REVISTA LEIA BRASIL
Novembro de 2007

http://www.leiabrasil.org.br/index.aspx?leia=conteudo/entrevistas_tezza


Cristovão Tezza
conversa com Susan Blum

 

Cristovão Tezza, escritor curitibano, nascido em Santa Catarina. Professor na Universidade Federal do Paraná e pai de dois filhos. Escreveu diversas obras, algumas delas premiadas, como O fotógrafo, que ganhou o Prêmio revista Bravo, melhor obra de 2004. Breve espaço entre cor e sombra, prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Juliano Pavolini, A suavidade do vento, Trapo, Ensaio da Paixão, e outras obras, inclusive não-ficcionais.

Cristovão, vamos conversar um pouco sobre literatura, sobre o processo de escrever e sobre seu último livro O filho eterno. Este livro, para quem não sabe, apresenta a incapacidade que temos de lidar com o “imperfeito”. Nele o protagonista, um homem que busca ser escritor, tem um filho com síndrome de Down e passa por diversas situações com seus medos, inseguranças e receios, até conviver de forma pacífica com a situação. Assim como o protagonista, o autor também tem um filho com síndrome de Down, que inclusive participou do lançamento do livro em um bar de Curitiba, apresentando suas pinturas e desenhos. O próprio autor dizia: “peguei carona na exposição de Felipe. Ele que é o dono da festa”.

Apesar do livro ser considerado autobiográfico, você já insinua na abertura do livro a frase de Thomas Bernhard sobre a verdade. (“Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade”). Isso é indicação do processo criativo real/ficção (fingimento) ou do fato dos acontecimentos passarem pelo filtro da memória que selecionam/modificam, de acordo com os desejos ou as culpas?


Cristovão Tezza - A biografia é o material de que foi feito o romance; é preciso ter em mente essa distinção. Os objetivos de uma autobiografia e de um romance são substancialmente diferentes. A citação de Bernhard lembra que, em qualquer caso, a idéia de “verdade” é inalcançável, porque ela é mediada pela limitação e pelo recorte do olhar. Mas a diferença de intenção, a diferença de objetivos em um caso e outro é altamente significativa. O texto biográfico ou autobiográfico parte de uma pressuposição de verdade factual; um acordo tácito se firma quando abrimos uma “biografia”. Sabemos que, fatalmente, haverá “falhas”, mas isso fará parte involuntária do jogo intencional biográfico. Já o romance é uma “experiência do olhar” que toma um material da imaginação (biográfico ou não) como ponto de partida. Na biografia, os fatos são o ponto de chegada; no romance, são o ponto de partida.

Alguns alunos de pós-graduação estão pensando em escrever dissertações ou teses, aproveitando o seu livro como indicador do processo de formação de um escritor quando jovem. No livro você dá algumas indicações deste processo, como no poema antigo, enviado ao irmão e sua reflexão dele (p. 50/51); ou quando fala de seu livro sendo escrito, cujo personagem levita, que não tem um fio narrativo, que não sabe o que está escrevendo (p. 101); ou ainda quando cita as diversas recusas da editoras que vai acumulando na gaveta, ou a escrita deTrapo (p. 115);  e assim por diante. Pretendem fazer um paralelo de suas obras com os momentos vividos por você. O que acha disso? Que conselho ou alerta daria a eles?

CT - Conselho, não dou nenhum... (risos). É muita responsabilidade! O tema da formação do escritor me interessa muito, e apareceu perifericamente em “O filho eterno”, na medida em que o fato de o pai ser escritor interfere na natureza da relação entre eles. Em alguns livros meus esse tema surgiu aqui e ali, e eu pretendo ainda voltar a ele, aí sim, com objetivo biográfico e ensaístico – a não-ficção falando da ficção. Eu acho que é um material interessante de investigação. Mas o autor é sempre suspeito quando fala em causa própria.

Quando recebeu a notícia da síndrome de Down de Felipe, disse que “não queria abrir a porta” (p. 33), quando, durante todo o processo posterior, você acha que a porta foi aberta e a aceitação veio? Você acha que o livro foi uma expiação da culpa? Geralmente a escrita está associada à catarse. Você se sentiu mais aliviado ou teve mais medo, ao se abrir de forma tão escancarada para o mundo?

CT - A idéia de “catarse” é tentadora; na verdade, tranqüilizadora. Eu prefiro não entender meu livro como um gesto catártico, isto é, algo que se realizou pela expiação, ou pela liberação das “forças sombrias” que afinal todos têm um pouco na alma. Pelo contrário, acho que ele foi a realização de um certo estado de maturidade emocional depois de viver, anos a fio, aí sim, instantes catárticos (irracionais, passionais, como vários que aparecem no livro). Isto é, o ato de transformar a biografia em romance me salvou da simples exposição catártica. Veja por exemplo a relação do narrador com o seu período de vida no teatro, e como ele disseca a natureza daquela “catarse artística”, do projeto liberador que marcou sua juventude. A narração de certa forma “desmonta” aqueles pressupostos. Mas, é claro, como prosa romanesca há momentos muito fortes – mas eles são a arte da representação, algo refratado, não o “sentimento em si”. “O filho eterno”, por incrível que pareça, é um livro racionalizante do começo ao fim (ainda que perturbado o tempo todo pela força das emoções).

Aliás, retornando à questão acima, sobre abrir a porta, em seu livro há várias referências a isso, esse abrir portas, desde o hospital em Frankfurt, com a tentativa de abrir a porta para dentro e não para fora (p. 126); Felipe tentando abrir uma porta (p. 123), e outras relações. Essa é uma metáfora do não desistir ou da criatividade que temos que obter para ver as coisas de uma forma diferente, não teimosa e obtusa?

