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A OBRA, O FIM
Cristovão Tezza
Eu era escritor. Nunca realizei uma obra completa porque aos movimentos
da mão as letras transformavam-se em símbolos de
uma outra linguagem, mais próxima da pintura que do trabalho
literário. A tradução, sutil, confundia-me.
Um nó prendendo a garganta, caneta suspensa, página
inacabada, palavras, riscos, pontilhados... Incompletos, eram
belos, mas a angústia exigia mais.
Com o tempo - vinte, trinta, quarenta, cinqüenta anos - tudo
se tornou espera. Seduziu-me a idéia de que minha função
era justo a coisa pela metade, esse adiamento. Balançando-me
na cadeira da biblioteca, o olho perdido entre a última
fileira de livros, o teto e uma aranha, senti momentos de verdadeira
felicidade. Aguardava o amadurecimento: uma rosa (um mistério)
haveria de se abrir, acabada, pétalas curvadas em si mesmas,
completas.
Nessa época - apenas o início - minha mulher sofreu
adaptações. Passou a me intuir, já que não
podia me entender. Como eu, ela também esperava. O desespero
de chegar logo em casa e trancar as portas! Nas madrugadas, debruçado
sobre o pó dos livros, ouvia seus passos no corredor. Aqueles
sons eram parte do meu universo; imobilizava-me, em comunhão
com as sugestões do silêncio, do arrastar de chinelos,
da seta de luz. Minhas mãos começaram a ficar brancas,
quase uma claridade própria. Contra a lâmpada, a
sombra dos ossos, a aura do sangue - eu movia os dedos com lentidão,
gestos de uma dança mínima.
Os hábitos acalmam. Evoluindo, passei a não sofrer
mais os terríveis altos e baixos da minha vida inteira.
Agora tudo tinha o seu tempo, e as transições emocionais
(do medo à coragem, do ódio ao amor, do silêncio
ao uivo) eram lentas, trabalhadas com o mesmo cuidado com que
eu manejava a pena. Porque eu também era a minha própria
obra. Ou, mais radicalmente ainda, como compreendi nos últimos
doze anos, eu era a minha obra inteira.
A percepção desse fato absoluto foi a descoberta
libertadora: cheguei a rir! O artesanato de manusear, a ponta
dos dedos nas folhas brancas como a minha mão, a memória
insistente dos versos latinos, as citações morais,
imperativas, imemoriais - Conhece-te a ti mesmo!, alguém
disse - toda a palpitante tabula rasa à espera do meu preenchimento,
tudo isso significava apenas uma parte: o objeto. Mas havia o
resto, os detalhes aparentemente desimportantes mas sempre poderosos,
a mulher pálida trazendo-me a sopa, o vento da manhã
forçando a janela com o ombro vazio para me lamber o rosto,
a edição da Ilíada há trinta e quatro
anos aberta à página 75, alguns assobios na rua,
o ronco de lugar nenhum, os arranhões na gaveta, frutos
da chave que não se acerta, tudo, absolutamente tudo, as
coisas acontecidas e as não acontecidas por acidente ou
impossibilidade ou inexistência - tudo era minha obra. O
espaço acolhia cada passo que eu dava. Havia um lugar nítido
para mim no mundo: eu poderia dançar nele. Cheguei a rir,
novamente.
O pânico que me assombrou e quase me derrotou - minha mulher
afagando-me os cabelos, que eu me acalmasse - foi a idéia
absurda, ao meio-dia: a minha obra faz-se por si, independente
da minha vontade, do poder do meu gesto, surda à minha
fala, longe do meu pontapé. Passei a beber um chá
especial, que me acomodou. Escravo dócil da obra, assistia
a mim mesmo com crescente religiosidade. Deixei definitivamente
de sair de casa. Da fresta da janela eu via um trecho sombrio
da rua. Um sentimento profano parecia sussurrar: apesar de tudo,
o sol está lá fora. Que pode haver de interessante
no sol? Sozinho, na minha sala, minha obra já era suficientemente
maior do que eu. Milhares de vezes maior do que eu. A contradição
me atiçava - uma forma refinada de sentir.
