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Em busca do sentido das coisas
Gazeta do Povo, caderno Ideias
Curitiba, 25 de agosto de 2012
Literatura
Entrevista: escritor discorre sobre sua obra
Cristovão Tezza chega aos 60 anos com livro novo, O espírito da prosa, na praça, com uma montagem bem-sucedida de O filho eterno, trabalhando na reedição de dois romances que estavam fora de catálogo e se preparando para ver as crônicas publicadas na Gazeta do Povo em formato de angologia em breve. Para falar sobre esse momento, o escritor aceitou o desafio de responder a perguntas de dois especialistas do mundo das letras: Liana Leão e Paulo Venturelli.
Tezza responde a Liana Leão
Você enfatiza a importância da primeira frase de um romance: é a âncora narrativa, que estabelece uma lógica e que torna as outras palavras, escravas. O Espírito da Prosa começa com uma frase sedutora, que captura leitores ávidos por saber mais sobre o fazer literário e o tornar-se escritor, mas avessos às notas de rodapé e ao jargão: “Este não é um trabalho acadêmico.” Preciso confessar que fui inteiramente capturada por essa corajosa autobiografia literária. Há, sim, pequeninas pedras acadêmicas no caminho, lapidadas por um excelente professor; assim, me permito uma provocação: “Este não é um trabalho acadêmico.” “Isso não é um cachimbo”?
É uma questão engraçada. Peguei o célebre quadro de [René] Magritte (1898-1967) – que pintou um cachimbo, escrevendo na tela “isto não é um cachimbo” – para lembrar ao espectador a questão central da representação, que, é claro, nunca é aquilo que representa, mas outra coisa, um duplo derivado. Há, entretanto, uma diferença radical de intenção entre a linguagem do ensaio e a linguagem da ficção. No primeiro caso – exatamente o do meu livro – há um esforço deliberado de fazer coincidir a voz do texto e a voz do autor (na ficção, a voz do texto jamais coincide totalmente com a voz do escritor). O ensaísta sempre quer desesperadamente que o cachimbo que ele desenha seja exatamente o cachimbo que está diante dele. É óbvio que não será, mas o que conta aqui é o desejo de quem escreve. Assim, O Espírito da Prosa, por favor, creiam, não é um livro acadêmico.
O Espírito da Prosa tem momentos engraçados, quando você fala sobre seus primeiros contos, que tinham personagens que eram “projeções disfarçadas” de você; tem momentos lapidares, quando você diz que “o sentimento é o ácido da literatura, extrato caro e difícil, só pode ser usado em gotas”, e quando diz que “o nascimento da literatura é o nascimento de um narrador”, de um ponto de vista original sobre o mundo, diferente do autor de carne e osso. Pensando nisso, queria que você falasse como chegou ao título do livro e se a ideia de “espírito da prosa” tem relação com a busca de um sentido para o mundo. Na medida em que o livro é uma autobiografia literária, quanto dessa busca por um sentido é do narrador e quanto é do Cristovão? Qual é a diferença fundamental entre os dois?
Às vezes fico matutando por que um materialista de carteirinha como eu gosto tanto das palavras “espírito” e “alma”, que me parecem altamente sugestivas para dizer o que não pode ser tocado com a mão. No caso do título, ele me veio por um simples instinto metafórico. Eu queria definir simplesmente a gama de variáveis sutis que definem o que é prosaico no texto literário, o que o diferencia substancialmente do que é, no sentido técnico, “poético”. Numa expressão: eu queria definir “o espírito da prosa”. O título tem essa intenção ao mesmo tempo cristalina e intangível. Já a busca de um sentido para o mundo, essa é uma outra história. Na minha ficção, é sempre um narrador que busca o sentido das coisas; no ensaio, como em O Espírito da Prosa, sou eu mesmo; o problema é meu, digamos assim.
Na crítica publicada no jornal O Globo, à adaptação para teatro de O Filho Eterno, Barbara Heliodora não só elogiou o espetáculo, mas também o romance, que classificou como “exemplar”, destacando a “espontaneidade do texto e o invejável domínio da língua portuguesa.” Na sua trajetória, você viveu com um grupo de teatro, respirou teatro, o teatro foi fundamental também no aprendizado dos diálogos. Pensando nisso, como foi ver no palco O Filho Eterno [direção de Daniel Herz, em cartaz no Rio de Janeiro]? Como é ver Charles Fricks fazendo o pai eterno [ganhou o prêmio Shell pelo trabalho]?