CT - Esses “signos” que aparecem no livro – como o da porta fechada – são todos intuitivos. Sou um escritor bastante instintivo. O livro vai e vem no tempo, e essas amarras foram feitas mais ou menos no próprio impulso da escrita, “ganchos” para submeter todos os tempos da memória  ao olhar organizador do narrador. Eu não tinha, digamos, “um objetivo em mente” senão reviver a experiência em si. E não sei que mecanismo estranho nos leva a escolhar e marcar algumas cenas e esquecer ou passar ao largo de outras.

Você acredita que algo mudou dentro de você? Aquela sua falta de jeito com o amor e o afeto foi modificado pelo jeito amoroso e de doação completa de Felipe? Ou então sua obstinação em não desistir das coisas, ou aceitar as coisas como são... enfim, algo se transformou dentro de você? Porque em vários momentos você coloca que o problema é o pai e não o filho, que o pai é mais inseguro que o filho, que o pai é mais teimoso que o filho, que é dependente do filho (quando de seu sumiço)...

CT - Veja bem: eu sou o Cristovão; o narrador do livro é um sujeito sem nome que se concentra e se define inteiro em 200 páginas; só sabemos dele o que está escrito ali, e tudo é muito forte e intenso, de um modo que nenhuma pessoa real conseguiria ser (ou morreríamos todos no terceiro dia!). Vamos, pois, falar de literatura. Sim, há visivelmente uma passagem entre o primeiro momento da narrativa e a última, uma transformação na relação dele com o mundo e com as pessoas, e essa passagem é sistematicamente marcada pela sua relação com o filho; mas, de certo modo, parece, ele continua o mesmo. O que vai havendo é uma lapidação pelo tempo, pela experiência e pelo contato pelos outros. Veja que o personagem, na última frase do livro, não tem nenhuma idéia do que vai acontecer, e ele acha isso bom. No começo ele também não tinha nenhuma idéia, e achava bom. (Não sei se estou certo – isso me ocorreu agora...)

O fato de Felipe ser bom em algo foi uma “fuga” para você, como o era a escrita e a literatura? Foi um alívio saber que ele era bom em alguma coisa? Ou agora isto não faz mais diferença?

CT - Vou ser chato, mas quero me separar de novo do personagem. O livro marca bem a importância, para o pai, de o filho pintar e fazer disso um trabalho pessoal original. No romance, isso ganha uma importância destacada, é um “momento narrativo” marcante, com uma função significativa na história. É um recorte. Mas na vida as coisas são muito mais lentas e difusas; para um pai, saber da competência do filho em alguma coisa é sempre importante, seja a criança especial ou não.
 
Já que estamos falando das imagens de Felipe. Percebe-se claramente em suas obras a influência do olhar, o imagético em sua escrita. Essa influência veio daquela experiência (citada no livro) de você com 16 anos e confessando ao seu guru que não entendia nada de pintura?  Ou ela veio de algo já existente dentro de você? E a fotografia? Quando surgiu? 

CT - Sim, costumo dizer que só escrevo o que eu vejo – a minha frase é antes um olhar que uma reflexão. É verdade que a descoberta da pintura na adolescência foi muito importante para mim, mas desde criança sempre gostei muito de desenho, de cinema e de fotografia. Tudo relacionado à imagem despertava minha curiosidade. Passei a vida brincando com fotografia, embora nunca tenha mergulhado profissionalmente nela. 

No livro, você demonstrou preocupação com o fato do Felipe jamais ser capaz de ler e entender uma frase simples. Você trabalha leitura e escrita com universitários. Como sente esta questão? Os universitários sabem ler (interpretar) e escrever?

CT - A categoria “universitários” é ampla demais! Depende do curso, depende da seleção, depende do vestibular, depende do segundo grau, depende da turma, depende da universidade. Toda generalização nessa área cai na frase-feita ou no chute. A minha experiência como professor é limitada para generalizar. Digamos que na área de Letras e de Comunicação, que conheço mais de perto, há alguns “bolsões” carentes no domínio da escrita. Chutando, diria que 30% dos alunos têm um domínio de língua padrão escrita abaixo do padrão desejável.

Como escritor, considera que os brasileiros estão lendo mais? Com mais qualidade? O que sugere para que se mude esse quadro?

CT - Essa é outra área que precisa ser objetivamente mensurada. Vai um dado puramente estatístico: um best-seller, poucos anos atrás, vendia no seu limite máximo 100 mil exemplares no Brasil. Hoje esse teto subiu para 400 mil. Isto é, há mais gente lendo sim, e a própria vitalidade das editoras brasileiras (além do fato de que as estrangeiras pela primeira vez começam a investir aqui) indica isso. É claro que ainda é muito pouco, e com algumas características importantes – livros de não-ficção vendem muitíssimo mais que os de ficção. A literatura está proporcionalmente perdendo terreno, o que é um fenômeno mundial. E também uma pena, porque ela é a linguagem da imaginação e da transformação por excelência. Para mudar esso quadro? Não tem muito mistério: investimento maciço em creches, escolas, alfabetização, bibliotecas... Tudo que faça a palavra escrita realmente circular.

O final de seu romance mostra a questão do inacabado contra todos os pesos, obstáculos, quase desistências, irritabilidades, inexorabilidade, inseguranças, defesas, contra o irredimível enfim. Não se sabe como tudo isso vai acabar e isso é o bom. Você não teme mais as surpresas da roleta da vida?

CT - Temer, a gente sempre teme...  (risos...) Mas as surpresas também podem ser muito boas!
Obrigada Cristóvão, esperamos então suas próximas obras.


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