A Notícia - Suplemento "Anexo"
Joinville, sexta-feira, 9 de abril de 1999


Cristovão Tezza constrói ponte literária
entre Curitiba e Lages

Premiado nacionalmente, escritor catarinense não tira o olhos da infância serrana

Joel Gehlen
Especial para o Anexo

Este está sendo um ano generoso com Cristovão Tezza, o ­ provavelmente ­ mais importante escritor catarinense desde Cruz e Souza. Estamos em abril e o novo romance de Tezza, "Breve Espaço entre Cor e Sombra", já ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, e ficou entre os três finalistas do Prêmio Jabuti, duas premiações distintivas de quem é quem na literatura brasileira. Sua nova editora, a Rocco, está relançando três de seus primeiros livros, na Bienal do Rio de Janeiro e no Salão do Livro, que começa este mês em São Paulo. "Ensaio da Paixão" (1982) e "Uma Noite em Curitiba" ganham segunda edição. "Trapo", sua obra mais conhecida chega à sexta edição. A aposta editorial é um termômetro.
Cristovão Tezza nasceu em Lages em 1952, e foi criado, desde os sete anos, em Curitiba, onde construiu sua obra, no auto-exílio a que a cidade convida seus "estrangeiros". No universo literário, Tezza é o "curitibano nascido em Lages", uma referência geográfica que, como uma pedra no caminho de um rio, determina todo o seu curso. Foi um menino do arrabalde e teve a infância de um filho de diretor do colégio.

Aos sete anos perde o pai e muda-se com a mãe para Curitiba, onde vive uma dupla orfandade: a paterna e a da terra. Curitiba será a cidade grande e estranha que vai jogá-lo aos livros. Na solidão, aferra-se à leitura e, em decorrência disso, passa a escrever. A infância tornou-se a sua ilha dos navios de ontem, para provar que o menino é pai do homem e do escritor.

­ Ninguém se livra do tipo de infância que teve, ela permanece como uma bruma espessa. A vinda para Curitiba foi fundamental. Saí de uma situação econômica e social confortável para a instabilidade de uma cidade fechada onde o nível de vida caiu. Comecei a ler cada vez mais, não tinha amigos, tinha livros. Desde Lages, o livro foi sempre um valor em casa e em Curitiba virei rato de biblioteca. Ainda estudante do Colégio Estadual do Paraná, li autores como Ibsen e Thomas Mann. Aos 15 anos já tinha decidido que seria escritor.

Virando uma esquina como se folheia uma página, em Critovão Tezza vida e literatura fazem parte da mesma gosma visguenta. Tanto na ficção quanto na realidade. A vida real entra no livro, na composição medular do personagem e também na ficção que ele faz da vida, uma espécie de ficção dentro da ficção. Delírio e razão se interpõe e entrelaçam, formando um terceiro universo, que já não se sabe se inventado ou real, mas com certeza fantástico.

Cristovão Tezza mora no primeiro andar de um prédio no Alto da Glória, em Curitiba. O mesmo bairro onde o assaltante Odair, amigo de Juliano Pavollini ­ um personagem que se aproxima perigosamente da vida real ­ leva três tiros de um vigia. Logo ali embaixo estão o Teatro Guaíra e o Calçadão da 15, ruas e esquinas de Curtitiba que saem do mapa da cidade e atravessam as páginas dos romances, formando uma espécie "aleph" borgeano, um portal onde se encontram fantasia e realidade. Estas interseções se multiplicam labirínticas, habitadas pelo Minotauro da dúvida. Professores obscuros e escritores juvenis e solitários são dois exemplos universais que perpassam em paralelo sua biografia e obra.

­ Desde "Trapo", de 1982, descobri que poderia pôr uma rua, uma esquina, uma cidade, um lugar, uma pessoa real na minha ficção. Os livros ganharam uma intimidade com o espaço, com a geografia, uma organização imediata. Descobrir a cidade foi um estalo.

A frase é o romance

A sala está mergulhada na luz clara de três horas da tarde. É sábado, último dia de verão e o sol atravessa a janela num oblíquo outonal para vir depositar-se sobre a mesinha de mármore em que conversamos, sentados ao pé de uma grande janela que descortina telhados e prédios. Começou a escrever por imitação, como decorrência da leitura, e logo percebeu que aquele era o seu mundo. Mas não foi um desencanto fácil. Tezza jogou fora três romances da juventude, e refez infinitamente seu primeiro livro publicado. Ele justifica:

­ Tem poetas geniais aos 16 anos, mas romancistas não. O romance exige domínio técnico, não sai da inspiração. O ato de escrever vai se educando com o tempo.

