermercados e apartamentos, passa quatro dias, às
vezes sem água na torneira, reclamando da chuva. Ou os
habitantes escapam para Floripa, para o Rio, escondem-se em
Antonina, em qualquer lugar onde possam se divertir. Aqui, alguma
coisa decididamente não combina.
E não é de hoje. A edição de O Paranaense,
de 15 de fevereiro de 1880, ilustra-nos Wilson Martins, descrevia
os "folguedos carnavalescos" como um desfile de "raras
e desengraçadas figuras". Observe-se a finura crítica
da expressão, nossa marca registrada: "desengraçadas
figuras" - onde naufraga o carnaval, brilha a linguagem.
Há algumas supresas. Anos atrás, fui pela primeira
vez ao antigo Bar do Ermes em pleno carnaval: fregueses bebiam
cerveja tranqüilos nas mesas espalhadas, como numa noite
de outubro. Mas percebi um som ao fundo, algo que vinha dos
subterrâneos, vibrava o chão, uma espécie
de bate-estacas que se aproxima. Descobri a escada para o porão
e naquele pequeno espaço sem ar, enfumaçado, como
na Chicago da Lei Seca, vislumbrei uma multidão clandestina
que pulava carnaval, acotovelando-se no escuro com serpentina
e tudo, num calor infernal e transpirando alegria. O contraste
entre aquele caldeirão nas trevas e a paz iluminada lá
da terra me sugeriu uma manchete possível para a Tribuna
do Paraná: "Polícia estoura ponto de carnaval
em Curitiba!"
Tudo bem: não temos carnaval. Mas vejamos de outro modo:
em vez de defeito, não seria esse um capital respeitável
a ser mais bem-aproveitado? Uma importante cidade brasileira
substancialmente avessa ao carnaval! São quatro ou cinco
dias de silêncio, de grandes espaços vazios para
caminhar - e toda a infraestrutura de lazer sub-aproveitada,
teatros fechados, cinemas às moscas. Calculem-se os milhares
- talvez milhões - de brasileiros que, como eu, acham
carnaval uma coisa aborrecida e que muitas vezes se submetem
por absoluta falta do que fazer àqueles desfiles intermináveis
e chatíssimos da rede Globo, oitocentas horas seguidas
da mesma coisa, torturados por sambas-enredos idiotas e clonados
ao infinito na alegria militarizada da avenida.
Pois esse povo sofrido e sem opção encontraria
em Curitiba o seu paraíso! Quanta coisa poderia ser programada
nesse período! Desde a versão hard - digamos,
um Festival Internacional de Música Sacra ou um Concurso
Nacional de Canto Gregoriano -, até opções
mais suaves, como, quem sabe, Encontros de Jazz Instrumental,
algo assim, ou uma boa Mostra do Cinema Escandinavo, etc. São
muitas opções. O único cuidado deverá
ser vetar expressamente manifestações de MPB,
porque atrás delas sempre há o risco de um trio-elétrico
aparecer e aí, bem, aí sai todo mundo correndo,
acabou o carnaval curitibano e voltamos à estaca zero.