GAZETA DO POVO - CULTURA G
Domingo, 13 de setembro de 1992


A pena mágica de Cristovão Tezza

Do alto de seu apartamento (19º andar) o escritor "curitibano" Cristovão Tezza concedeu uma entrevista ao Cultura G. Com oito livros publicados, Tezza faz parte da nova geração de escritores nacionais de ficção. Num papo descontraído ele comenta seu início na literatura, suas aventuras e seus futuros projetos

Cultura G - Quando você começou a escrever?
Tezza - A partir dos 3, 14 anos.
Cultura G - Qual é a sua idade?
Tezza - Estou com 40 anos. Estou na fase do nem parece. (risos).
Cultura G - Foi alguém especial que o introduziu na literatura, ou foi espontâneo?
Tezza - Não foi uma coisa mais normal. Quer dizer, foi algum tipo de anormalidade. Comecei com poesias.
Cultura G - Chegou a publicar algumas destas poesias?
Tezza - Não, felizmente não. Porque era coisa de adolescente. Muito imaturo. Nem sei se guardei algum poema. Um diz fiz uma limpeza na casa e apaguei o passado.
Cultura G - E você sempre foi escritor, ou teve outras profissões?
Tezza - Quando acabei o segundo grau, fiz um projeto alternativo. Primeiro fui para a Marinha Mercante, não cheguei a completar um ano lá, em 70. Depois comecei a trabalhar com o Rio Apa. em teatro.
Cultura G - Algum motivo para sair da marinha?
Tezza - Eu não me adaptei com o regime militar. A minha idéia era viajar, conhecer, escrever. Mas nem cheguei a sair do quartel.
Cultura G - Como foi o contato com o Rio Apa?
Tezza - Fui morar em Antonina, onde ele tinha aquele centro Capela de Artes Populares. Foi durante os anos 70 a 76. Era um acampamento alternativo. Neste tempo eu era relojoeiro, fiz um curso e consertava relógios. (O nome era "Relojoaria 5 em Ponto", homenagem ao poema do espanhol Gaccia Lorca).
Cultura G - Ainda hoje você conserta relógios? Virou um tipo da hobby?
Tezza - Não dá tempo, depois que as crianças vão crescendo (tem duas), não tem nem tempo, nem espaço. Eu gosto do trabalho, mas...
Cultura G - E como voltou para Curitiba?
Tezza - Eu casei em 77, com a Beth. Dai passei um ano no Acre, onde curiosamente entrei na Faculdade de Letras. Coincidiu de que quando cheguei lá. abriram as inscrições para fazer vestibular e por insistência da Beth eu fiz. Em 78 voltei para Curitiba e não saí mais.
Cultura G - Mas você não é curitibano?
Tezza - Sou um curitibano nascido em Lajes (Santa Catarina). Eu acho que isto é uma caracteristica da cidade, esta mistura, este encontro de pessoas de todas as partes.
Cultura G - E continuou na faculdade?
Tezza - Dai comecei uma carreira acadêmica. Fiz pós-graduação. Depois fui 2 anos professor em Florianópolis. E em 86, abriu concurso para professor aqui em Curitiba e vim para cá.
Cultura G - Por alguma questão especial?
Tezza - Eu gosto muito de Curitiba. Já experimentei um monte de lugares mas acabo sempre voltando para cá. Hoje sou professor de Língua Portuguesa na Federal.
Cultura G - Porque você prefere dar aulas de Língua Portuguesa às aulas de Literatura? Sua experiência como escritor não seria útil aos alunos?
Tezza - Eu não saberia dar aula de Literatura. Eu trabalho com Prática de Texto, é uma disciplina mais prática, com textos técnicos e jornalísticos. Eu não gostaria de dar aula de Literatura nunca.

