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Em: Cristovão Tezza. Série Paranaenses,
nº 5. Curitiba: Ed. da UFPR, 1994. pp. 19-36.
Diálogo
Entrevista com Carlos Alberto Faraco
Professor da Universidade Federal do Paraná
Embora você tenha nascido em Lages e tenha vivido em
lugares tão diferentes quanto Antonina, o Acre e a Alemanha,
pode-se dizer que é Curitiba o lugar mais expressivo na
formação de seu olhar sobre o mundo? O que esta
cidade tem de tão especial?
É verdade: penso que aprendi a olhar o mundo pelos olhos
de Curitiba, e não poderia ser de outra forma. Quando cheguei
aqui, em 1960, com 7 anos de idade, a "cidade grande"
representou um impacto na minha infância, um deslocamento
de perspectiva e geografia, de gente e espaço que me arrancou
de um passado idílico, do velho mito da "aurora da
minha vida que os anos não trazem mais"... Assim,
meus anos de formação foram também de adaptação.
E, como já é senso comum numa cidade que tem recebido
levas e levas de "estrangeiros" ao longo das últimas
décadas. Curitiba é uma senhora bastante reservada,
dona de uma timidez que com freqüência parece excessiva
formalidade, uma cidade muito consciente do seu espaço,
do espaço entre as casas, as árvores e as pessoas.
Isso faz diferença ao longo do tempo. Eu sinto que Curitiba
tem uma atmosfera diferente, mas só consigo traduzi-la
na ficção. Posso dizer que devo muito das eventuais
qualidades do que escrevo a esse impalpável universo curitibano,
que não se mostra mas é muito forte - ele domina
em pouco tempo qualquer pessoa que venha viver aqui, por mais
resistente que seja ... Curiosamente, é um mundo muito
mais mental que fisico. O espaço urbano que tem se tornado
a marca nacional de modernidade abriga uma população
fortemente conservadora, um contraste que considero literariamente
muito rico.
Como você interpreta a frase de Wilson Martins de que
a Curitiba de Cristovão Tezza não é mais
a Curitiba de Dalton Trevisan?
Naturalmente Wilson Martins apontava as diferenças da
Curitiba que fazem o pano de fundo, a geografia, da literatura
de Dalton Trevisan, e a minha geografia, muito mais recente -
vai aí uma diferença de geração. Minha
Curitiba é principalmente um pano de fundo, um espaço
familiar contemporâneo. Ponho Juliano Pavollini andando
na praça Generoso Marques ou o professor Manuel subindo
a Carlos Cavalcanti e estou em casa. E este espaço romanesco
- ainda que eu jamais tenha tido preocupações históricas,
sociológicas ou documentais - ganhou relevância à
medida que minha linguagem assumia um registro crescentemente
"realista", a partir de Trapo.
Mas há ,é claro, outras diferenças óbvias:
a Curitiba de Dalton Trevisan, na minha opinião o maior
prosador da literatura brasileira contemporânea, um dos
nossos grandes mestres, é uma cidade de natureza mítica.
O olhar microscópico de Dalton, hiper-realista, que transborda
em um ou dois parágrafos, criou uma cidade única,
cuja sordidez, impiedade e sarcasmo se tornam, no conjunto, marcas
emblemáticas da condição humana, segundo
Dalton. Mas foi a partir de um universo físico e mental
estritamente curitibano, representado em seus detalhes mais comezinhos
e provincianos, que Dalton construiu sua universalidade.
Não são poucos os que reclamam do ambiente cultural
de Curitiba: não há um projeto jornalístico
de cidade grande, há pouco espaço para boas polêmicas,
as políticas oficiais sdo extremamente rarefeitas, a salutar
diversidade cultural parece estar oprimida pelo cultivo acrítico
de toda uma mitologia local. Como um escritor que vive em Curitiba
vê essa questão?
Bem, todo escritor é solitário por opção
- escreve-se sozinho, e como escrever leva tempo, fica-se muito
tempo sozinho, e com o tempo já somos uma pessoa diferente
daquela que começou a escrever e já vemos a solidão
como uma companheira razoável, que pelo menos nos deixa
em paz.
