GAZETA DO POVO - CADERNO G
Curitiba, 5 de Abril de 1998


A Vampira de Curitiba

Novo romance do escritor Cristóvão Tezza - Breve Espaço entre Cor e Sombra -
é um momento marcante da literatura brasileira

Valêncio Xavier

A Editora Rocco lança neste mês de abril o novo romance de Cristovão Tezza, Breve Espaço Entre Cor e Sombra. E uma obra de maturidade, conforme afirma o autor: "Ela tem essa densidade que somente a idade dá. Acredito em gênios da poesia aos 20 anos, porque realmente existem. O romance não, ele tem uma sedimentação que é muito dificil". E cita Os Buddenbroock, escrito por Thomas Mann aos 22 anos, como o único exemplo de um grande romance assinado por um jovem. É muita modéstia deste lageano, professor universitário que confessa ter aprendido a olhar o mundo pelos olhos de Curitiba; e a quem o crítico Wílson Martins, parcimonioso em elogios, se referia ao analisar seu romance Trapo (1982): "Alguma coisa nova, realmente nova, na temática, no estilo e na criação dos personagens foi introduzida por Cristovão Tezza".
Em entrevista exclusiva ao Caderno G, o autor fala da criação deste seu 11º livro, culminando numa brilhante carreira literária iniciada em 1979 com a publicação de seu romance Gran Circo das Américas.

O que conta o Breve Espaço entre Cor e Sombra?

O livro concentra alguns temas básicos de toda minha literatura - que inconscientemente apareceram. A solidão... o amor, que é história mais dificil do mundo (risos); o tema da relação mestre e discípulo, e o ato da criação centrado na pintura. Nasceu de uma lenda que corria, a de que o pintor Amadeo Modigliani teria jogado no fosso umas cabeças de pedra que esculpiu e não gostou. Fiquei pensando nisso muitos anos: "Uma dessas cabeças vai aparecer em Curitiba." (risos) A vida copiou a lenda, uns malandros fizeram umas cabeças e jogaram no fosso. E elas foram autenticadas por sumidades da crítica (risos).

A cabeça do Modigliani é uma espécie de fio condutor...

É o elemento comum entre a personagem italiana, a família do Tato - a mãe que mora em Nova York - e ele, que vive sozinho em Curitiba. Este livro, na verdade, é um recorte. Ele só tem uma simetria aparente. E um recorte de dois ou três dias na vida de Tato, que se concentra na carta que a amiga italiana escreve a ele, que atravessa o livro todo, e na busca dele atrás da cabeça do Modigliani.

Os personagens são projeções de Tato?

Não. É a assunção de um ponto de vista. Nós temos que acreditar nele. O narrador hoje não é mais onisciente, mas é passível de falhas. Ele é um ponto de vista. Essa representação dos outros é sempre perpassada pelo olhar do Tato. E ganha uma certa autonomia, num certo sentido. Não há nenhum ponto de vista fora dele, exceto o da italiana, acreditando que ele está traduzindo fielmente a carta, que é para ele (risos).

Você faz questão de detalhar Curitiba, nominando ruas e lugares. Por quê?

Isso me aparece naturalmente. Eu me sinto mais seguro. O registro do livro é, até certo ponto, realista. O fato de eu dar nome de ruas - Mateus Leme - me dá uma segurança. Eu me eximo de fazer mil outras descrições absolutamente desnecessárias. Pode-se argumentar que o leitor de São Paulo ou do Rio não sabe da Rua Mateus Leme. Mas o leitor sente quando o autor está falando de uma rua concreta. Você lê um romance do Dostoievski, que fala da Avenida Nevski, e você imediatamente está na avenida Nevski. (risos) Essa topologia não tem nenhuma relevância, mas parece que subterraneamente ela está sustentando uma geografia que é consistente, e funcional no livro.

Quais suas influências maiores?

É sempre dificil responder. Eu diria que tenho uma confluência de linhas, de pontos marcantes como leitor. Li Dostoievski, a literatura russa em geral me agrada muito. Num segundo momento li muito Joseph Conrad e William Faulkner. Na infância fui ardoroso leitor de Júlio Verne: isso também diz muita coisa. E tenho no Brasil duas referências de linguagem: a minha vertente, eu diria, vem de Machado de Assis e chega a Graciliano Ramos; do ponto de vista de texto, de um olhar sobre o mundo, de uma certa secura. E tem uma marca aqui em Curitiba que é Dalton Trevisan, a síntese disso ai.

E você conseguiu inventar a Vampira de Curitiba?

(risos) Engraçado, a personagem, aliás, não tem nome. Aconteceu, me apareceu um trecho, a personagem estava muito parecida com isso; o próprio Richard se refere a ela como vampira e adverte Tato: "Ela vai sugar seu sangue!" Disse isso para dar a idéia do tipo de competição entre as artes. E ali entrou a imagem da mulher também como sugadora. Então se refere a ela no livro como vampira. Depois me lembrei do "vampiro de Curitiba", que é outra coisa completamente distinta. Realmente, se prestarmos muita atenção no Dalton Trevisan ninguém escreve nada em Curitiba. Ele é um monstro, uma linguagem de fim de caminho. Sorte que sou romancista, e não contista. (risos)

Na visita do Richard ao ateliê, várias histórias se misturam, através do pensamento do Tato. Isso é intencional? Faz parte da tua maneira de construir?

Eu queria que toda aquela visita a Tato fosse relembrada em pedaços. Richard era um crítico, um marchand, alguém que podia deslanchar o trabalho dele. Ali foi uma arquitetura pensada, escrita, reescrita, articulada naquele sentido. Por que dessa forma e não de outra? Não sei bem. É uma intuição narrativa, digamos. Não entregar o ouro logo de cara. Não fazer simplesmente um começo, meio e fim naquela cena.

Você usa uma variedade de linguagens: a narrativa epistolar, a realista, o romance policial, capítulos que poderíamos classificar de literatura fantástica. Por quê?

O romance, ao contrário do que se diz atualmente, é o espaço desorganizado de linguagens. O romance estruturalmente fechado tende a se esclerosar como forma. O romance tem uma vitalidade imensa, porque é capaz de absorver todas as linguagens sociais. A linguagem do prosador nunca é absoluta como a do poeta; pois ele tem que respeitar a palavra dos outros. Tem de dar autonomia para as linguagens sociais. Elas têm de possuir vida própria. No romance se deve trabalhar com muitas visões do mundo e linguagens, não só do aspecto técnico da frase, mas de pontos de vista distintos. A batalha das linguagens sociais nunca se organiza. Ela é inacabada. O espaço romanesco, que vem do Dom Quixote até os modernos, é o lugar onde as linguagens se engalfinham e nunca chegam a um fechamento. O fechamento é aquele do gênero acabado, com uma fórmula, tipo romance policial, ou história de amor clássica. Mas o espaço romanesco continua aberto, não tem começo nem fim.



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