FOLHA DE LONDRINA - CADERNO 2
Londrina, 15 de agosto de 1992


Em entrevista exclusiva, Cristovão Tezza fala de seus livros e personagens inspirados nos costumes da classe média urbana

O ROMANCISTA DA CLASSE MÉDIA

Luiz Cláudio de Oliveira

Aos 40 anos, o escritor Cristovão Tezza acaba de completar o nono romance, O Fantasma da Infância, que deverá ser lançado no primeiro semestre de 1993. Também adaptou para o teatro o romance Trapo, de 1988 e que está na terceira edição. A peça terá a direção de Ariel Coelho e a panticipagão dos atores Marcos Winter, Claudio Mamberti e Imara Reis. Antes mesmo de lançar o novo livro ou de estrear a peça, ele já pensa em outros três projetos.
Tezza sempre teve várias ocupações, entre as quais ator, relojoeiro, falsificador de quadros e hoje, além de escritor é professor de português para o Curso de Jornalismo na UFPR, em Curitiba. Em 1975, foi para a Alemanha como imigrante clandestino e lá trabalhou em serviços gerais por um ano. Voltou no ano passado, mas a convite do próprio governo alemão, para visitar a feira de Frankfurt. Mora a duas quadras de Dalton Trevisan, o que lhe rendeu uma piada. "Este bairro - o Alto da XV - é o que tem a maior concentração de grandes escritores de Curitiba".

Folha - Os seus personagens são tão marcantes que dá a impressão que você primeiro os cria, para depois partir para a história. É verdade?

Cristovão Tezza - A primeiro coisa que me surge é uma situação. Em A Suavidade do Vento, por exemplo, o Mattoso (personagem principal) me surgiu com a idéia de uma cidade pequena, um morador que escreve um livro e acha que ele é o livro. Mas no momento em que escreve, passa a ser ninguém, nada, as pessoas não o reconhecem mais. Aí você vai criando o cenário.

Folha - E de onde surgem os personagens?

Tezza - Da classe média. Eu posso até me definir como o romancista de uma consciência da classe média urbana brasileira, que é a minha classe e que representa a própria consciência brasileira, a ética, o modo de vida.

Folha - Depois de A Suavidade do Vento você chegou a receber cartas de pessoas identificadas tanto com o personagem quanto com a cidade do interior que você retrata, não é?

Tezza - Eu recebi uma carta do Jair Ferreira dos Santos, que publicou o livro Kafka na Cama. Ele conta que é de Cornélio Procópio e que se identificou brutalmente com o Mattoso. Contou lances da vida dele, que teve uma namorada jornalista, que publicou um livro que o cara da banca não queria botar pra vender, que decorava os livros da Clarice Lispector. Era igual ao personagem e ele escreveu uma carta impressionado com as coincidências. É uma carta interessantíssima porque no fundo todo mundo tem um traço de Mattoso. O lance de uma identificação com os Outros, de se sentir olhado e respeitado pelo seu trabalho é uma coisa universal, só que o livro leva ao absurdo. E uma coisa que eu faço, que é pegar um aspecto da vida humana e ir levando ao absurdo. Parece que aquilo é a única face da pessoa.

Folha - Tem outro traço em comum na sua obra que é o passeio de personagens de um livro para outro.

Tezza - Tem a Isolda que aparece no Trapo e depois em A Suavidade do Vento, quando ela ainda era casada com o Fes-reira. Em O Fantasma da lnfúncia, o Juliano Pavolini é revisto 20 anos depois. O Pablo do Aventuras Provisórias é o mesmo do Ensaio da Paixão.

Folha - Você consegue domar os seus personagens para que eles se comportem do jeito que você quer?

Tezza - Não é bem do jeito que quero mas eu sigo uma estrutura. Sempre começo o livro quando já tenho uma visão de conjunto. Passo um a dois anos com uma idéia na cabeça antes de começar a escrever. Agora já estou com a idéia do próximo romance que seria Uma Noite em Curitiba. Ela está amadurecendo e daqui a um ano eu começo a escrever com a estrutura já pronta. Tanto que escrevo relativamente rápido.