Mas o escritor de Curitiba é solitário também
por outra razão: por Destino. Ele tem de ler os jornais
e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, comprar os livros
dos autores que não nasceram aqui, ver os programas de
televisão que chegam por via planetária, assistir
às peças de teatro que vêm nos visitar...
O problema é que Curitiba é uma cidade fortemente
oficial. Tudo se oficializa com tal força que a gente não
percebe mais as fronteiras. Esse traço vem de longe - basta
lembrar a gloriosa coroação de Emiliano Perneta
como o Príncipe dos Poetas. E uma ameaça terrível
para um artista; pela falta de hábito, toda crítica
se transforma numa espécie azeda de falta de patriotismo.
Mas é claro que é preciso evitar a paranóia.
Eu me recuso a crer que isso decorra de uma crueldade ditatorial
de nossos governantes, de um espírito orwelliano de nossos
meios de comunicação, de um renitente stalinismo
de nossas Fundações e Entidades Culturais, de um
Corpo de Censores metendo a tesoura nas contestações
irresponsáveis - tudo isso seria um absurdo no Brasil de
hoje. Acho que esse é simplesmente um traço conservador
da cidade que se reflete diretamente nas suas instituições
públicas e privadas.
Talvez tenha sido o Império da Cultura Oficial que gerou
sua solitária contrapartida curitibana, o agudo espírito
crítico, beirando o sarcasmo, o olhar demolidor que aparece
em silêncio, busca seu espaço nos corredores e nos
cafezinhos, a voz ferina que acha uma brecha no bombardeio oficial
para dizer o contrário. É a nossa, digamos, "carnavalização"
(logo nós, que sempre tivemos uma relação
no mínimo complicada com esse esporte nacional!), o jeito
que descobrimos para sussurrar que o rei - qualquer um está
nu.
Como escritor neste panorama, penso que a solidão bem-humorada
é uma ótima companheira.
E a Universidade?
Com a Universidade acontece um fenômeno interessante. Pela
sua própria natureza, ela é o símbolo da
Cultura Oficial, há mais de oitenta anos, sólida,
lenta, irremovivel, impenetrável - lá estão
as belas colunas greco-romanas que não nos deixam mentir.
Mas como virou moda no Brasil de hoje jogar pedras e torpedos
contra a universidade pública - que mesmo com todos os
seus defeitos e dificuldades é, de longe, o lugar onde
se encontra o melhor ensino superior do país - ela se transformou,
nos últimos anos, num espaço de resistência,
com alto grau de independência. E uma independência
que incomoda, mas essa é a única garantia de sua
sobrevivência com qualidade.
Você é um dos poucos escritores do Paraná
a ter espaço na imprensa nacional. Somos, de fato, uma
província esquecida?
Há no Brasil um violento processo de centralização
cultural, quase um estrangulamento: fora do Rio e de São
Paulo, praticamente ninguém existe. Esse é um fenômeno
geral. Em Curitiba, o problema é mais grave porque não
há alternativa, algum espaço de produção
artística e crítica que impusesse respeito, capaz
de repercutir fora daqui. E é uma pena, porque nossa produção,
em quase todas as áreas, é de boa qualidade. Só
um exemplo: a cidade que tem no teatro uma das atividades mais
comentadas no país, não conta com um único
crítico de teatro que atue regularmente na imprensa. A
cidade que tem um escritor do porte de Dalton Trevisan não
tem um crítico literário que acompanhe a produção
local nem uma editora que conte com efetiva distribuição
nacional. O curitibano que busque referências críticas
terá necessariamente de acompanhar a imprensa do eixo Rio-São
Paulo. O artista que não aparece lá está
condenado ao anonimato - ou então se oficializa, o que
eu acho melancólico.
Um pouco de reminiscência: fatos marcantes da Curitiba
e do Brasil de sua juventude (anos 60).
A minha formação, meu "rito de passagem",
foi marcada fortemente pelos movimentos estudantis de 67, 68,
nos quais me envolvi indiretamente: a partir dos 15 anos, acompanhei
o processo tumultuado de implantação da ditadura
militar, vendo parentes e amigos da família sendo presos,
exilados, desaparecidos, alguns para sempre. Com freqüência
ia visitar gente amiga no antigo quartel da Rui Barbosa ou no
presídio do Ahú, vítimas daqueles processos
kafkianos de triste lembrança. Aquela geração
estudantil, do ponto de vista cultural muito bem preparada, e
eticamente generosa, a meu ver acima da média das gerações
seguintes, é uma referência forte na minha vida.
