O Estado de S. Paulo - CADERNO 2
Sábado, 11 de agosto de 2007.


A reinvenção de uma criança eterna

O autor Cristovão Tezza, ao falar de Felipe, hoje com 26 anos, diz que aprendeu a lidar com a falta de autonomia do filho

Antonio Gonçalves Filho

A cena se passa na fonoaudióloga. Ali está o pai com o filho com síndrome de Down, ouvindo da especialista que ele não se concentra muito, para raiva do pai, que sai do consultório arrastando o garoto aos trancos pelo corredor. Foi difícil para o escritor Cristovão Tezza, que tem agora sua obra relançada pela Editora Record, descrever esse pequeno acontecimento em sua vida. Mais ainda, admitir o 'rancor mal digerido na alma' por ter uma criança com limitações pelo resto da vida. Honesto e tocante, O Filho Eterno, o mais novo livro do professor catarinense, é uma sessão de exorcismo dos fantasmas que o perseguem desde o nascimento do filho Felipe, há quase 27 anos, na primavera de 1980. A ditadura, então, dava seus últimos suspiros. Tezza, perturbado pela idéia de ser pai, via no menino a esperança de um renascimento, após ter passado o que todos os de sua geração passaram, resistindo ao estilo de vida burguês e pagando um alto preço pela auto-exclusão.

'Tinha de enfrentar o tema', justifica Tezza, contando que o livro nasceu como um ensaio, exatamente no dia 8 de março de 2005. O gênero ensaístico, porém, pareceu um tanto artificial a Tezza. O discurso da piedade e da auto-ajuda sempre rondou livros destinados a despertar interesse apenas dos leitores que enfrentam problemas semelhantes ao do autor. Inspirado em dois livros que leu há quatro anos - um do japonês Kenzaburo Oe, Uma Questão Pessoal, e outro do italiano Giuseppe Pontiggia, Nascer Duas Vezes, ambos publicados pela Companhia das Letras - Tezza decidiu escrever um livro de ficção em terceira pessoa. Seria mesmo difícil narrar em primeira pessoa, considerando a crueza do relato. 'Eu teria de ser uma geladeira, porque o narrador é sempre impiedoso.' De resto, ainda teria de confrontar o próprio passado, sujeitando-se à correção biográfica. E isso estava fora de propósito.

Contribuiu para dar forma ao Bildungsroman de Cristóvão Tezza uma narrativa autobiográfica do Nobel de Literatura de 2003, o sul-africano J.M. Coetzee, Juventude, sobre um aspirante a poeta que parte para Londres em busca de uma carreira literária e acaba como obscuro programador de computadores . Quando o filho de Tezza nasceu, ele também era um poeta marginal que sonhava construir uma obra tão densa como os Cantos de Pound e viver as últimas aventuras da juventude, até receber dos médicos a notícia de que tinha um filho com síndrome de Down. Ele tentou desesperadamente controlar o sentimento de revolta, que o fazia ver o filho como uma peça com defeito de fabricação, mas não conseguiu.

Imagine-se um garoto de 28 anos, ex-hippie adolescente, ex- imigrante ilegal na Alemanha, tendo de amadurecer à força por causa de um filho com traços mongóis. Parecia uma condenação pior que não ter nenhum livro publicado. Tezza entrou em pânico. Para piorar, nem o abrigo da religião o salvaria de afundar. Ele, que sofre de 'anticlericalismo atávico', nunca assistiu a uma missa inteira e afirma não ter nada a ver com 'essa causalidade mítica' que inventaram na cultura do Ocidente. Existencialista aprendiz, o então jovem Tezza viveu os piores momentos do regime militar sem ter uma entidade sobrenatural a quem recorrer. Do desamparo e da insegurança salvou-o a literatura.

'A gente pensa o tempo todo na questão da autonomia, da independência, e acaba tendo de lidar com a realidade de um filho eterno, dependente, sem autonomia', observa o escritor, lembrando que Felipe continuará eternamente uma criança, ele que Tezza imaginava com óculos gigantescos lendo livros de Thomas Mann e peças de Ibsen. Para não falsificar seus sentimentos, o autor de O Filho Eterno acabou escrevendo o relato como se falasse de uma outra pessoa. 'Sou meio autista para escrever e entrei em pânico quando reli, especialmente por causa da exposição pública, mas não podia fornecer pistas falsas ao leitor.' Isso ele nunca fez mesmo, como comprovam seus três outros livros lançados simultaneamente ao O Filho Eterno - Trapo (de 1988), Aventuras Provisórias (1989) e O Fantasma da Infância (1994).

Trapo é quase um auto-retrato. Foi escrito quando Felipe tinha 8 anos e resistia a todas as tentativas de alfabetização. Nele, Tezza conta a história de um poeta de 20 anos, viciado em drogas, que se mata e deixa centenas de páginas de um livro inédito. O suicídio do poeta é, claro, uma alegoria. O escritor enterrava definitivamente a esperança de ser um novo Pound. Mas não a de ser um bom escritor de prosa, como, de fato, viria a ser. O agora professor de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Paraná teve de amargar seis anos para ver publicado Trapo.

Já o seguinte, Aventuras Provisórias, romance que se passa entre Curitiba e Florianópolis, sobre o reencontro de um executivo com um amigo de infância, saído dos porões da ditadura, abriu definitivamente as portas do mercado editorial para Tezza. Ele começou a receber a atenção de críticos e acadêmicos, que viram em seu exercício literário uma adesão irrestrita à poesia, traduzida na solidão glacial de seus personagens, perdidos entre o sonho e a o pesadelo real. Em todos eles sempre aparecem traços autobiográficos. Em mais de uma ocasião, os críticos destacaram a vocação memorialística de Tezza como um Pedro Nava de heróis fracassados, como o patético André Devinne de O Fantasma da Infância, traído e abandonado pela mulher.

Devinne é uma espécie de projeção que afasta de Tezza os próprios fantasmas. Preso numa mansão e obrigado a escrever um livro por seu seqüestrador, um milionário corrupto, Devinne desdobra-se na figura de um ex-marginal que vira político e adota uma falsa identidade. O fantasma da infância é um ex-presidiário, quase um duplo que deve ser eliminado nesse ambicioso roman à clef. Tezza está feliz por serem esses os três primeiros títulos relançados pela Record. Temia que a reedição incluísse os livros mais antigos, três deles abjurados pelo autor por serem por demais experimentais. Sorte dos leitores, compensados com o melhor de Tezza.




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