Folha - Quanto tempo você leva para escrever?

Tezza - De quatro a oito meses no trabalho final.

Folha - E você é metódico quando está escrevendo?

Tezza - Sou bastante metódico. Sou uns burocrata. Escrevo das duas as seis, todas as tardes menos domingos, que é um dia infernal, o dia maldito da criação, como diria o Mattoso. Quando termino de escrever começo tudo de novo porque um personagem que era loiro ficou moreno, uma mulher gorda ficou magra, mudou de nome. Então tenho que dar unidade depois que eles ficam mais completos.

Folha - As idéias convivem, estão presentes ao mesmo tempo?

Tezza - Convivem. Quando eu estava escrevendo A Suavidade do Vento já estava pensando no O Fantasma da Infância.

Folha - Mas você chega a escrever dois romances ao mesmo tempo?

Tezza - Não, porque você precisa se livrar da linguagem. Cada romance tem uma linguagem muito própria. Tem que dar um tempo para começar e escrever outro.

Folha- Você dá aulas para o curso de jornalismo e lê muitos jornais e revistas. Os acontecimentos diários forçam uma entrada no livro que você está escrevendo?

Tezza - Não, as coisas imediatistas não têm muito lugar. Essa leitura de jornais e revistas - porque eu afinal trabalho isso com meus alunos - é um certo ouvido para a língua padrão de hoje. E ao mesmo tempo não só uma técnica, uma sintaxe digamos assim, de organização de frase, mas uma visão de vocabulário. Trabalho diariamente com isso e posso dizer que me sinto um escritor sintonizado com a linguagem brasileira de hoje. Talvez seja uma das razões que a minha literatura lenha relativo sucesso com a juventude.

Folha - É possível se escrever como se fala?

Tezza - De fato a gente fala uma coisa e escreve outra, é impossível não ser assim. A escrita reorganiza toda a gramática da fala. O que a literatura pode fazer como processo de transformação é simplesmente abdicar de formas já estereotipadas, de formas ornamentais de literatura para uma linguagem mais contemporânea, mesmo em uma literatura mais trabalhada. É curioso que o Brasil tem uma tradição muito forte de uma literatura rural, regionalista. Tem grandes nomes nessa área, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Verissimo. A cidade tem como grande exemplo Machado de Assis, um grande mestre da metrópole do Rio de Janeiro. Mas depois dele é difícil encontrar outro nome, talvez até chegar em Rubem Fonseca que é grande na literatura urbana e tem uma escola.

Folha - Voltando à escrita aproximada ao modo como se fala, Dalton Trevisan não faz isso?

Tezza - Exatamente. Ele faz uma montagem, um recorte da fala popular. Tanto que não é um texto fácil, popular. É difícil até pelo excesso de síntese.

Folha - É muito difícil dividir uma cidade com Dalton Trevisan?

Tezza - De jeito nenhum. É uma bênção. Poucas cidades do mundo poderão dizer que têm um escritor da estatura de Dalton Trevisan, que eu considero um dos grandes mestres da literatura do século. Ele é o criador de uma linguagem. Alguém que tirou leite de pedra a vida inteira. A temática dele é composta de dois ou três personagens em situações muito parecidas e ele construiu uma obra, uma catedral imensa em torno disso. E foi Curitiba que deu esse extrato para ele. Então eu acho ótimo.

Folha - Mas às vezes, quando você quer escrever algo sobre Curitiba, pensa "o que o Dalton vai achar disso"?

Tezza - Não, de forma nenhuma. Tem uma geração inteira entre a dele e a minha. A Curitiba dele é uma Curitiba mais antiga, dos anos 40 e 50. Eu sofri uma influência dele, isso é verdade. Dele e da cidade, que é extremamente critica, que tem aquele olhar de verruma, que aparece muito na minha literatura, esse olho crítico fortíssimo. Mas Curitiba que eu lido já é outra e de modo algum tenho a pretensão de comparação.

Folha - Tem uma história de que ele lhe pediu um autógrafo...

