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JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro, 4 de maio de 1998
TEZZA: "CURITIBA É UM MANJAR"
CLÁUDIO CORDOVIL
Considerado pela crítica como um dos mais talentosos rornancistas
de sua geração, o catarinense Cristovão Tezza,
45 anos, que adotou Curitiba, como moradia e campo privilegiado
para suas investigações sobre a natureza humana,
é uma das revelações do Sul que ganharam
projeção nacional. Ele acaba de lançar Breve
espaço entre cor e sombra (Ed. Rocco). Nele, Tezza realiza
o antigo sonho de escrever sobre artes plásticas, arcando,
para tal, com arriscados desafios. "Talvez neste livro tenha
assumido meu maior risco pessoal como escritor. Metade dele é
escrito sob o ponto de vista de uma mulher italiana. As mulheres
parecem ter apreciado, o que me deixa aliviado", revela.
Tezza. que também é professor de língua portuguesa
da Universidade Federal do Paraná, agradece, mas não
acredita que a comparação que os críticos
fazem de seu trabalho com o de Dalton Trevisan faça sentido.
"E lisonjeiro, pois Trevisan é uma das grandes referências
da prosa brasileira, mas esta associação talvez
seja circunstancial, pelo fato de identificarmos nossa literatura
com Curitiba e sermos os dois autores com mais obras publicadas
no eixo Rio-São Paulo", revela. Em comum entre os
dois, segundo o crítico Wilson Martins, "o humor irreverente,
implacável e incoercível, humor ao mesmo tempo alegre
e sarcástico" do curitibano.
Na topografia sociológico-mental de Curitiba, Tezza brinca
de mestre e aprendiz e se deleita com as contradições
entre o cosmopolitismo da cidade e o provincianismo dos seres
que a habitam. "Curitiba é uma cidade ultra-moderna
e uma província. Não é certamente o Brasil
típico. Não temos Carnaval, por exemplo. O curitibano
é reservado, não é dado a grandes expansões
e sempre prefere ficar em casa. Além disso, é um
ser provinciano, obrigado a ler jornais do Rio e de São
Paulo para saber de sua cidade."
Curitibanos fornecem grandes doses de matéria-prima para
investigadores da alma humana, como escritores. Nesse sentido,
Tezza garante que a cidade "é um manjar". "Ali
as relações humanas são problemáticas.
Como os curitibanos são muito reservados, as complicações
naturais dos relacionamentos parecem se hipertrofiar ali. Isso
pesa muito em minha literatura", reconhece.
Talvez por isso mesmo seus personagens sejam outsiders e perdedores
natos, desenhados com ricas texturas psicológicas. "A
literatura é o espaço do que não é
adequado. Todos os meus personagens são inadequados. Estão
no mundo errado. São outsiders, admite. Como o personagem-título
de Trapo (Ed. Rocco), sua obra capital. Nela, um adolescente com
aspirações intelectuais suicida-se em um quarto
de pensão após descortinar aos leitores sua acidentada
trajetória rumo à vida adulta, seus amores impossíveis
e sua desesperança existencial. Afinidades com os romances
dc formação (bildungsroman) não são
involuntárias na obra de Tezza. Neste tipo de obra literária,
o protagonista se forma e morre no contato com o mundo e através
das experiências que vive. Nela, o autor coloca sua visão
de mundo.
O escritor alemão Hermann Hesse é artífice
de monumentais romances de formação que influenciaram
a juventude de Tezza. "Andava com Narciso e Goldmund debaixo
do braço para lá e para cá. E um tipo de
literatura que desapareceu mas está voltando agora. Vejo
isso pelas minhas turmas na universidade. Todo ano passo para
os alunos uma relação de 70 títulos e a obra
de Hesse é muito lida por eles. Esse revival pode servir
para comprovar que literatura é visão de mundo e
isso andava meio ofuscado pois a literatura se tornara cerebral
demais", comenta.
Experiência crucial para sua formação de escritor
também foi seu engajamento profundo na contracultura dos
anos 60. Tezza, aos 16 anos, experimentou as dores e delícias
da sociedade alternativa ao conhecer o escritor Wilson Rio Apa,
fundador de um "projeto existencial", materializado
no Centro Capela da Artes Populares, em uma comunidade em Antonina,
uma espécie de Parati paranaense. "Peguei a época
da contracultura hippie e do 'paz e amor, bicho'. A fase de Rio
Apa foi fantástica em minha vida. O Cecap era um espaço
onde Rio Apa realizava o sonho eterno de combinar vida e arte.
O gesto diário era uma obra de arte. Esta era a nossa grande
utopia", recorda.
No Cecap, Tezza travou contato com o teatro total, que parece
dominar muitas de suas narrativas de ritmo seguro, de Trapo até
A suavidade do vento. "Meu domínio do diálogo
veio diretamente do teatro. Meu senso de timing nos diálogos
é algo que tem a ver com o olhar do teatro", revela.
Para conquistar reconhecimento nacional. Tezza teve de se desvencilhar
da provinciana e modorrenta vida cultural e editorial de Curitiba,
optando por editoras de São Paulo e do Rio. "Curitiba
tem 300 anos no papel, mas 100 anos de cultura própria",
revela.
De fato, Paraná e Santa Catarina apresentam um cenário
editorial e literário paupérrimos, quando comparados
com o Rio Grande do Sul, por exemplo. Há cerca de 10 anos,
Paulo Leminski afirmara que o Paraná não tinha tradição
literária. Parece que as coisas não mudaram muito
por lá. "O Paraná não tem grandes editoras
e por falta de raízes históricas. desenvolveu-se
lá uma sociedade provinciana que cultuava o pior tipo de
literatura. Poetas paranaenses foram coroados como príncipes
à moda grega no começo do século. Dá
até vergonha de contar, mas aquilo passou a ser uma referência.
Assim, as pessoas começaram a se afastar do mais repugnante
kitsch encalacrado na literatura", explica.
Mas, ainda assim, Tezza tem uma surpreendentemente boa relação
com essa cidade oficial, paradoxal incubadeira de sua literatura
oficiosa. "É da fé que nasce a blasfêmia",
brinca este autor que, em boa fase criadora, materializa sonhos
dos desvairados anos 60. "De alguma forma estou realizando
o velho sonho de Rio Apa de identificar a vida com a arte",
conclui.
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