À noite, tropeçava na escuridão - mais um
instante imprevisível somando-se à obra. Precisava
controlar os gestos impensados, esse desejo de sair - poderia
pôr a minha vida inteira a perder. O encolhimento, a linha
nunca chegando ao fim, nem a lida, nem a escrita, o próprio
medo, tudo participava da minha obra. A obra é expressão
da Fé: simples, despojada, imóvel. Um poema incompleto
desenhado a letras góticas; deixei-o. Sugestivo. A Fé
Primitiva: só poderia obedecer ao chamado mais profundo,
mais antigo de mim mesmo. Expliquei para minha mulher: a falsa
diferença entre razão e emoção, impulso
e controle. A verdade é o Um; a Obra, Una. O Grande Círculo
(o sutil desfecho) não seria fato da lógica, mas
da apreensão intuitiva.
Um secreto desgosto - nos últimos dois anos - perturbava-me:
minha mulher entristecia. O rosto, uma estampa branca, com os
olhos fixos em mim. No exagero do intimismo, não percebia
que também ela era a Obra, não mais a minha obra,
mas aquela da qual eu fazia parte e da qual não me distinguia.
Foi preciso o mais alto desespero, o que se encontra com a paz,
para que enfim eu sacralizasse a comunhão com a mulher
(e não nos tocávamos mais). Fui sendo tomado novamente
do élan vital. Mais velho e mais dono de mim, folheando
as centenas de páginas escritas pela metade, as centenas
de livros não lidos até o final, eu reencontrava
a minha função. Escritor, cabia-me relatar, historiar
tão imensa realidade. Era preciso vigilância, concluí
o mês passado: não posso me acomodar ao sabor de
apenas viver, em detrimento de participar da Obra ativamente.
O relógio do corredor bateu oito vezes, marcou mais doze
minutos e parou para sempre. Nosso tempo agora seria outro: as
antenas éramos nós. A cada batida do coração,
a mão ouvindo a mim mesmo no peito, estamos mais próximos
do começo, do ponto de perspectiva, do círculo fechado.
A grandeza da Obra exige. Magro, pálido, nervos abalados
- ratos devoravam minha biblioteca - e eu saltava cheio de fantasmas.
Nos raros momentos de paz, as parábolas antigas renasciam
pela voz monocórdia de minha mulher. Eu pedia histórias,
mais histórias. Ontem ela contou lendas infantis enquanto
eu balançava-me na cadeira. Entre porquinhos, cestas de
flores, raposas e tartarugas, eu. Eu me confundia. As histórias
interrompidas. Como acaba isso: qual o enredo? Coisas velhas.
Isso me animou, súbito, a escrever: o gosto da terra, as
aventuras. Várias linhas, fazendo curvas no papel. As pedaços,
a Obra se fazia.
Ontem à noite (ou na semana retrasada), a dúvida:
a Obra parece se reduzir a Nada. Talvez, de fato, tudo não
fosse senão aquilo que eu via, o desastre do Tempo. Soltas,
as coisas eram apenas e inutilmente elas mesmas. Até que
o espírito da simbiose voltasse, a dor no peito, a lança
aguda na cabeça. Mas devagar as coisas voltavam a se unir:
os livros, as linhas, os sons, a sombra, o pó, o pêndulo,
a aranha tecendo a rede entre o balanço e os clássicos,
a aura se recuperava aos meus olhos opacos. Paz. Nada poderia
minar o Grande Círculo. Páginas e mais páginas.
Eu historiava mentalmente pequenos trechos. Nas noites de chuva
a água escorria pelas paredes: podia ouvi-la. Onde está
minha mulher? Ela dorme, quase ao alcance dos meus dedos.
Aconteceu à noite: recostado na cadeira, eu dobrava uma
folha em branco. Era estrela e navio. As palavras iam além,
em cada dobra: sol, cunhas, casinhas, pássaro de três
penas, girassol, coroa. Virando-me, percebi: minha mulher não
dormia mais - já era a outra ponta da circunferência.
Uma imagem poderosa, recortada caprichosamente de uma gravura
medieval - o tempo, o fim, a chave - abraçou-me com sua
foice e me recolheu em suas formas.
Publicado originalmente em A cidade inventada
(Curitiba: Cooeditora, 1980).
A presente versão, bastante revista, foi publicada na Revista
Cult de Literatura, nº 45, abril de 2001)
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