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ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 24 de novembro de 1994
Tezza vira o novo 'vampiro' de Curitiba
'Uma Noite em Curitiba', décimo livro do escritor,
confirma o estilo enigmático do herdeiro de Dalton Trevisan
José Castello
Especial para o Estado
CURITIBA - O vampiro Dalton Trevisan, apesar de parcimonioso
e solitário, tem um herdeiro: o escritor Cristovão
Tezza, hoje com 42 anos. Como se fosse um filho, Tezza não
foge à regra: desmente em quase tudo o pai. Exceto em dois
pontos: na atração por Curitiba e na qualidade da
ficção. Tezza é prolixo, gosta de pintar
retratos pacientes e - ao contrário da escrita meteórica
de Trevisan - exibe estilo sinuoso e apego absoluto à lentidão.
No início do ano, ele esteve hospedado. por dois meses
na periferia de Nova York, como escritor-residente a convite da
Ledig House Foundation. Ao lado do romancista eslovaco Martin
Simecka, do alemão Helmut Frielinghaus e da norte-americana
Sarah Dunn, o fllho do vampiro passou 62 dias trancafiado no ambiente
gótico de uma mansão gelada e pôde usar o
degredo voluntário para terminar seu décimo livro:
Uma Noite em Curitiba, a história de uma paixão
explosiva. Em período de "descanso", rotina de
sono que Tezza impõe a todos os seus escritos para que
possam se esvaziar de excessos e ilusões, o romance só
deve ser dado como pronto em meados de 1995.
O último livro de Cristovão Tezza, O Fantasma
da Infância, chegou recentemente às livrarias
em edição da Record. Correspondeu plenamente à
avidez de seus leitores. O tema central da literatura de Cristovão
Tezza é a relação entre as pessoas. Retratista
do mundo real, ele pratica, na verdade, um falso realismo que
não busca os fatos, mas suas entrelinhas sombrias. O
Fantasma da Infância é uma história de
"terror interior", em que as assombrações
não vêm de fora, mas de dentro. Um relato tipicamente
curitibano, entranhado pela alma de uma cidade marcada pelo segredo
e pelo amor aos enigmas.
Tezza se tornou um especialista em situações-limite,
em que os fatos se confundem com armadilhas. Seu romance mais
vendido é Trapo, de 1988, em quarta edição
pela Brasiliense, o relato de vida de um poeta suicida de 20 anos
de idade, autor incompreendido de mil páginas inéditas.
Ao contrário do cada vez mais conciso Dalton Trevisan,
Cristovão Tezza prefere as narrativas mais espessas e complexas,
reflexo talvez de sua formação como relojoeiro.
"Os japoneses acabaram com minha profissão",
lamenta. Transferiu para a escrita esse amor pela lentidão
e pelo alinhavo denso e longo.
Nascido em Lages, Santa Catarina, Cristovão Tezza foi para
Curitiba com 8 anos. Cursou por um ano a Escola de Marinha Mercante
no Rio de Janeiro, fez teatro popular, foi o iluminador das primeiras
montagens de Denise Stoklos, viajou como mochileiro e estudou
em Coimbra, Portugal.
Em 1975, aos 23 anos, escreveu seu primeiro romance, A Cidade
Inventada, que só seria lançado quatro anos
depois, em edição do autor. Dede 1986, é
professor de Língua Portuguesa na Universidade Federal
do Paraná. Seu best seller não é um romance,
mas um livro didático: Prática de Texto Para
Nossos Estudantes, editado pela Vozes em 1992 e escrito em
parceria com Carlos Alberto Faraco.
Caderno 2 - É muito difícil ter Curitiba como
tema depois do sucesso de Dalton Trevisan?
Cristovão Tezza - Dalton Trevisan é uma figura
emblemática para Curitiba. Trata-se de um mestre, um autor
que chegou ao ponto raro de se tornar um escritor para escritores.
Mas não me sinto sufocado por ele. Acho que, no mundo literário,
as relações pessoais costumam ser pensadas quase
sempre em termos de competição. E eu sempre digo
que nós, escritores, podemos ser tudo, menos cavalos de
corrida.
Caderno 2 - Isso quer dizer que a sua é uma outra Curitiba?
Tezza - Acredito que nós, escritores curitibanos,
podemos ser muito diferentes, mas trabalhamos dentro de uam atmosfera
comum que nos marca muito. Penso na exigência que temos
com o apuro formal, que se torna quase uma obsessão, efeito
talvez de nosso isolamento. Penso, também, em um certo
peso ou angústia curitibana que nos envolve e que se diferencia
radicalmente da tradição mais brejeira da literatura
brasileira - basta pensar em Jorge Amado ou em João Ubaldo
Ribero.
Há uma marca curitibana que nos atravessa e que eu definiria
como o sentimento de que não se pertence a lugar nenhum.
Caderno 2 - E de onde viria esse sentimento?
Tezza - Não sei bem dizer de onde ele vem, sei que
existe. Mas essa sensação talvez seja um reflexo
do fato de nós não nos sentirmos habitantes de um
cenário cultural definido - ao contrário do que
ocorre, por exemplo, com os cariocas e com os gaúchos.
Creio que a razão disso é não termos, em
Curitiba, uma imprensa de qualidade. Na modernidade, se você
não se integra através da mídia, se você
não se converte em notícia e aparece, você
não existe. Em Florianópolis, basta um escritor
rabiscar meia dúzia de poemas para logo merecer uma página
inteira em algum jornal. Aqui, a imprensa é feita com telegramas
e com a publicação de colunas compradas dos jornais
do eixo Rio-São Paulo. Sem imprensa, resta-nos o vazio.
Só passei a existir como escritor depois que a revista
Veja publicou duas páginas sobre Trapo. Antes disso, eu
escrevia, mas eu não existia.
Caderno 2 - A famosa introspecção de Dalton
Trevisan, então, não é apenas uma característica
pessoal, mas também um sintoma da cidade?
Tezza - Exatamente. Dalton Trevisan sempre foi um escritor
muito retraído. De uns vinte anos para cá, ele não
tem contato praticamente com ninguém e protege ferozmente
sua privacidade. Já fomos apresentados, mas não
somos amigos. Ele é meu vizinho de bairro. As vezes, cruzo
com ele na rua quando vem do supermercado com a sua sacola de
compras. Acho que esse retraimento é uma atitude legítima,
não é uma pose. Há uma estreita relação,
também, entre essa postura e a literatura que ele escreve.
Não o vejo como uma figura castradora. Ao contrário
acho confortável e estimulante ter alguém como Dalton
Trevisan vivendo tão próximo de mim.
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