ESCRITOR

Cultura G - Quando começou a escrever livros e editá-los?
Tezza - O primeiro livro foi "A Cidade Inventada", em 79, foi um livro de contos. Eu participei da fundação de uma editora aqui em Curitiba, a Coeditora. Chegou a lançar uns 10, 12 livros naquela época. Daí, naturalmente faliu. Depois eu ajudei a fundar outra editora. em 81 com Roberto Gomes, a Criar Edições. Mas vendi a minha parte para ele. Nesta época publiquei "O Terrorista Lirico.
Cultura G - Por que abandonou este lado mais comercial?
Tezza - Primeiro porque não sou do ramo. E depois para uma editora dar certo precisa de muito dinheiro. Aliás, uma coisa que Curitiba precisava era uma grande editora. Uma editora de expressão nacional. Mas para isso precisa de muito capital, um investimento pesado.
Cultura G - Esta editora serviria exclusivamente para editar livros de curitibanos?
Tezza - Não, mas para integrar Curitiba num mercado editorial brasileiro. Por que o Paraná todo tem bons e grandes escritores: Mas acaba havendo um estrangulamento, porque se o autor não sai no Rio e São Paulo, ele simplesmente não existe. Não aparece no cenário brasileiro.
Cultura G - Cite alguns destes bons escritores do Paraná?
Tezza - Tem um monte, O Karam, a Kolody. o Wilson Bueno. etc... Sem falar nos já nacionais. Tem um monte de escritores bons, mas não dá para dizer todos porque eu sempre vou esquecer alguém e depois ele não vai mais me cumprimentar.
Cultura G - Quantos livros você já escreveu?
Tezza - Publicados até agora oito: "O Terrorista Lirico", 'A Cidade a Inventada", 'Gran Circo das a Américas", "Ensaio da Paixão", "Minha Mãe e Outras Mulheres", "Trapo", 'Juliano Pavollini" e "A Suavidade do Vento". Tem um livro didático que vai sair agora em parceria com o reitor da UFPR, Faraco. Será uma experiência nova. O nome é "Prática de Texto para Estudantes Universitários". Até o final do ano, pela Editora Vozes, ele deve sair.
Cultura G - Tem algum livro na cabeça, que gostaria de escrever?
Tezza - Estou terminando um livro. Um romance. Provisoriamente ele se chama "Fantasma da Infãncia", para o ano que vem.
Cultura G - Como é o seu ato de criar'? Você é metódico?
Tezza - Eu tenho escrito regularmente um livro a cada dois anos. Eu fico um ano e pouco, com uma idéia na cabeça, depois eu passo para o papel.
Cultura G - Como estas idéias aparecem?
Tezza - Engraçado. Eu tenho uma certa unidade temática. Alguns temas que me atraem e vão se repetindo, enriquecendo de livro a livro.
Cultura G - Qual seria este tema?
Tezza - É difícil dizer, quem tem que falar são os criticos. Mas Curitiba, a partir de "Trapo" virou meu pano de fundo. Eu não consegui mais me livrar dela. No bom sentido. Eu acho ela muito rica literariamente. E tem um universo urbano amplo, cheio de solidão humana. Gosto muito da narrativa. Sou apaixonado pela narrativa, quer dizer, pela história bem contada, que segura o leitor pelo colarinho.
Cultura G - Quando você es creve você se preocupa com o leitor?
Tezza - É uma coisa complicada. Nunca pensei objetivamente em um leitor. Tanto que cheguei a ter dois, três livros na gaveta e continuava escrevendo. Digamos, que mesmo escrevendo para mim, eu sou uma espécie de leitor coletivo também. As pessoas não estão fechadas em redomas de vidro. O universo com o qual eu me pecocupo, que eu trabalho literalmente, a ficção, é um universo comum de uma geração minha. Na medida que sou feliz em um livro, que consigo aprofundar, ou mergulhar, nesta realidade, eu estou chegando em outras pessoas. Um grande número de pessoas que vivem as mesmas ansiedades.
Cultura G - Em seus livros normalmente há uma volta ao passado. Isto é procurado, intencional?
Tezza - Não é que a literatura não tem um caráter imediato. Sempre alguns anos depois, alguma experiência volta, já mais madura. Sem aquela superficialidade do instantâneo, do imediato, do hoje. "A Suavidade do Vento", por exemplo, se passa no Sudoeste do Paraná, e as experiências que eu vivi lá foram dos anos 70. Quer dizer, 20 anos depois aquelas imagens que ficaram muito fortes na minha cabeça eu acabo aproveitando literariamente. O "Juliano Pavollini" é Curitiba dos anos 60, do tempo que conheci logo que cheguei, criança ainda. Eu preciso de ama geografia familiar, um espaço familiar, mas não necessariamente vivências.
Cultura G - Como é o seu processo de criação?
Tezza - Eu preciso, para me sentir seguro, ter um bom arcabouço narrativo. Eu começo um livro. quando já tenho um esqueleto narrativo fechado, mesmo que no desenrolar eu acabe mudando o final. readaptando. Quando eu começo a escrever, depois de 6 a 8 meses, o livro está pronto. Então eu escrevo diariamente. De quatro a cinco horas por dia. Eu faço o meu horário de acordo com as necessidades da casa. dos filhos. É tudo mais ou menos programado. Não dá para escrever um livro de 150 páginas só no impulso. É um processo lento, vagaroso, bem articulado.
Cultura G - O prazer maIor é quando acaba uma obra ou quando está escrevendo?
Tezza - O prazer de escrever é muito gostoso. Você entra em um mundo possível. Por mais fantástico que seja, tem aquela coerência interna, aquele universo. O ato de escrever é sempre melhor. Inclusive a primeira versão. A primeira vez é sempre deliciosa. A segunda versão já é mais trabalhosa. Nunca a primeira versão é perfeita. Ela é pura criação, uma coisa solta, descompromissada. Depois é um trabalho de burilar, uma mão-de-øbra, trabalho de torneiro mecânico.

