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Caderno Magazine
Goiânia, 26 de setembro de 2007

Palavra de pai

Karla Jaime Morais

Com O Filho Eterno, Cristovão Tezza confirma informação que consta na orelha do livro, a de que é considerado um dos mais importantes autores da literatura brasileira contemporânea. Lançado pela Editora Record, retrata a relação do pai com o filho nascido na primavera de 1980, com síndrome de Down. Um tema delicado, porque embora a linguagem seja de romance, trata-se de experiência pessoal, da história do autor e de seu filho Felipe. O escritor, que tem mais de uma dezena de livros publicados – entre eles Trapo, O Fantasma da Infância, Aventuras Provisórias, Breve Espaço entre Cor e Sombra e O Fotógrafo –, fala sobre a nova obra nesta entrevista por telefone, de Curitiba, onde é professor de língua portuguesa na Universidade Federal do Paraná.

O Filho Eterno é o relato do acontecimento de "maior impacto" da sua vida, conforme suas palavras. Como foi que sentiu ser enfim a hora de escrever esse livro?

Aconteceu naturalmente. Depois que acabei o romance O Fotógrafo, em 2002, 2003, surgiu o tema, e pensei "acho que estou maduro para enfrentar esse tema". Aí, aconteceu, naturalmente. Mas dez anos para cá eu vinha vagamente pensando em escrever, só que nunca antes tive coragem para começar.

Como é um processo de anos, quando começou a escrever houve uma facilidade maior, como se já estivesse com a idéia elaborada?

Em alguns momentos do livro, eu escrevi com uma facilidade relativa, porque eu reescrevo muito, o meu trabalho é muito rabiscado. Mas algumas cenas, alguns momentos do livro parecem que já estavam prontos na minha cabeça, estavam pedindo para ser escritos. Eu diria que nesse aspecto sim, o livro saiu muito maduro. Quando comecei a escrever eu sentia que o livro estava pronto para ser escrito.

Do ponto de vista do tema, tão caro: qual foi a dificuldade?

Aí eu diria que o que me salvou foi escrever na terceira pessoa. Isso me permitiu enfrentar o tema, digamos assim, com mais liberdade. Quer dizer, sempre me senti preso, mas me senti mais à vontade. De certa forma, pude exercer alguma crueldade narrativa porque tratei o livro como um romance mesmo.

A estrutura é de romance, mas o relato é autobiográfico. Onde entra a ficção nessa narrativa?

Digamos que os pontos fundamentais são autobiográficos, mas o livro foi criado com bastante liberdade, há muito aspecto fantasioso, muita fusão também na memória, sem intenção cronológica. A estrutura de romance me deu muita liberdade para caçar o tema. Não tive compromisso com a verdade factual, como numa autobiografia ou biografia eu teria obrigatoriamente.

O pai, personagem do romance, diz que no início dos anos 80 não se falava síndrome de Down e sim mongolóide. Como foi enfrentar as palavras, sem ater-se ao politicamente correto?

Se eu tinha de falar daquele tempo, a palavra tinha de vir junto. Como escritor, não estou nem aí para o politicamente correto. Faz parte da liberdade da literatura você abrir fronteiras. Aquele universo, aquela palavra pesada é parte de uma representação de mundo que eu não podia simplesmente fingir que não existia.

Na relação do pai com o filho, há uma descoberta do pai sobre si mesmo. Esse autoconhecimento veio lidando com a situação, emergiu da literatura ou também resultou de alguma experiência psicanalítica?

Eu nunca fiz análise na minha vida. Até penso que se eu fizer análise, acaba o escritor (risos). Agora que o trabalho de escrever tem uma função analítica pra mim, isso é verdade. É um processo em andamento. Tanto que quando escrevi O Fotógrafo, fui convidado pela Associação Psicanalítica de Curitiba para dar uma palestra. Era o tipo de mergulho assim que fizeram ali, uma leitura psicanalítica. Eu gosto de psicanálise, na juventude li bastante Freud, tipo de leitura bem da minha geração. E eu acho que a psicanálise tem um traço assim, digamos, de fronteira, de fusão entre ciência e literatura. O lado literário da psicanálise é muito forte, a linguagem como revelação.

No livro, a mãe é pouco citada. Há uma sentença dura, logo após o nascimento do filho, quando ela diz ao pai: "Eu acabei com a tua vida". Mas ao longo da narrativa, o pai deixa transparecer que a mãe tem uma comunicação afetiva mais fácil, como se ela estivesse num patamar acima e o pai tivesse de lutar para chegar lá. Isso faz algum sentido?