Mesmo agora, escritor feito, começar uma nova obra é sempre um ovo para pôr em pé. Tezza convive com seus personagens durante anos, numa longa gestação. Eles só saem quando estão prontos. A frase inicial contém o livro inteiro. O tema está ali, o clima, o tom, da mesma forma como o peixe está dentro do súbito e violento puxão com que se descobre fisgado.

­ Um romance nasce de uma situação humana, junto com uma linguagem e um ponto de vista. Só começo um romance depois de quatro anos comigo. Nesse período, idéia e personagem são apenas um impulso longínquo, que aos poucos vai tomando forma e ganhando força. A frase "Eu escrevo por dinheiro", por exemplo, tem exatamente o caráter do personagem, uma linguagem e um ponto de vista. É quando se apresenta uma sintaxe, uma voz falando, um ritmo, um jeito particular de ver as coisas. Começamos a escrever para representar o mundo e a escrita acaba nos representando. É um trabalho solitário, de uma solidão muito povoada, cheia de vozes, teias, armadilhas e surpresas. Você não sabe bem com quem está lidando. De repente o personagem pega outra dimensão.

Depois da primeira frase, o livro sai, passa a ser uma tarefa de funcionário público. Tezza escreve, metodicamente, durante quatro horas e um litro de café por dia. Sempre à tarde e à mão, e nunca escreve mais que meia folha sem pauta.

­ Tenho que ter este contato manual com a escrita, com o desenho das letras, sentir a formação das palavras, a caneta deslizando sobre a ranhura do papel. Esta relação táctil me ajuda a conduzir a escrita, se a letra sai miudinha e a linha reta, é que está bom. Quando a letra começa a ficar grande e a linha perde a compostura é bom ir parando.
Sua ração diária de escrita é contida. Impõe-se preencher apenas a metade de uma folha branca com sua letra miudinha. Escreve pensado e pausado. São quatro horas de escrita lenta, não adianta ter pressa pois não preenche mais papel que a meia folha estipulada, nem se dedica menos de quatro horas em escreve-las. É um exercício controlado, concentrado, contido. A escrita nunca lhe sai automática, na ânsia de que a idéia lhe escape. Tezza é um escritor que domina seus impulsos como se doma uma cavalo xucro.

­ Às vezes está muito bom, sinto que a escrita flui ótima, mesmo assim paro, para só retomar no dia seguinte. São muitas vozes e pontos de vista e não pode ir no embalo. Escrever com euforia perde a tensão. A boa literatura é um estado de tensão entre as pessoas. Depois de uma noite dormida a gente percebe que o dia anterior não estava tão genial assim, sempre tem coisas novas para acrescentar. Mas também pode ser o contrário: ter a sensação de fracasso total, achar que o livro não vai dar certo e, depois de dormir, acordar achando que é uma obra-prima de novo. É melhor não brigar com o livro.

A cidade inventada

Cristovão Tezza é um escritor talhado na biblioteca mas também nos baixios da rua. Tem influências evidentes de Borges em "A Cidade Inventada", o primeiro romance que lhe escapa da fogueira. Também pode ser identificada na sua escrita a dramaticidade da literatura russa, a urbanidade de Rubem Fonseca, os palavrões crus de Charles Bukowski (no registro "do banal, do reles e do antinobre") e as circunstâncias de um candidato a escritor.

­ Nunca fui fechado à influência. Contrabalanço a influência livresca pondo um bom ouvido no universo cotidiano, falado, a linguagem viva das pessoas na rua. Por mais que apure a técnica e a forma, procuro ter um ouvido atento ao redor. Acho equívoco pensar que se pode fazer qualquer experimentação na palavra em si. Todo pensamento vem de alguém.
Curitiba é uma cidade de solitários, mas tem uma literariedade muito forte, um universo só traduzível na ficção. Está concretamente entranhada nas páginas dos livros (de Tezza e de outros escritores como Dalton Trevisan e Jamil Snege) e sua leitura não traz uma crítica, mas a constatação de uma característica, uma biópsia.

­ Curitiba não tem nada a ver com o Brasil festeiro, é extremamente conservadora, a estabilidade faz parte da atmosfera da cidade, que tem horror de tudo que se mova. É o paraíso do escritor, porque aqui não há nenhuma chance de se levar tapinha nas costas. Tudo é três vezes mais difícil que em outros lugares, só sobrevivem os bons. Há uma exigência doentia.
Tezza é um dos grandes ficcionistas brasileiros, mas não consegue ser o maior escritor do seu bairro, porque Dalton Trevisan mora ali, na esquina de cima. Curitiba é assim.



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