No momento seguinte, anos 70, em que o "milagre brasileiro"
jogou boa parte da juventude ou na clandestinidade ou no silêncio,
encontrei no teatro minha atividade alternativa, depois de uma
tentativa rápida e frustrada de me tornar piloto da marinha
mercante e sair pelo mundo escrevendo... Resisti sete anos a entrar
na Universidade, que à época eu via como a personificação
completa do Sistema, pronto a me destruir. Estava vivendo o sonho
romântico da marginalidade, a meu modo; fiz um curso de
relojoaria e cheguei a abrir uma oficina em Antonina, enquanto
participava ativamente do grupo de artes populares de W. Rio Apa.
Escrevi peças, algumas levadas em cena, e alguns romances
imprestáveis - mas o projeto de escritor já estava
solidamente instalado. Também nessa época passei
um ano na Europa, escrevendo os contos de A cidade inventada,
viajando com uma mochila nas costas e trabalhando ilegalmente
na Alemanha por um período.
Foi uma época boa da minha vida, que me deu um lastro existencial
que até hoje pesa no meu trabalho e na minha visão
de mundo.
Você se formou em Letras pela Universidade Federal do
Paraná e fez seu mestrado na Universidade Federal de Santa
Catarina com uma tese sobre a obra de W. Rio Apa. Que importância
teve para você essa experiência universitária?
Há alguma repercussão dela em seu fazer literário?
A Universidade - quando finalmente cheguei nela. aos 25 anos
- me abriu um outro caminho, que teve relação mais
com a linguagem da ciência que com a linguagem da arte.
Ela me deu instrumental para enfrentar e eventualmente responder
questões que apenas a intuição não
conseguia resolver. Particulannente na área da Lingüística,
em que tudo era novo para mim, aprendi muito - e descobri essa
figura fascinante da teoria da linguagem que é Mikhail
Bakhtin. Mais tarde, no mestrado, tive oportunidade de retomar
criticamente a obra de W. Rio Apa. um escritor que teve uma presença
marcante nos meus anos de formação, através
da vivência do teatro e da literatura.
Mas não sei avaliar o peso eventual da formação
universitária nos meus romances. Certamente algum traço
dela passou para a literatura. Mas acho que nunca caí na
tentação de escrever teses acadêmicas em forma
de romance. A contaminação de uma coisa pela outra
pode ser mortal...
Hoje você atua como professor de português na
UFPR e muitos se perguntam por que um escritor não é
professor de literatura. O que você tem a dizer sobre isso?
Jamais conseguiria dar aulas de literatura. A literatura, para
mim, é uma atividade que prefiro deixar no quarto escuro
das minhas intuições. A idéia de organizá-la
didaticamente poderia ser danosa, colocar demasiada lógica
e clarividência no que tem seu impulso misterioso. Há
escritores que fazem bem as duas coisas, e eu os invejo. Mas sinto-me
bem como professor de língua portuguesa; trabalho com a
linguagem não-literária de todos os dias, a língua
viva, e isso me fascina sem invadir o meu mundo romanesco. E trabalhar
com textos diferentes, acompanhar o trabalho de linguagem dos
meus alunos é uma atividade que me dá prazer.
Muitos escritores afirmam que as coisas que são ditas
em literatura são sempre as mesmas e que o que importa
é a maneira como são ditas. Você concorda
com essa perspectiva?
A maneira como se diz as coisas é realmente um aspecto
fundamental de toda produção literária -
o olhar que faz a diferença. Nesse sentido, qualquer tema
é bom, qualquer assunto serve para um bom escritor. Mas
é fato que cada escritor tem suas repetidas obsessões
- às vezes uma só que atravessa a vida inteira,
e parece que escrever é tentar resolvê-la, um trabalho
que não termina nunca. Outros são artistas enciclopédicos,
quase uma súmula de uma época ou de um povo; outros
são monotemáticos, batem a vida inteira na mesma
tecla; outros são "estetizantes", depositam na
própria linguagem todas as esperanças de grandeza;
outros são basicamente contadores de história, e
colocam no traço narrativo o melhor deles... enfim, felizmente
a literatura é o império da diferença, e
o universo que mais amplamente dá conta das diferenças.