Ver o meu livro em cena foi uma das experiências mais impactantes da minha vida. Foi com uma certa desconfiança que cedi os direitos de adaptação teatral do romance ao grupo Atores de Laura. Fiquei mais tranquilo depois que vi no Festival de Teatro de Curitiba a peça Adultério, uma obra maravilhosa, de um cuidado formal fantástico. Dava para perceber que o grupo é muito bom. Ao assistir a um ensaio de O Filho Eterno, no Rio, gostei muito do recorte que Bruno Lara Resende fez do texto, e já pressenti que a adaptação ficaria boa. Ao enfim ver a peça, fiquei impressionado – é muito forte, muito bem feita, e o Charles é um ator extraordinário. E a direção do Daniel foi impecável. Fiquei muito feliz – ver meu texto no palco foi quase como voltar às minhas origens, em todos os sentidos.
Você menciona Shakespeare apenas uma vez em O Filho Eterno, com o episódio do ator que costumava recitar monólogos shakespearianos. Em outro momento do livro, você escreve que “talvez poucas artes propiciem tão perfeitamente a imagem de fusão da obra com a vida como o teatro.” Puxando esse fio, como você vê o pensamento bakhtiniano [Mikhail Bakhtin (1895-1975), filósofo russo] em relação a Shakespeare? Há possibilidade de interação de vozes nas peças de Shakespeare, mesmo sem a presença de um narrador? É possível falar em polifonia no teatro shakespeariano?
O ator que recitava os monólogos shakespearianos era o Ariel Coelho (1951-1999), que, meu colega no Colégio Estadual do Paraná, foi quem me apresentou as peças de Shakespeare. Ele tinha uma coleção completa, uma edição portuguesa. O teatro teve uma presença grande na minha formação. Trabalhei com a [atriz] Denise Stoklos e logo em seguida me engajei na lendária comunidade do [dramaturgo Wilson] Rio Apa, o velho barbudo. Meu turbulento espírito da prosa nasceu com o ouvido no palco. A leitura de Mikhail Bakhtin veio muitos anos depois, já na universidade. E em praticamente nenhum momento Bakhtin faz referência ao teatro. Se me lembro bem, apenas em O Autor e o Herói ele se refere à linguagem do teatro, mas de passagem. Bakhtin criou o conceito de “polifonia” para dar conta da obra de [Fiodor] Dostoievski (1821-1889), com a qual está intimamente ligado, e sempre sob a perspectiva da literatura, que é outra história. Bem, mas se houver no mundo algum dramaturgo “polifônico”, certamente Shakespeare terá sido o maior deles.
Como autora infantil, não posso deixar de perguntar: O Gran Circo das Américas nunca será revisado? Você teria alguma coisa a dizer para as crianças? Li o episódio do menino levado para longe no enterro do pai como uma possibilidade rica que você transformou no conto na Morte com letra maiúscula, mas que poderia ser uma história do pai que some e permanece presente.
Muita gente me fala disso, de escrever para crianças. Há um mundo de possibilidades aí. Mas eu tenho vários problemas, alguns intransponíveis. O principal é minha limitação de escritor: nunca consegui escrever nada sob encomenda. São sempre os temas que me escolhem – desconfio que são sempre os mesmos temas, que voltam disfarçados, livro a livro, com outras caras, para eu dar conta. Se eventualmente me acontecer um projeto de texto para crianças, ótimo – mas não vou correr atrás porque não vai dar certo. E o Gran Circo, de 1979, é passado, que não me interessa rever. Já o conto “A Primeira Noite de Liberdade” pode ser lido por jovens, é claro. Mas não conseguiria adaptá-lo para as crianças. Seria outra coisa.
(Liana Leão é professora de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná, especialista em Shakespeare e autora de diversos livros para o público infantil)
Tezza responde a Paulo Venturelli
Você defende com paixão e com muitos fundamentos o realismo na literatura. Não há aí o perigo de a literatura aproximar-se do jornalismo, ou esta é mais uma voz que a literatura incorpora?
Do ponto de vista da linguagem, prosa de ficção e jornalismo têm muitos pontos em comum; há mesmo uma certa tradição de identificar “reportagem” com “história”, ou “estória” mesmo, como narrativa. A prosa de ficção se apropria de todas as linguagens, mas sem se confundir com elas, porque a intencionalidade é totalmente diferente. Vai um exemplo maravilhoso: A Guerra das Salamandras, do tcheco Karel Capek (1890-1938), é um livro escrito em forma de reportagem de jornal – toda a técnica jornalística está presente. E, no entanto, a narrativa é inteira fantástica, contando como as salamandras saíram do mar e tomaram conta da Terra, o que era uma alegoria do nazismo. A minha defesa do realismo não é, de modo algum, excludente. Capek usa técnicas realistas, assim como [Franz] Kafka (1883-1924), para contar suas histórias.
