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As razões do acaso Cristovão Tezza O primeiro traço que me chamou a atenção nesta bela visita não foi o da geometria – aquela cruz torta num descampado de onde se ergueu sobre o vazio a única cidade verdadeiramente utópica do mundo – mas o das pessoas que aqui vivem. Sejam brasilienses, no máximo com 45 anos, ou habitantes já enraizados (Brasília não exige muito para criar raízes), em poucos minutos de conversa a cidade começa a se explicar. Como aqui nada é óbvio – bem, os brasilienses dirão que tudo é óbvio! – é preciso dizer, explicar, apontar o dedo, dividir superquadras, tesourinhas, eixão, norte, sul, leste, oeste. SQS 207, SQN, digamos, 102 – entendeu? A síntese de Brasília é a lógica do epigrama, como sentiu Nicolas Behr, o poeta que fez da cidade a sua arte: “SQS / ou / SOS?” Provavelmente nenhuma outra cidade do mundo é objeto tão permanente da indagação de seus habitantes como Brasília. Ela é uma amiga estranha que, ao contrário das pessoas, não deixa nada ao acaso – não pode deixar nada ao acaso. Aqui, parece, vive-se ao mesmo tempo do lado de dentro e do lado de fora das casas e apartamentos. O brasiliense é antes de tudo um atento. Às vezes o incontrolável acontece: por exemplo, a grilagem chique dos ricos amontoando casas de luxo do outro lado do lago. Ou, num movimento mais sutil, as quadras comerciais, que deveriam estar de frente para as superquadras, voltando-se para a onipresença dos carros. Como castigo urbano, essas quadras são o único instante feio da cidade, com seus quadrados desengonçados vestidos caoticamente de placas desencontradas, visualmente sujas, em que a implacável pichação adolescente é só o complemento e a assinatura. Mas se contornamos esses espaços e entramos nas superquadras, sentimos a alma do projeto, no que tem de simples e de utópico, no sentido bom da palavra: a cidade como possibilidade de encontro igualitário e de socialização dos espaços públicos. O Brasil jamais teve uma nobreza que, pelas desgraças e felicidades da história, nos legasse, à custa de taxação e revolução, aqueles imensos parques públicos que são a delícia das cidades européias. Pois Brasília realiza esse sonho, fazendo quase que da cidade inteira um parque público – o andarilho brasiliense pode atravessá-la praticamente de ponta a ponta, em todas as direções. Para quem, como eu, vive em Curitiba num prédio simples que, por segurança e experiência, precisa de uma cerca elétrica contra os outros, a paisagem das superquadras com o estratagema simplicíssimo dos pilotis é uma dádiva urbana. Jardins e casas são permeáveis, em sua vizinhança tranqüila. Andando por ali, percebe-se o absurdo que seria erguer cercas, muros, divisões, encastelamentos. Como estamos no Brasil, há vigilância sob os prédios, é claro, em cabines discretas Mas o projeto é tão forte na sua concepção, que não se sente ameaça à luz do dia. Os pilotis são uma defesa bastante eficiente: simultaneamente abrem o espaço da circulação e protegem o espaço da moradia, sem o atravancamento natural das coisas que ocupam o chão. (Aliás, o Brasil profundo emerge em Brasília justamente no encontro de seus eixos, em torno dos hotéis: molambentos vendendo de tudo nos poucos semáforos, crianças encarapitadas em carrinhos de lixo, prostitutas ocultas na sombra dos viadutos, os shoppings que, como sempre, vampirizam a cidade, a mão-de-obra barata segregada nos cinturões de pobreza.) A segurança de Brasília está também na amplidão dos seus espaços, que chegam a intimidar – tudo é longe, extenso, panorâmico e geométrico, e a especialização das áreas (ou a do projeto original, com seus setores demarcados, ou a da vida real, com as quadras comerciais concentrando-se neste ou naquele comércio) lhe dá também a previsibilidade. Metaforicamente, parece que ninguém se esconde em Brasília: o que você está fazendo no setor hospitalar? Em Brasília, você só sai de casa se já sabe previamente onde vai. Parece óbvio, mas não é – o acaso não foi deixado ao acaso. Para tudo é preciso o automóvel. Já no primeiro passeio comecei a entender porque Nelson Piquet é daqui – a cidade inteira é uma maravilhosa pista de corrida. Mas também nesse ponto a força utópica da cidade (digamos assim) acabou enfim por estabelecer o seu limite, ou morreríamos todos. Com a ajuda discreta dos radares e das multas, a massa de carros se move numa velocidade apropriada para a condição humana, e, havendo uma faixa de pedestres (é verdade!) os carros param e o pedestre atravessa a rua sem olhar para o lado. (Para ser justo, também em Campo Mourão, uma cidade do interior do Paraná, encontrei o mesmo hábito enraizado na população.) Bem, uma cidade tão completamente planejada, com tantos símbolos se cruzando na mesma realização e já antecipada pela visão cabalística de Dom Bosco, a crer na placa da Ermida que visitei, haveria de ser também um centro místico, para não perder a viagem do centro geográfico. São sinais demais para a imaginação do fim de um milênio, ou do começo de outro, ou por qualquer razão, para que a cidade em parte arquitetada, paradoxalmente, pela genialidade do comunista Niemeyer, não se convertesse em espírito, religião, mística, qualquer coisa que se encaixe nessa área difusa e penetrante. E é engraçado: parece que todo projeto irracional, ou, para ser politicamente correto, trans-racional, encontra no poder da geometria o seu álibi: um quadrado, um cubo, um triângulo, uma pirâmide, e lá vamos nós, respaldados pela melhor ciência, mergulhar nos mistérios da vida. Para quem é do ramo, Brasília é uma dádiva. Mas é outra a verdadeira transcendência de Brasília, uma cidade que é muito mais do que sua presença física. Brasília é o espaço do poder político brasileiro – nela, o Brasil inteiro respira. Não exatamente pela via do Executivo, que por sua própria natureza é monolítico e unilateral, mas pelo Congresso. Assim, fui visitar o Congresso e sentir de perto o seu fascínio. O sotaque de Brasília, que tentei em vão reconhecer nos passeios pela cidade, ouve-se ali, naquele emaranhado de corredores labirínticos, salas e anexos nos quais cruzamos, cidadãos comuns, por todas as figurinhas carimbadas que aparecem nos noticiários todas as noites, para o bem e para o mal: com a cara limpa e sorridente ou em escusas gravações secretas, votando o impeachment ou fraudando o painel eletrônico. Há também a informalidade brasileira, que só encontra barreira no terno e gravata – mas mesmo sem eles você pode acompanhar a Câmara ou o Senado do alto, depois de passar por uma segurança perfunctória que não permite máquina fotográfica nem – é isso mesmo – papéis! De passagem, entre nomes díspares como Suplicy, Sarney e Heloisa Helena, flagrei um trecho saboroso de oratória de Arthur Virgílio (“José Dirceu continua clandestino”), um dom que anda em falta. Do lado de fora, a beleza do projeto já é um lugar comum, mas não nos cansa – nem mesmo aquele horroroso mastro que a ditadura implantou com a bandeira consegue estragar. Grandes espaços, sempre, como a lembrar que a tarefa de Brasília nos ultrapassa e está, por princípio, na escala do sonho.
Publicado no Correio Braziliense - "Nove visões de Brasília". Edição comemorativa do 45º aniversário de Brasília - 21 de abril de 2005.
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