Como sou um leitor que lê (saborosamente) de tudo, não
consigo hierarquizar a produção literária
por este ou aquele critério.
Jorge Luís Borges, em entrevista publicada em Os escritores
(Companhia das Letras, 1988), comenta que, após um acidente,
temeu não mais poder escrever. Diz ele: "Minha vida
estaria praticamente acabada, porque a literatura é muito
importante para mim. Não porque eu considere minhas próprias
coisas especialmente boas, mas porque sei que não poderia
passar sem escrever" (p. 201). E você, poderia passar
sem escrever?
Suponho que não - pelo menos não seria mais a pessoa
que sou. Escrever é uma atividade que tem seu lado perverso:
quando começamos, há uma distância razoável
entre aquele que escreve e aquilo que ele escreve. Inocentemente,
continuamos a brincadeira, que nos dá o poder de criar
mundos alternativos e a ilusão de que temos total controle
sobre eles. Mais tarde, essa distância se encurta, e com
o passar dos anos já somos escritos pelos nossos textos.
Temos de continuar escrevendo - caso contrário, parece
que perdemos nossa própria face. Sempre me espantou a existência
desses raríssimos escritores que. súbito, param
de escrever. Eles são seres poderosos e não têm
explicação.
William Faulkner, no mesmo livro (p.39) diz que um artista
é uma criatura arrastada por demônios. Não
sabe porque o escolheram e normalmente está ocupado demais
para se perguntar isso. Que demônios arrastam você?
Poucos, mas quase insuportáveis. Às vezes é
preciso escrever um livro inteiro para descobrir. Bem, deve haver
alguma razão por que uma pessoa supostamente saudável
se dedica por conta própria, obsessivamente, a este trabalho
que em princípio não é solicitado por ninguém;
que só é publicado com grandes dificuldades; que
na maioria esmagadora das vezes vende muito pouco e cuja repercussão
quase sempre está próxima de zero... E é
um tiro no escuro: um engenheiro tem plenas condições
de avaliar a qualidade de uma casa ou de uma ponte, um médico
sabe se a operação foi bem feita ou não,
mas um escritor sabe muito pouco sobre o que produz. Claro que
os demônios devem ser muito hábeis e fortes para
nos arrastar a vida inteira nessa névoa.
Bem, para evitar a tentação da soberba, eu gostaria
de dizer que não há nada de heróico ou de
renúncia grandiosa nessa atividade - mesmo porque viver
o mundo da literatura me dá um prazer imenso.
O mesmo Faulkner diz: 'Sou um poeta fracassado. Talvez, primeiro,
todo romancista queira escrever poesia, descobre então
que não consegue e tenta o conto, que é afonna mais
exigente depois da poesia. E, fracassando nisso, só aí
começa a escrever romances" (Os escritores, p. 39).
Sua relação com as formas literárias é
semelhante?
Eu acho que sim - pelo menos segui o mesmo roteiro, e ainda com
a desconfiança de que o fracasso também tenha chegado
ao romance... Mas é claro que há um toque irônico
de Faulkner ao desfazer do gênero que o consagrou. Alguém
diria que O som e a fúria é "pouco exigente"
do ponto de vista formal? Todas as formas são igualmente
exigentes. O que acontece e que os escritores de um gênero
quase sempre têm inveja dos escritores dos outros gêneros...
Nunca consegui escrever um poema que prestasse. Eles só
se tornaram razoáveis quando viraram objeto de um romance.
nas mãos do Trapo - que aliás morreu. Os contos
de A cidade inventada não foram adiante. Nunca mais escrevi
um conto na vida - não consigo sequer imaginar uma idéia,
uma situação, uma imagem que pudesse se transformar
num conto. Há muitos anos eu só consigo pensar em
150 páginas, no mínimo. Em compensação,
com uma alegria um tanto mesquinha, já ouvi poetas me dizendo
que o maior desejo deles é contar uma história longa,
em prosa mesmo. Um deles me disse: como é dificil fazer
um personagem abrir uma porta, conversar com alguém, sentar-se
à mesa, andar na rua, dirigir um carro! Bem, simplificando
bastante pode-se dizer que é a soma dessas miudezas insignificantes,
contada por alguém, que faz a alma romanesca.