Você “repudia” a prosa poética e chega perto de dizer que isto é uma praga na literatura atual (você afirma abandonar um livro que está lendo quando há este gênero). Isto quer dizer que nada se salva em nossa literatura atual? Que autores escapam desta “armadilha”?
Vamos recolocar as questões para torná-las mais claras. Não faço referência à “literatura atual”. O Espírito da Prosa é um livro que retoma a minha formação literária, a partir da virada social, política, cultural e literária dos anos 1960 e 1970. Naquele momento, houve uma implosão da tradição prosaica e uma hipertrofia do discurso poético, pela via da universidade – e também porque a centralização poético-utópica era o discurso do tempo. No Brasil, isso significou uma pulverização da prosa romanesca que perdeu significativamente espaço nas décadas seguintes, até os anos 1990. De 20 anos para cá, com uma geração que não viveu mais os respingos dos anos 1960, a prosa renasce no Brasil com muita força. Não há “armadilha” nenhuma – literatura e História andam juntas; pensar uma é pensar a outra. O que eu digo no meu livro é que, sob o ideário poético totalizante, a prosa perdeu força. E, com ela, a ética do realismo. O que também é outra história.
Como seu fundamento é Bakhtin e para Bakhtin a língua é sempre ideológica porque apresenta um ponto de vista sobre o mundo, como fica a questão da ideologia numa obra de ficção?
Você fez uma pergunta muito difícil, porque a palavra “ideologia” não é teoricamente transparente. Bakhtin – ao contrário de outros pensadores de seu círculo, como [Valentin] Voloshinov (1895-1936) e [Roy] Medvedev – não foi um marxista; o ideológico para ele não era o clássico “mascaramento do real” do marxismo ortodoxo, mas o ideário, ou o conjunto de valores que necessariamente entram em jogo na produção de sentido. Toda obra de ficção é, assim, “ideológica”, na medida em que suas vozes expressam valores complexos, e não unicamente didáticos, políticos ou redutores.
(Paulo Venturelli é professor adjunto da Universidade Federal do Paraná e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo.)
Coletânea
O jornalista Christian Schwartz está organizando a coletânea de crônicas publicadas por Cristovão Tezza em sua coluna na Gazeta do Povo. A antologia terá o título de Um Operário em Férias e contará com ilustrações do cartunista Benett. A Record ainda não definiu a data de lançamento.
• 60 anos é a idade de Cristovão Tezza, completados no dia 21 de agosto. O escritor nasceu em Lages (SC), em 1952, e se mudou com a família para Curitiba em 1961, quando tinha 8 anos.
• 18 livros já foram lançados por Tezza, entre ficções e não ficções. O último é O Espírito da Prosa (2012. Record, 222 págs., R$ 34,90. Ensaio). Ele escreveu ainda dois livros didáticos em parceria com o linguista Carlos Alberto Faraco.
• O Filho Eterno - O livro (Record, 2007, 223 págs., R$ 39,90. Romance) recebeu sete prêmios, como o Jabuti; da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA); Bravo!; Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa; São Paulo de Literatura; Zaffari & Bourbon, da Jornada Literária de Passo Fundo; e Charles Brisset, concedido à edição francesa (Le Fils du Printemps) pela Associação Francesa de Psiquiatria.
• Frankfurt - Em 2013, o Brasil será o país tema da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. Tezza vai integrar a comitiva de escritores brasileiros na maior feira literária no mundo. Entre 10 e 14 de outubro deste ano, o escritor também vai a Frankfurt a convite da Fundação Biblioteca Nacional. Ele vai participar de debates sobre a presença da literatura brasileira do exterior.
• Revisão - Tezza está trabalhando na revisão das reedições de Uma Noite em Curitiba (1995. Rocco, 171 págs. Romance) e Breve Espaço (1998. Rocco, 266 págs. Romance). Os dois livros estão esgotados e serão relançados pela Record com prólogos em 2013.
• Mais prêmios - O Fotógrafo (2004. Record, 224 págs., R$ 39,90. Romance) recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance de 2004, e de melhor obra de 2004 do Prêmio Revista Bravo!. Já Breve Espaço entre Cor e Sombra (1998. Rocco, 266 págs., esgotado) recebeu o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro como o melhor romance de 1998.
(Gazeta do Povo, Caderno Ideias, 25/08/2012)
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