Faz sim. Mas eu não pensei muito nisso. O que eu pensei, primeiro, foi em dar um foco ao livro, que era o pai e o filho. De certa forma, eu protegi a minha família, a minha mulher e a minha filha entram perifericamente, só na medida em que são relevantes no problema entre pai e filho. É um romance monotemático. Ele tem um foco só, isso foi proposital. Talvez eu tenha sido levado a isso, quer dizer, eu posso abrir a minha alma, posso fazer o que eu quiser comigo mesmo. Mas pelo lado biográfico, eu não poderia fazer o mesmo com a minha mulher. Eu senti o limite.

Como tem sido para seu filho, Felipe, essa obra?

Ele não tem abstração, não é alfabetizado. Ele sabe que o livro é sobre a vida dele e está muito feliz com isso. No lançamento, ele foi e levou os quadros dele, vendeu mais quadros do que eu vendi livros. Para ele é uma festa. Obviamente, se o grau de compreensão dele fosse outro, eu escreveria um livro diferente, a história teria sido outra. A compreensão de mundo dele é afetiva, como digo no livro.

E como tem sido a reação de pais de filhos especiais?

Um dos medos que eu tinha era de que eu virasse simplesmente um especialista em crianças especiais. Mas isso não aconteceu de fato. A reação da crítica tem sido literária. É uma abordagem literária. Agora, tenho recebido muitos e-mails de pais e até de médicos da área, terapeutas, que dizem que ficaram impressionados com o livro, que vão recomendar. Em Belo Horizonte, teve uma mãe que me disse assim: "Você disse o que eu pensava mas não tinha palavras pra pôr pra fora". E a perspectiva do livro é literária.

Análise

Afetos traduzidos em precisa linguagem literária

Nasce o filho e com ele, o pai. A princípio, sem jeito, esse pai tenta enquadrar-se na atmosfera típica. "Há um cenário inteiro montado para o papel, e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, também."

Mas essa será uma história especial. O pai terá de se repensar a partir do encontro com o filho, portador de síndrome de Down. "Súbito", palavra que aparece com certa freqüência no relato de uma descoberta vertiginosa, o mundo é outro.

O diagnóstico de médicos que chegam como militares, sérios demais: "... algumas características... sinais importantes... vamos descrever. Observem os olhos, que têm a prega nos cantos, e a pálpebra oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro... achatamento da parte posterior do crânio... a hipotonia muscular... a baixa implantação da orelha e..." Tudo muito científico para garantir a objetividade protetora. O pai até vai tentar esse tipo de ilusão e distanciamento, mas já dá sinais de entender que a verdade se impõe.

O romance se constrói em dupla direção, inversa e complementar: o crescimento de Felipe, o filho, que marca a evolução do pai obrigado a rever conceitos, posturas, convicções; e as reminiscências inevitáveis desse pai em busca de um novo olhar sobre si e o mundo.

Assim, o filho nascido em 1980 leva o pai aos tempos da pretensão juvenil de escapar das amarras do "sistema", aos sonhos de poeta. À época de paz e amor e também de ditadura e repressão. À experiência no subemprego na Europa. E então, o filho e a necessidade de enquadramento, o prazer e as agruras do cotidiano definido e estável, a insistência em escrever sem que ninguém lhe tenha pedido para fazer isso.

O Filho Eterno é uma viagem envolvente e enriquecedora para qualquer leitor, porque excelente literatura. Apesar de centrado na relação pai-filho – um romance "monotemático", como o define o autor –, tem a dimensão humana dos afetos traduzida em precisa linguagem literária.

Trechos

"Sempre teve alguma ponta de dificuldade para lidar com o afeto. Ele prefere a suavidade do humor ao ridículo do amor, mas disso não sabe ainda, pernas muito fracas para o peso da alma."

"O mundo não fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que as coisas são. Esse é um poder inigualável – eu posso falsificar tudo e todos, sempre, um Midas Narciso, fazendo de tudo minha imagem, desejo e semelhança. Que é mais ou menos o que todos fazem, o tempo todo: falsificar. Essa algaravia monumental em toda parte, todos falando tudo a todo instante, esse horror coletivo ao silêncio."

"A vergonha – ele dirá depois – é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem. O faro para reconhecer a medida da normalidade, em cada gesto cotidiano. Não saia da linha. Não enlouqueça. E, principalmente, não passe ridículo."

"... o mais importante corre na sombra, antes na didática dos gestos, da omissão e da aura que nos discursos edificantes, lógicos e diretos."

"O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade."


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