Tezza - Essa história não era para ter saído. Eu contei para uma repórter do Jornal do Brasil, mas fora da entrevista, e pedi para não publicar e ela abriu a matéria com isso, o que me leva a desconfiar profundamente dos jornalistas. Então, para esclarecer, fui eu que encontrei com ele em uma esquina e pedi para ele autografar o livro Cemitério de Elefantes e ele perguntou meu nome. Quando eu disse, falou que era ele quem deveria pedir autógrafo, naturalmente com humor e ironia. Mas depois eu nunca mais falei com ele.

Folha - E o Leminski?

Tezza - O Leminski foi o grande poeta dos anos 70 do Brasil. Fazia justamente aquilo de juntar todas as linguagens do dia-a-dia, do coloquial, da pichação de muro em uma poesia altamente elaborada.

Folha - E a prosa dele você gostava?

Tezza - Não, não gosto da prosa do Leminski. Ele é substancialmente um poeta, uma voz no deserto, um profeta.

Folha - Voltando a você, nem bem acabou um livro já está cheio de planos?

Tezza - Estou com trê projetos. Um deles, o Uma noite em Curitiba é o mais forte. Outra idéia é usar a experiência que tive quando fui imigrante clandestino na Alemanha, aproveitar as cartas, mais de cem cartas que mandei para o Brasil na época, e criar algo de ficção em cima disso. Outra é fazer um romance com atores de teatro, agora que voltei a ficar mais em contato com esse pessoal por causa da adaptação para o teatro do livro Trapo. que fiz com o Ariel Coelho.

Folha - Você chega a receber algum dinheiro com esses livros todos?

Tezza - Eu ganho regularmente, a cada três meses, uns chequinhos. Às vezes vêm umas surpresas boas. outras nem tanto. Mas é insignificante. O autor ganha 10% do preço de capa do livro vendido e as editoras normalmente pagam de seis em seis meses, sem correção. A Brasiliense paga de seis em seis meses. sem correção.

Folha - Mas você já recebeu uma bolsa para escrever.

Tezza - É a bolsa Vitae. Essa foi uma boa experiência porque escrevi A Suavidade do Vento com ela. É uma bolsa de primeiro mundo em que você faz um projeto artístico e recebe durante 12 meses, sem nenhuma burocracia, sem nada. A banca aposta em teu trabalho anterior, pois é uma bolsa para profissionais. não é para iniciantes. Foi muito bom.

Folha - Quando será possível viver só de literatura?

Tezza - O problema da literatura é o problema do resto do Brasil em qualquer área. Nós temos posquíssimos leitores, de fato. Num país de 150 milhões de habitantes, quantos são leitores regulares de livros? Uns 500 mil, 600 mil? Então é muito pouco. Nos países civilizados há uma setorização, há o leitor de espionagem, o leitor de poesia, o de ciência, o de romance, quer dizer, há espaço para todo mundo e aí você pode pensar realmente em profissionalização da literatura. O Brasil é um país histérico nisso. Não se tem segmentos, tem-se grandes nomes que surgem e devoram todos os outros, transformam-se nos únicos ocupantes da mídia. Quem são os grandes vendedores de livros hoje no Brasil? O Jorge Amado, o Paulo Coelho, que entra em uma outra área, a esotérica e espiritualista, que é algo que precisa ser estudado por ser um fenômeno de vendagem há muitos anos no Brasil. Existe também o Rubem Fonseca, o Chico Buarque que é um gênio da cultura popular brasileira e todo livro dele é um acontecimento, com todo direito. Então é uma questão social. Quando me perguntam o que fazer pela literatura eu respondo
que tem que dar escola para o povo, dar comida, trazer para o mundo civilizado milhões e milhões de brasileiros para quem o livro não significa absolutamente nada.

Folha - Você não desanima um e pouco quando vê esse quadro?

Tezza - A vontade de escrever tem sido mais forte. Tanto é verdade que eu cheguei a ter quatro romances na gaveta ao mesmo tempo e já estava e escrevendo o quinto antes de ser publicado.




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