Máquina de escrever
G1 - Blog de Luciano Trigo.

Cristovão Tezza faz um balanço sutil de sua formação literária

Luciano Trigo

O espírito da prosa (Record, 224 pgs. R$34,90) não é uma autobiografia convencional: sua matéria não é a vida inteira de Cristovão Tezza, mas sua formação como escritor. Nos acontecimentos descritos, portanto, prevalecem os encontros, viagens e descobertas interiores de Tezza, autor do cultuado O filho eterno, lançado em 2007. Mais que suas memórias, ele compartilha com o leitor uma espécie de autoanálise, na qual se indaga sobre  suas motivações, seu quadro de referências teóricas (ele é ex-professor universitário, especializado na obra do lingista russo Mikhail Bakhtin), suas incertezas.

- “A literatura tem sentidos diferentes em tempos históricos diferentes”, você escreve. Comparada com outras épocas, quando teve um peso e uma repercussão muito maiores, a literatura de hoje não parece ocupar um espaço menor na sociedade? Qual o sentido da literatura hoje? E qual o seu poder?

CRISTOVÃO TEZZA: Certamente a literatura hoje ocupa um espaço muito menor. Compare-se com uma sociedade semelhante à nossa, como nos países mais adiantados da Europa do século 19, que consolidou as classes médias e a figura do leitor moderno – a literatura era uma fonte inesgotável de informação, entretenimento, discussão filosófica, sociológica, moral, artística. A literatura estava no centro de tudo, tinha uma presença fortíssima. Na virada do século 20, ela foi perdendo terreno, para o cinema, para as artes visuais, para os esportes de massa (considerando estritamente o entretenimento, que também é parte da literatura), para o jornalismo, para a televisão e agora para a internet. (No caso da internet, a literatura começa a recuperar algum terreno, pela facilidade que o meio lhe dá – o que é outra conversa.)

Hoje o sentido maior da literatura talvez esteja menos no que ela possa ter como “mensagem”, e mais na solidão que ela implica, na criação persistente de mundos paralelos, contrapontos à realidade. Há um caráter não pragmático na linguagem literária que é a sua essência. E a grande literatura é uma linguagem capaz de conversar com todas as linguagens da vida cotidiana.Tudo pode entrar nela.

O poder da literatura, hoje, é um poder de guerrilha, não de massa. De qualquer forma, para falar sobre o momento presente, e considerando os grandes autores contemporâneos, com trânsito global – digamos, Philip Roth, Ian McEwan, J.M.Coetzee, para citar três nomes de impacto do mundo da língua inglesa –, é evidente que a literatura cria uma percepção da realidade que é também um ideário ético. Existe claramente um “humanismo literário” que se cria e se preserva na literatura, um sistema aberto de valores sociais e morais que, na hipótese ficcional, desenha os limites da condição humana segundo o olhar sempre falível de um narrador.

- Você fala de sua paixão pelos livros enquanto objetos. Você acha que o texto imaterial dos livros digitais deve gerar relações de afeto diferentes com a palavra escrita? E que deve produzir, portanto, um outro tipo de escritor? Como você lida com essa questão do declínio do livro de papel e da digitalização?

TEZZA: A relação do autor com o texto “físico” talvez mude, sim, porque o e-reader nunca é apenas um livro. Assim como a passagem do rolo de pergaminho para o livro deve ter mudado o ritual da leitura. Mas imaginar daí que vai nascer um “outro tipo de escritor” é uma fantasia anacrônica, como nas ficções científicas de antigamente. O que faz um escritor é Homero, Dostoiévski, Cervantes, Camus, Conrad, Drummond, Shakespeare – não o kindle, o iPad, a Apple ou a Samsumg.

Não tenho nenhum problema com a tecnologia. Escrevi quase todos os meus livros à mão, por escolha; e de uns anos para cá aderi ao computador, que me ajuda muito. Minha literatura não mudou absolutamente nada por causa disso – mudou, espero, porque fiquei mais velho e mais maduro, só isso.

- Falando sobre o sistema de valores que estabelece a hierarquia literária, você cita Paulo Coelho. Por outro lado, você mesmo atingiu um grande sucesso comercial com seu livro “O filho eterno”. O que significa sucesso para um escritor? Ele pode prescindir, hoje, do êxito no mercado editorial e do reconhecimento pelo público e pela mídia?