Talvez a grande questão que se apresenta a quem escreve
é descobrir, sozinho, a sua própria linguagem o
que inclui o seu gênero. Não é improvável
que haja escritores que passaram a vida insistindo no trilho errado.
Rosse Bernardi, no estudo crítico publicado no presente
livro, entende que há um salto qualitativo em sua produção
literária a partir de Trapo. E essa também sua percepção?
Sim. Sem dúvida, existe uma diferença de qualidade
(técnica, visão de mundo, maturidade) a partir de
Trapo, que escrevi em 1982, e, é claro, estou sempre disposto
a achar que estou melhorando livro a livro... Como nunca fui precoce
- minha produção juvenil era dolorosamente ruim,
ainda que entusiasmada - o processo de escrever, além de
ser a construção de um objeto (isto é, um
romance que desejamos de boa qualidade), foi para mim também
uma educação, no sentido amplo: escrever um romance
é uma viagem comprida, que nos transforma. É uma
solidão muito povoada, cheia de vozes, teias, armadilhas
e surpresas. É nesse sentido que entendo o ato de escrever
como uma aventura ética, que mexe com tudo que está
em nossa volta, e não apenas o ato de polir um objeto brilhante
que repousa docilmente nas nossas mãos. Claro, há
sempre o risco de o escritor estar melhor ao final da obra, mas
não necessariamente o seu trabalho. Mas, como eu já
disse antes, esse é um terreno movediço e obscuro.
Tenho muita dificuldade de avaliar meu trabalho - eu até
mesmo evito reler meus livros publicados... Mas de modo geral
reconheço que há uma diferença de qualidade
entre os livros anteriores a Trapo e os posteriores.
Como leitor mal acostumado com a idéia de que há,
na produção de um escritor, uma progressão
linear, tive uma surpresa ao saber que Gran Circo das Américas
havia sido escrito depois de A cidade inventada. Surpreendeu-me,
na época, o contraste entre a simplicidade do primeiro
e a densidade do segundo. Assim, cabe aqui perguntar conto tem
se delineado seu projeto literário.
Sim, é verdade - muita gente à época assinalou
minha "queda" literária... Vou tentar me lembrar
do que aconteceu. Primeiro, o conto não me satisfazia como
gênero e eu não queria continuar revolvendo um universo
literário povoado de influências muito fortes: Borges,
de um lado, e de outro a visão da decadência da civilização,
do mundo em ruínas, que eu tomava emprestada do meu amigo
Rio Apa, tudo em meio a uma temática do universo adolescente
em crise, muito próximo da poesia. Escrever aqueles contos,
penso eu agora, foi um modo de exorcizar esses demônios
e ao mesmo tempo dominar tecnicamente a minha escrita. Há
contos ali que foram escritos vinte vezes - a frase ainda estava
muito xucra na minha mão
Bem. Gran Circo também nasceu de uma influência teórica
- o mesmo mestre Rio Apa anunciava profeticamente, no teatro de
rua que fazíamos, o retorno do que ele entendia por cultura
popular, e eu levava aquilo muito a sério. Bem, toda frase
que me saísse elitista, todo rococó estilístico
era rapidamente cortado com a determinação de quem
arranca a cabeça de um herege perigoso. A idéia
era chegar ao "povo", digamos assim. Bem, de certa forma
deu certo: a Brasiliense publicou o livro na coleção
Jovens do Mundo Todo e ele vendeu 5000 exemplares em poucos meses.
Só não saiu a segunda edição porque
o jovem autor colérico se envolveu numa rusga com o paciente
editor, Caio Graco (que oito anos mais tarde publicaria Trapo),
acerca do corte de um trecho que estava incomodando as professoras.
Visto daqui. tudo parece meio idiota, e de fato é: com
corte ou sem corte o livro continuaria muito limitado. E além
disso eu já estava escrevendo O terrorista lírico
a pleno vapor, que era outra história. Acho que é
um mecanismo de defesa: terminado um romance. eu me livro rapidamente
dele.