INFLUÊNCIAS

Cultura G - Você tem alguma influência literária especifica?
Tezza - Bom, certamente devo sofrer influências, a gente não tira do nada. Todo escritor tem alguma filiação, ele está dentro de uma família de escritores. O difícil é localizar concretamente isso. A gente lê muita coisa de tudo. As vezes influências mais antigas vão atraindo. Eu tenho uma atração por uma certa família de narradores. Digamos. Balzac, Dostoievski, Conrad, Faulkner. São grandes modelos, gênios de um tipo de narrativa, de universo.
Cultura G - Qual livro você está lendo agora?
Tezza - Um livro chamado 'Ascensão do Romance", de lan Watt. É um estudo sobre a origem do romance moderno.

VISÃO ATUAL

Cultura G - Como professor como você vê a relação da juventude com os livros?
Tezza - Tem dois planos nesta pergunta, O primeiro é que eu sinto muito a mudança de perspectiva da minha geração, da minha juventude para a juventude de hoje. Aparentemente a minha geração era da utopia, buscava objetivamente modos alternativos de sobrevivência, de transformação. Havia um processo de transformação. E a sensação que tenho, como observador, é que estamos hoje em uma era muito mais pragmática. As pessoas, já aos 17, 18 anos querem um emprego. Estão direcionadas. Digamos que os sonhos são mais individualistas, de sobrevivência. A vida ficou muito mais dura. Nos anos 60 dava para viver uma vida alternativa, de mochila nas costas. Você conseguia se virar. Hoje isto é inviável, não há mais espaço. E depois de um período de ditadura militar, parece que neste período atual - do 'impeachment' - está havendo uma coisa absolutamente surpreendente como as passeatas de jovens. Espontânea e com milhares de jovens. Apartidários. Estes são os frutos de um estado democrático, de liberdade de expressão. Pouco a pouco vai mudando.
Cultura G - E como isso influencia a literatura?
Tezza - Ela (a literatura) é engraçada. Os grandes nomes da literatura que aparecem são casos, processos muito lentos. Quer dizer, ninguém fica famoso antes dos 50 anos. É um processo muito demorado. O universo dos leitores de ficção também se estreitou bastante. Quer dizer, a literatura perdeu espaço nos últimos 30 a 40 anos. Convencer alguém a deixar de ir ao cinema e ver televisão para ler um livro é um processo de educação muito mais sofisticado. Agora eu tenho esperança que na medida que se integram, que haja uma melhora substancial no sistema social no Brasil, naturalmente vai aumentar o número de leitores que terão mais acesso aos livros. Quer dizer uma segmentação. Atualmente a única área que escapa da crise é a esotérica.
Cultura G - isto também por algum motivo, não é?
Tezza - É, se bem que a literatura esotérica sempre teve espaço. Pegue o Castanheda. Ele era muito lido na minha geração. E agora entrou o Paulo Coelho aqui no Brasil. Sempre teve um grande número de livros nesta área. O que assombra é a quantidade agora. O estouro brutal.
Cultura G - Você chegou a ter algum livro do Coelho?
Tezza - Eu tentei ler alguns. Mas não fez o meu gênero porque como o próprio Coelho disse um dia, 'tem três modos de reconhecimento do mundo: a fé, a arte e a ciência" e ele se colocava como reconhecimento do mundo pela fé. A minha visão é o reconhecimento do mundo pela arte. Então eu não. considero a obra dele obra de arte. Não no sentido pejorativo, mas pertence a outra área do conhecimento. Menos arte, mais religião.

TRAPO VIRA UMA PEÇA

Cultura G - O que você pensa sobre Trapo no teatro?
Tezza - Eu acho um barato, eu sempre tive uma relação muito grande com o teatro. Trabalhei. muitos anos com o teatro. E o meu próprio texto tem ama certa influência dramática. Eu tenho uns diálogo muito teatral e digamos que eu tenho um olhar meio de palco, nas situaçêes literárias. O próprio Anel Coelho (diretor da peça que estréia eeste mês) disse que eu escrevo para ser filmado, que o "Juliano Pavollini" dava um belo filme. Eu só escrevo aquilo que eu consigo enxergar, ver. Mais do que uma caneta, eu tenho uma câmara para escrever. Faz parte da minha literatura. Quando o Ariel sugeriu a adaptação, eu topei na hora.
Cultura G - Você acompanha os ensaios, as adaptações?
Tezza - Eu fiz junto com ele uma adaptação, um copião. Depois ele foi sugerindo alguns cortes. A primeira versão ia dar uma ópera. O escritor acha que tudo é importante. Mas no fim ficou uma peça bem redonda.
Cultura G - Você se mete, dá palpite?
Tezza - Eu não quero me meter. Tem dois tipos de escritores: os que controlam ferozmente cada vírgula do texto e os que entregam a alma a Deus. Eu entreguei a alma a Deus. Mas quero ver o final.

NOVO LIVRO

Cultura G - Para encerrar fale um pouco sobre o livro que você está escrevendo.
Tezza - O "Fantasma da Infância"? Como é que posso dizer? Eu considero o meu melhor livro. Já é um livro de um homem de 40 anos (risos). Mas é dificil adiantar. Eu realmente tenho um bloqueio para isso. O que posso dizer é que é uma narrativa dupla. Com certeza vai valer a pena ler. Eu garanto.


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