TEZZA: O sucesso é uma espécie de corrida de cavalos que não tem nada a ver, necessariamente, com qualidade ou falta de qualidade literária. E em qualquer caso, são sempre poucos autores que conseguem sucesso em grande escala. Passei 30 anos sem sucesso de público, mas com uma boa recepção crítica, que foi crescendo lentamente, livro a livro. “O filho eterno” explodiu, mas é sucesso apenas nos padrões brasileiros. Vendeu em cinco anos cerca de 60.000 exemplares, o que é muito para o Brasil – mas jamais entrou na lista dos mais vendidos. Esse é o lado objetivo e quantitativo da literatura.

Mas, para quem escreve, nada disso interessa. Escrever é uma viagem pessoal em que a pessoa se mete por conta própria. Todo bom escritor tem esse lastro pessoal, essa bússola íntima de seu trabalho que não pode se deixar levar pela primeira borboleta voando e nem pelo fascínio da mídia.

- Hoje se espera de um escritor que ele saiba falar em público e frequente eventos como a FLIP. Você acha isso positivo? O que deve fazer, nesse contexto, um escritor sem vocação para a vida social e para o marketing pessoal, um escritor que só saiba… escrever?

TEZZA: Vai o óbvio: o escritor deve escrever. O resto é perfumaria. E é claro que o escritor não tem obrigação nenhuma de ser um showman dizendo frases espirituosas para plateias embevecidas. Nenhuma perfomance de escritor substitui o seu livro.

Tendo isso claro na cabeça, é igualmente claro que a proliferação de festas literárias no Brasil vem tendo um papel de divulgação exponencial da literatura como valor positivo, da leitura como necessidade civilizatória. São eventos sempre positivos, porque transformam a literaturaem notícia. Asfeiras literárias conseguem colocar o livro na televisão, o que é quase um milagre.

A disponibilidade do escritor para a mídia é uma escolha pessoal. Dalton Trevisan jamais dá entrevistas e não aparece nem para receber prêmios. Isso não muda absolutamente nada na avaliação de seus livros, que são fantásticos.

A geração mais nova de escritores, filha da internet, tem outra relação com a mídia, em geral menos traumática. Eu não tenho problemas com isso. Comecei minha vida de escritor fazendo teatro, e fui professor durante 20 anos, uma profissão que torna a exposição pública obrigatória. Além disso, gosto de conversar. Mas nunca me iludi: sem um bom livro para me apoiar, não sobra nada.

- Tendo nascido em 1952, você passou a juventude sob a ditadura militar. Que efeito isso teve na sua formação como escritor? E que relação você acha que os escritores e intelectuais devem ter com a  política?

TEZZA: Começando pela última pergunta: nossa relação com a política é uma escolha pessoal. E não suporto o verbo “dever” com relação a escritores: os escritores “devem” fazer isso, “devem” fazer aquilo. Os escritores devem escrever – mas isso não é preciso dizer.

No meu caso, a implantação da ditadura, ao longo dos anos 1960, coincidiu com os ritos de passagem para a minha vida adulta: em 1970 eu tinha 19 anos. Assim, fui profundamente afetado pelo quadro mental daquele tempo. Em “O espírito da prosa” falo bastante daquele período em que aspectos ele influenciou minha formação.

- Mesma coisa em relação à contracultura. Você cita uma rápida experiência com a droga, mas gostaria que você falasse mais um pouco sobre a sua relação com a rebeldia dos anos70, a liberdade sexual etc.

TEZZA: Na passagem turbulenta dos anos 1960, havia um “pacote” completo de valores políticos, estéticos e comportamentais que faziam a cabeça de todos os envolvidos diretamente nas atividades artísticas e que, é claro, tinham consequências na cultura geral do tempo.

O ato de escrever, para mim, se relacionava visceralmente com um projeto de vida contestatório – uma contestação que ia da recusa da família tradicional até a negação da autoridade do Estado. O espírito daquele tempo foi tão forte que tem consequências até hoje. Os anos 1960 representaram a última grande revolução de costumes do mundo ocidental – ainda não chegamos a absorver todas as suas consequências, mas tudo começou ali.