Entretanto, visto de outro ângulo, Gran Circo tem algumas
qualidades técnicas que os contos não tinham: o
domínio do diálogo, um registro realista muito mais
eficiente, e mesmo a simplicidade como valor estético,
um valor (difícil) que prezo muito, ainda que mal realizado
neste primeiro romance. E, finalmente, este detalhe: com todos
os defeitos, foi o meu primeiro romance que "ficou em pé".
por assim dizer, depois de três tentativas fracassadas.
Você teve, como participante do Centro Capela de Artes
Populares, uma prolongada vivência de teatro. Como você
avalia esse período na perspectiva do seu fazer literário?
Considero que essa época representou uma fase ótima
da minha vida. Porque não era simplesmente "fazer
teatro", como quem se inscreve num curso. A comunidade do
Rio Apa era de fato um projeto existencial, uma atividade coletiva
em que tudo era discutido em conjunto. O Rio Apa conseguia aglutinar
um grande número de "deserdados" que acabavam
encontrando lá em Antonina algum sentido na vida. O teatro
era tanto literatura, como filosofia e terapêutica. exatamente
no espírito dos anos 60 e 70. O barbudo era uma liderança
muito forte, como ainda hoje é, com alguns toques messiânicos
que davam segurança àquela troupe de perdidos. Além
disso, sempre tivemos humor, um certo humor corrosivo, bastante
saudável, que contrabalançava a seriedade às
vezes excessiva do projeto rioapeano. A convivência com
essa relativa marginalidade, com aquela anarquia meio patriarcal
sustentada pelo "velho barbudo", me deu um certo olhar
sobre o mundo que está presente em toda a minha literatura.
Além disso, a convivência diária com o escritor
Rio Apa, nossas conversas, dúvidas, projetos, nossa solidariedade
comunitária, meu aprendizado numa época em que se
absorve tudo, tudo isso foi tão forte que já faz
parte inseparável de mim - mesmo quando o tempo se encarregou
de me dar um rumo próprio.
Recentemente, você voltou ao teatro transmudando Trapo
da linguagem romanesca para a linguagem dramática. Conto
foi essa experiência?
Não foi de fato dificil, porque a própria estrutura
romanesca do Trapo, mesmo a sua linguagem, ajudou muito. Percebi
o quanto o teatro influenciou minha literatura ao fazer o caminho
inverso - o livro todo foi escrito "dramaticamente".
A maior dificuldade foi justamente selecionar as cenas, fazer
os recortes possíveis do romance. Porque é sempre
possível fazer uma outra peça diferente do mesmo
livro, com outro ponto de vista - adaptar é reescrever.
Além da adaptação do texto, há também
a adaptação de cena, as opções estritamente
de direção, que ficaram a cargo do diretor e produtor
Ariel Coelho - que, aliás, participou da comunidade do
Rio Apa nos anos 70. Mas é claro que a encenação
de Trapo, como montagem profissional, não teve relação
alguma com o mundo vivido na época do Centro Capela. Eu
gostei muito da experiência, do espetáculo em si,
da curtição de ver o texto literário vivo,
os personagens em carne e osso, da resposta do público,
do ótimo trabalho dos atores - não só o Marcos
Winter, Cláudio Mambérti, Imara Reis e o próprio
Ariel, nos papéis principais, como também do elenco
de apoio. Uma pena que o sucesso da peça não tenha
garantido a continuidade do projeto. Hoje prefiro ver o teatro
mais como tema literário - o universo dos atores é
fascinante, às vezes assustador - que como atividade que
me entusiasme.
Para finalizar, curiosidades costumeiras dos leitores:
a) Que escritores estão na sua lista de preferências?
Essa é uma pergunta muito dificil de responder, porque
sempre fui um leitor caótico. Além disso, as preferências
são sazonais; um autor que nos parecia ótimo há
cinco anos, subitamente perde o encanto, ou o contrário
- alguém que não conseguíamos ler se torna
nosso autor de cabeceira... Procuro ser um leitor generoso, torço
para gostar do que estou lendo, para entrar na linguagem alheia
e ver o mundo daquele lado. Assim, não tenho preferências
absolutas - e evito ler profissionalmente. Leitura para mim é
prazer.
b) Você escreve a lápis?
