Jornal do Comércio
Caderno Panorama
Porto Alegre, 22 de agosto de 2007


Os fantasmas de Cristovão Tezza

EDUARDO LANIUS

O Filho Eterno (222 páginas, R$ 34,00), romance de Cristovão Tezza chegado às livrarias junto com outros três relançamentos do escritor catarinense, é também o primeiro inédito de uma produção literária que volta ao mercado sob o selo da Record, envolto em novo projeto gráfico. Os demais - Aventuras Provisórias (144 páginas, R$ 30,00), Trapo (256 páginas, R$ 37,00) e O Fantasma da Infância (240 páginas, R$ 36,00) - estavam esgotados e só podiam ser encontrados em sebos, nem sempre com facilidade. O interesse maior, é claro, recai sobre O Filho Eterno, não apenas por marcar a reestréia de Tezza na editora que havia dado guarida a obras como Juliano Pavollini e A Suavidade do Vento, mas também porque se trata de uma das melhores narrativas longas do autor - senão mesmo a melhor. E, como sabe quem já leu alguns dos títulos mais emblemáticos do escritor radicado em Curitiba desde criança, isso não é pouco.

O Filho Eterno é um romance autobiográfico de rara coragem, no qual Tezza exorciza fantasmas persistentes e revê a própria experiência ao longo das últimas décadas. No centro do relato memorialístico está Felipe, primogênito de 26 anos cuja síndrome de Down alterou muito do comportamento de um pai ainda inseguro, que buscava o reconhecimento como pessoa, como professor e como ficcionista, naqueles não tão distantes anos 1980. Narrado em terceira pessoa, em pouco mais de duas centenas de páginas relembra-se a série de questionamentos pelos quais Tezza - por meio de seu alter ego - passou, a começar pelos sentimentos quase inevitáveis de prostração e incapacidade de gerar um rebento sadio (como se o problema não fosse uma alteração genética até relativamente comum). Na entrevista a seguir, Tezza - que o autografará na 53ª Feira do Livro de Porto Alegre - fala um pouco a respeito da gênese do romance.

Jornal do Comércio - O Filho Eterno, ainda que gravite em torno de um filho com síndrome de Down, trata tanto ou mais do pai dele, ou seja, você. É uma espécie de acerto de contas com o passado?

Cristovão Tezza - Acho que sim, embora isso não tenha passado objetivamente pela minha cabeça. Sabia que tinha de escrever sobre minha relação com Felipe, que, afinal, foi o fato mais impactante da minha vida. É um tema que não existe na minha obra e eu não me sentia maduro, não sabia exatamente como tratá-lo. Fui por três caminhos. Primeiro, o do ensaio, que escrevi e imediatamente descartei, porque eu não ia conseguir fazê-lo, exige um tratamento quase acadêmico. Depois, o do depoimento, mas fiquei com medo, é um tema muito próximo. Por fim, na ficção, acho que deu certo. Comecei na primeira pessoa e passei para a terceira, até chegar ao tom que é esse do livro. Transformei a mim mesmo em personagem e foi aparecendo a retomada de um passado. Foi tudo muito intuitivo. Ao contrário de outros, não tive cuidado prévio, de artesanato. Parece que estava pronto na minha cabeça.

JC - É muito vívido, como retrato de época, as experiências na Alemanha, em Portugal, com o teatro. Houve algum esboço daquele tempo, em que você se baseou?

Tezza - Não, nenhum. São histórias que eu contava, coisas marcantes. Parece que tudo veio à tona, já meio pronto. Senti necessidade de compreender aquele pai, que teve aquele filho, de onde ele veio, onde foi formado. Sou eu mesmo. Ao mesmo tempo, onde estavam os sonhos humanistas, aquela visão de mundo dos anos 1960.

JC - Você já acalentava a idéia de escrever sobre Felipe?

Tezza - Vagamente, de uns dez anos para cá. Tinha a idéia de enfrentar o tema, mas não tinha muita coragem. A reação tem sido muito grande, uma resposta muito forte. E é uma coisa muito pessoal.

JC - Não é seu romance mais reflexivo? O pai se expõe, sem deixar de lado misérias e sem exaltar supostas grandezas, na linha do que faz Dostoiévski.

Tezza - É verdade. Esse era um terrível perigo. Já sou um narrador naturalmente impiedoso e, ao me transformar em personagem, pude bater em mim mesmo sem problema.

JC - A receptividade de O Filho Eterno não tem a ver com a humanidade com que o tema é tratado? Como na passagem em que o pai pensa que, como portador de Down, o filho não deve viver muito, ele pode se livrar do que seria um incômodo?

Tezza - Senti que escrevia uma coisa radical ou então era melhor não escrever. É um tema muito difícil, o das crianças especiais, é um alimento para um tipo de abordagem piedosa, religiosa, de uma falsificação profunda. Precisava evitar isso.

JC - Como é a vida de Felipe hoje?

Tezza - Felipe é uma criança maravilhosa. Tem grande maturidade social, embora não intelectual - até hoje ele não se alfabetizou completamente. Mas consegue identificar times de futebol, palavras-chave. Baixa música no computador, mexe no Corel Draw, puxa a fotografia dele, algumas palavras, imprime. Ele me vê fazer e repete as coisas. Tem bom humor, é tranqüilo, puro.

JC - A figura do rebelde, do desajustado, é constante dentro dos romances que você assinou, como é o caso do poeta Trapo, do terrorista lírico, do professor que protagoniza A Suavidadedo Vento. Por que é tão recorrente?

Tezza - É um tema fundamental que me marcou muito. Tem também algo de época. A geração dos anos 1960, de 1970, o fim das repressões familiares e sexuais criou um certo imaginário de contestação e, ao mesmo tempo, de desajuste. Como tema literário, acho muito forte. Não sou mais hippie, hoje sou professor universitário, os tempos mudaram e fui mudando junto, mas outra coisa é essencial: a falência de sistemas explicativos que dêem conta da realidade. E se não houvesse lugar para os nossos sonhos?

JC - Dos três livros relançados pela Record, apenas Aventuras Provisórias foi revisado. O que mudou na novela?

Tezza - Eu o reescrevi praticamente todo. Embora seja o mesmo, acho que não tem uma frase igual. Precisava de uma revisão. Ficou mais enxuto, cortei páginas. A história permaneceu igual. É uma questão de linguagem, de estilo. Mas não pretendo revisar outros.

JC - O que lhe falta escrever?

Tezza - Sou feito de escrita. Tenho um projeto de livro de contos, que quero voltar a fazer. Depois de A Cidade Inventada, de 1980, nunca mais escrevi contos. Começaram a me convidar, encomendam muito para antologias e revistas, quero organizar um livro.


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