 - Roland Barthes dizia que, para o escritor, escrever é um verbo intransitivo. Sua resistência a essa ideia tem a ver com a defesa do realismo na literatura?

TEZZA: O texto de Barthes em que ele pergunta retoricamente se escrever é, de fato, um verbo intransitivo, é exemplar como atitude intelectual da virada dos anos 60 e 70 diante do ato da escrita. A literatura começava a ser pautada pela ciência da linguística, e a ideia charmosa de que “tudo é linguagem” deslocava a questão do escritor concreto (sua realidade sócio-histórica) para a estrita “gramática do texto”, que ganhava uma autonomia quase alucinatória. Barthes, no seu estilo paradoxal, nega num primeiro momento que escrever seja um verbo intransitivo (ora, todo escritor escreve “algo”, é claro), para em seguida dizer que o objeto da literatura é a linguagem, o que é a forma mais radical de intransitividade. Mas era o clima do tempo: Barthes diz que se começava a entender o verbo escrever como intransitivo (“Fulano está escrevendo”, e isso diz tudo); o que era nitidamente uma metáfora existencial transformava-se em uma discussão linguístico-metafísica em suas mãos (escrever é um “verbo”, não uma ação pessoal).

A ideia de que escrever é um verbo intransitivo, tomada como metáfora, como expressão existencial, é muito interessante. O problema é quando se transforma isso numa questão estritamente gramatical.

Sobre o realismo (sempre tomando a palavra aqui no seu sentido comum e necessariamente impreciso), eu diria que ele foi entrando em desgraça à medida que a academia e a sua ciência literária foram ganhando corpo e prestígio.

- Num ensaio dos anos 60, “A literatura da exaustão”, o escritor americano John Barth sugeria que o romance era um gênero esgotado. Você considera que a “forma romance” se renova de forma inesgotável? Ou ele tinha razão?

TEZZA: John Barth foi um caso típico do tempo, uma espécie de implante da academia francesa na cultura americana, o que dá uma certa estranheza paradoxalmente escolar. O romance periodicamente esgota suas formas composicionais e se renova em outras. É preciso não confundir linguagem romanesca com forma composicional. A prosa romanesca tem uma vitalidade inesgotável, desde que ela viva numa cultura de vozes multifacetadas, e não apenas vozes gramaticais ou linguísticas, mas pontos de vista socialmente variados, conflitantes e divergentes. Como dizia Mikhail Bakhtin, culturas míticas centralizadas não conseguem produzir romances porque lidam mal com a diferença. O Brasil, com alguma frequência, sofre dessa centralização excludente. Uma das formas composicionais esgotadas do romance é justamente a da cartilha pós-moderna, de que John Barth foi um expoente brilhante.

- Você cita Bakhtin como sua referência essencial. Que importância ele tem para você? Que outros teóricos da literatura influenciaram seu trabalho?

TEZZA: Saindo da barbárie contracultural (digamos “barbárie” no bom sentido, se isso é possível…) em que mergulhei na passagem para a vida adulta, esbarrei tardiamente na obra de Bakhtin, que teve um grande impacto na minha formação madura. A questão central para mim era o olhar realmente novo que ele colocava sobre a prosa romanesca. Ele me deu algumas chaves para pensar a linguagem literária que acabaram por formar minha cabeça crítica, por assim dizer. Nada do que eu havia lido de teoria literária até então havia me interessado de verdade nem deixado marca. Mas é claro que, das leituras da vida inteira, tudo vai deixando algum rastro.

- Com que escritores, vivos e mortos, você mais dialoga hoje?

 TEZZA: Minhas paixões literárias foram se fazendo por fases da vida, e acho que isso acontece com todo mundo. No Brasil, algumas leituras têm sido sempre recorrentes: Machado, Lima Barreto, Graciliano, Drummond. Acho que a nova literatura brasileira está aparecendo e amadurecendo com uma grande vitalidade. Da prosa estrangeira contemporânea, gosto especialmente de Coetzee. Mas, desde que saí da universidade, tenho lido muita coisa de não-ficção, de história e de filosofia, um velho desejo que eu nunca conseguia realizar por falta de tempo. Agora estou tentando recuperar esse prazer solto da leitura.

 


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