Passei a vida escrevendo a caneta, em papel cópia, fininho,
quase sempre de cor amarela, a letra miúda. Só no
meu último livro, ainda inédito, O fantasnta da
infância, me entreguei às delícias do computador,
com o prazer herético do adolescente que rompe com o Mundo
Sagrado da Escrita... Gostei tanto que me pergunto como consegui
passar tanto tempo sem computador
c) Como se dá o dia-a-dia da escritura de uni romance?
No meu caso, há uma palavra-chave: método. Quando
me organizo para começar a escrever um romance, a primeira
providência é limpar gavetas, fazer faxina no escritório,
jogar fora papel velho, separar em pilhas contas de telefone,
luz, condomínio. grampeá-las, tudo para não
começar a trabalhar. Bem, chega um momento em que não
dá mais para adiar a tarefa. Então começo.
Atualmente, à tarde: das duas às seis, com uma carteira
de cigarro no meio e um litro de café.
Na minha experiência, o livro sempre começa inseguro.
Eu já sei previamente que as primeiras trinta páginas
serão jogadas fora, mas é preciso ir adiante porque
há um momento exato em que a linguagem do romance aparece,
viva: eu sinto que tenho uma sintaxe, uma voz falando (que não
sou eu). um ritmo, um jeito particular de ver as coisas - e aquela
narrativa que antes não passava de uma mera seqüência
cronológica de fatos, a narrativa que eu passei e repassei
mentalmente durante um ano ou dois sem qualquer anotação,
ela ganha um corpo próprio, muda de rumo. cresce, se multiplica
em outras (ou o contrário, se concentra num ramo só).
Nesse instante - em geral vinte ou trinta dias depois de iniciar
o livro - começo a me tranqüilizar, porque é
só uma questão de tempo, o romance já tem
alma. Terminada essa primeira versão - que leva de seis
a oito meses - descanso um tempo (ou deixo o livro descansar),
e recomeço. agora já com a visão de conjunto.
Trata-se de cortar os corpos estranhos, aparar excessos, refazer
buracos, dar unidade. É a parte mais dificil. e. às
vezes, angustiante. Não é fácil suprimir
dois ou três capítulos inteiros que pareciam tão
bons. que deram tanto trabalho e que ao fim não têm
nada a fazer no livro
d) É possível viver da literatura no Brasil?
Bem, tem quem viva da literatura no Brasil - Jorge Amado, por
exemplo - mas é muito dificil. A razão é
simples: há relativamente poucos leitores no país,
se pensamos nos seus cento e tantos milhões de habitantes.
A tiragem média de um livro de ficção não
passa dos 3000 exemplares. É uma perspectiva tão
estreita que eu prefiro não me angustiar com ela. mesmo
porque essa não é uma questão de natureza
literária. Quando me perguntam o que se pode fazer para
mudar tal panorama, respondo o que todos já sabem: mudar
o perfil social do país.
e) O que você anda pensando sobre realidade brasileira?
Cobras e lagartos. como todo mundo. E, também como todo
mundo, ando bastante confuso diante da realidade brasileira. Ela
nos provoca, pela sua violência, o tempo todo, exige respostas
que eu não tenho na ponta da língua. A ficção
é o meu modo de compreender o mundo, e eu sei que a realidade
social do país está presente nela, na minha linguagem
e na minha visão de mundo, porque nenhum escritor - nenhuma
linguagem - está fora do seu espaço e do seu tempo.
Eu sei que escrever ficção (e ficção
sem nenhum parentesco com o bem-intencionado "realismo socialista"...)
é muito pouco. diante da brutalidade genocida com que os
fatos têm nos presenteado: chacina de menores, chacina de
índios, chacina de presos, sem falar na lenta chacina dos
miseráveis sobreviventes... O brasileiro cordial de outrora
- acho que eu sou um deles - reza para que a liberdade conquistada
duramente nos últimos vinte anos saiba dar as respostas
sociais que muitos têm na ponta da metralhadora. Ainda criança,
eu vi de perto esse filme, e não gostei.
f) Pequenos prazeres de um escritor em Curitiba.
Beber cerveja com um ou dois amigos, de preferência num
bar fora da moda, não muito barulhento e sem muita frescura.
Passar o carnaval na cidade vendo fitas de vídeo ou lendo
um autor búlgaro ou finlandês, recentemente traduzido
e muito interessante. Ficarem casa. escrevendo um romance de 250
páginas.
E muitas outras coisas, é claro!...
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