|
Jornal dos Bancários
Curitiba, 1988
(2º semestre; mês n/d)
Cristovão Tezza: o escritor da província
Joanita Burkot
Vivendo e escrevendo Curitiba, Cristovão
Tezza, 35, só conseguiu atingir o público curitibano
através do eixo Rio-São Paulo.
Seu último livro, Trapo, foi sistematicamente recusado
por várias editoras. Agora, editado pela Brasiliense, é
sucesso de venda e de crítica.
Nesta entrevista, Cristovão fala sobre os personagens,
a paixão pela narrativa e a difícil trajetória
de um escritor anônimo. Mais difícil, ainda, para
quem tem que enfrentar o caráter provincial da sociedade
curitibana. Embora feliz pelo sucesso recém-chegado, Tezza
deixa transparecer uma pontinha de mágoa do tempo que permaneceu
marginalizado pela crítica e imprensa local.
JdB - O Trapo é o seu melhor livro na opinião
da crítica. Ele é também o seu predileto?
CT - Para falar a verdade eu gosto de todos os meus livros,
com exceção do Gran Circo das Américas
que acho fraco. Este é o que mais vendeu até hoje,
porque foi adotado nas escolas, mas era apenas um exercício
de narrativa. A Cidade Inventada é um livro que
eu pretendo reeditar. Toda a minha literatura está ali.
O Terrorista Lírico é um pouco irregular,
mas ele tem alguma coisa que pega... é a história
de um terrorista que dinamita uma cidade inteira e, eu não
sei por quê, as pessoas gostam disso. Deve ser porque é
uma coisa que todo mundo tem vontade de fazer. O Ensaio da
Paixão é delicioso. Eu gosto dele, embora o
ache excessivo quanto ao número de páginas. Mas
é um livro ao qual eu quero voltar... Talvez daqui a uns
20 anos, reescrevê-lo.
JdB - Foi com o Trapo que você definiu seu
estilo?
CT - Exatamente. Com ele começa minha preocupação
mais madura, em 82. Eu venho cada vez mais depurando a relação
entre as pessoas, o abismo da convivência humana. Meus personagens
são sempre angustiados, têm sentimentos de culpa
terríveis. Com o Trapo esses elementos estão
perfeitamente articulados.
JdB - Leminski, que fez o posfácio de Trapo
diz que você foi visivelmente influenciado por Bukowski.
Você confirma?
CT - Só se eu fosse espírita... Eu escrevi
o Trapo em 82 e só fui ler Bukowski em 85.
JdB - Onde você busca os conflitos dos seus personagens?
CT - Bem, todo escritor é uma espécie de
vampiro de si mesmo... A gente busca um pouco na própria
convivência. Mas, no romance é fundamental que se
tenha a sensibilidade voltada para os outros... O poeta dispensa
os outros. Ele pode escrever pensando em si mesmo e ali encontrar
a humanidade inteira. O romancista não. Ele é como
um maestro que vai colocar no seu texto as vozes dos outros, mas
sempre pelo crivo da própria visão de mundo. Eu
tive uma experiência em teatro durante quatro anos. Trabalhei
cm o Rio Apa numa espécie de teatro marginal (nem amador,
nem profissional) e nesse ambiente conheci pessoas desvinculadas
do sistema de produção... marginais, hippies e desocupados
em geral. Esse miolo parece que permaneceu na minha literatura
como se essas pessoas reservassem o que há de melhor na
espécie humana. Uma reserva de revolta. E mesmo quando
eu trato de pessoas integradas ao sistema, como a classe média
(que eu conheço muito bem porque sou um legítimo
exemplar), vou buscar aquele lado desajustado. Ou então,
o sujeito que tenta se ajustar mas não encontra lugar no
mundo... Eu fiz essa busca em Aventuras provisórias, que
deve ser publicado este ano ainda, pela editora Mercado Aberto
de Porto Alegre.
JdB - Como se dá a relação entre o
que você vive e o que escreve?
CT - Algumas sensações, algumas maneiras
de apreensão da realidade que vêm deste a infância
eu vou espalhando por todos os personagens. No Trapo, por exemplo,
eu sou tanto o Trapo quanto o professor Manuel e eu dou voz para
esses dois impulsos que, no fundo, todo mundo tem: a ânsia
de anarquia e a ânsia de estabilidade. Equilibrá-los
na corda bamba é a sobrevivência do dia-a-dia.
JdB - Quando você era, ainda, um adolescente, em 68, algumas
pessoas de seu convívio foram presas, inclusive seu irmão
João Batista Tezza que militava no movimento sindical bancário.
Que influência esses fatos tiveram sobre você e sua
literatura?
CT - Isso me propiciou uma visão muito clara do
que foi a repressão, dando-me um certo lastro que me livrou
da burrice generalizada que atingiu a geração dos
anos 70.
JdB - Desde que idade você escreve?
CT - Desde 13 anos quando escrevi meu primeiro livro de
poesias (horroroso), não me lembro de algum momento de
minha vida em que não estivesse escrevendo. Escrever, para
mim, tem uma função muito importante como construção
da personalidade. É um processo de compreender o mundo,
e a mim mesmo.
JdB - Como é o processo de começar a editar
livros. São grandes as dificuldades?
CT - É terrível. Normalmente o sujeito escreve
um livro e ele mesmo financia a publicação ou uma
editora regional, pequena. Eu participei da fundação
de duas editoras, aqui em Curitiba: a CooEditora, que foi à
falência, e a Criar Edições, que fundei junto
com o Roberto Gomes, depois vendi minha parte a ele. Mas as editoras
regionais têm um alcance muito limitado, a distribuição
é extremamente deficitária, o livreiro não
cmpra porque é um risco muito grande e a divulgação
é praticamente nula. No meu caso foi rigorosamente nula.
Desde que eu comecei a escrever até o ano passado, com
cinco livros publicados, eu tive apenas uma matéria crítica
em jornal. Foi uma resenha no LEIA LIVROS em 80. Fora isso, só
saíam notinhas informando sobre lançamentos dos
livros. Hoje as pessoas já sabem quem eu sou, mas foi o
eixo Rio-São Paulo que me abriu espaço. Aqui no
Paraná eu não consegui.
JdB - Além do teatro, o que você fazia até
tornar-se universitário?
CT - O teatro fazia parte da opção naturalista,
de fumar maconha, virar hippie, viver em contato com a natureza...
Eu também fui para a marinha mercante para ser piloto,
mnas não agüentei o regime militar e acabei abandonando
o curso antes de entrar num navio. Eu deixei o teatro quando consegui
uma matrículo na Universidade de Coimbra, exatamente na
época da revolução dos cravos. Mas, felizmente,
a Universidade estava fechada e eu fiquei um ano e dois meses
viajando pela Europa. Fui trabalhador ilegal na Alemanha... foi
uma experiência muito rica. Quando voltei me tornei relojoeiro
em Antonina. Queria consertar meus relógios e escrever
meus livros sossegado... Mas, não só os relógios
me tomavam o tempo de escrever, como não me rendiam o suficiente
para viver sossegado. Aí eu casei e fui para o Acre onde
entrei para o curso de Letras. Hoje sou, objetivamente, ocontrário
daquele que fumava maconha nos anos 70.
JdB - Como você se sente com relação
à política nacional?
CT - Eu estou torcendo para que o Brasil consolide um Estado
de Direito. Meu maior medo é a volta dos militares, do
golpe, da barbárie. Acho que a Constituição
está bem melhor do que se imaginava. No sentido das liberdades
públicas, da eliminação da censura, houve
uma melhora substancial.
voltar
|