Portal Literal - 21 de setembro de 2007.
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Literatura muito viva

Cristóvão Tezza, de volta à Record com três romances reeditados, mais 'O filho eterno', explica como soltou as amarras, transformando-se e a seu filho em personagens do novo romance.

Bruno Dorigatti

"A intimidade sempre esteve no centro do meu universo literário, mas não a minha intimidade. Este livro quebra isso, é altamente autobiográfico, um quarto escuro que precisava abrir."

 

Catarinense nascido em Lages, que mora em Curitiba desde os 7 anos, Cristóvão Tezza consegue magistralmente escancarar o tema que lhe foi tão caro por todos esse anos. O filho eterno, que marca seu retorno a Record – junto com a reedição de Trapo, Aventuras provisórias e O fantasma da infância, em projeto gráfico primoroso de Regina Ferraz –, narra a história de seu filho que nasceu com síndrome de Down, em 1980, e de sua relação interior conflituosa, dura, muitas vezes agressiva e até de negação. Passeia pelos recantos mais pesados e sombrios da consciência, que muitas vezes reluta em aceitar as coisas como elas se dão, e não como gostaríamos que fossem. Tenta investigar o que teria formado a cabeça de um pai que reage assim. "Só consegui isso com a ficção, com a liberdade que tenho ao narrar. Nesse sentido, a literatura me salvou", contou Tezza, na última quarta-feira, durante a mesa em que participou na Bienal do Livro, no Rio de Janeiro.

 

Para o autor, escritores são amorais. "Não são boas pessoas, são cheios de problemas. Mas o que importa, afinal, é o livro", disse, antes de conversar com o Portal Literal sobre o romance e como foi escrevê-lo, entre outros assuntos, entre eles, a idéia que tem do prosador como um organizador do mundo. "Mas a gente mente muito quando fala sobre essas coisas", confessou.

 

 

 

Como lhe ocorreu que seria inevitável abordar esse assunto?

 

Cristóvão Tezza. Eu acho que aconteceu naturalmente. Quando eu escrevi O Fotógrafo (Rocco), amadureci, do ponto de vista técnico, algumas das formas literárias, como a intimidade. O fotógrafo é um dia na vida de cinco pessoas, que acompanho quase minuto a minuto. E tenho a impressão de que esse livro me liberou, pelo menos me deu um certo domínio técnico para eu me sentir seguro para trabalhar o tema d'O filho eterno. Quando acabei O fotógrafo, eu já estava mais à vontade para enfrentar, tecnicamente, o tema desse livro. E a maturidade, digamos, do pai, mais do que do escritor, essa eu já senti que estava pronta, de descobrir a melhor forma de enfrentar o tema.

 

Desde os primeiros esboços, essa mescla entre real e ficção, já tinha isso resolvido?

 

Tezza. Não, eu não sabia exatamente qual seria o registro do livro, começando a escrever é que eu cheguei a dois pontos: primeiro, eu não iria falsificar a minha biografia, no sentido de modificar, mudar os nomes, a cidade, ou dar um invólucro, digamos assim, convencionalmente romanesco para uma história que era exclusivamente minha. Então isso aí eu descartei. Eu queria trabalhar realmente o que tinha acontecido comigo. A questão da forma literária, quando me transformei em personagem, me senti seguro para levar o livro até o fim, para me soltar mesmo, soltar as amarras. Então, neste sentido, chamo o livro de romance, acho que ele é, porque o que importa é a perspectiva da linguagem. O fato biográfico é estruturalmente irrelevante. Primeiro, porque, para quem não me conhece, não tem importância nenhuma saber se o nome do meu filho é Felipe ou José. Mas para mim, escrevendo, foi importante. O segundo aspecto é que o fato de eu trabalhar a perspectiva romanesca me deu uma imensa liberdade factual, porque não é uma autobiografia, tem uma série de furos ali, de fluxos de imaginação, ou mesmo de lacunas da memória, uma escolha muito errática que, se fosse uma autobiografia rigorosa, seria uma magra autobiografia. Menti em muitos momentos, então me deu uma liberdade muito maior.

 

Até as primeiras 60 páginas do romance, tem uma coisa muito forte da negação, de justificar, pelo discurso médico e científico, a inevitabilidade da morte prematura, uma busca de alívio. Queria relacionar isso com o que você falou há pouco, de que só conseguisse tratar disso ficcionalmente.

 

Tezza. É, eu não me senti a vontade no ensaio, porque percebi que teria que ser médico, psicólogo, teria que fazer um monte de leituras paralelas, né?, que me afastariam demais do tema e isso não me interessava. E o depoimento, senti que ia mentir demais, e acho que a minha linguagem não ia ficar tão boa. Só consegui mesmo no romance.

 

E a respeito do que você mencionou sobre a memória, de que ela não deixa de ser uma construção literária. Como é que lidou com isso, ou, enfim, não lidou?

 

Tezza. Não, foi intuitivo, foi selecionando fatos marcantes puramente da memória, que vinham à cabeça, momentos que achei que eram relevantes para a estrutura do livro, fui colocando. É uma seleção, claro que é uma escolha. E depois foi aparecendo aquele contraponto temporal, do passado e do presente, aquela necessidade que senti de tentar descobrir a origem daquele... quais eram os elementos de formação daquele pai que reagiu daquela forma nos anos 1980.


Ainda que se trate de ficção, esse tipo de exposição te incomoda, mexe contigo?

 

Tezza. Não, eu já tô meio calejado. No começo, me assustou um pouco, principalmente porque tinha medo da recepção, de que as pessoas recebessem o livro como um caso médico, ou mesmo um livro de auto-ajuda, o que está completamente distante do projeto do livro. É um livro de desajuda e desajuste. [risos] Mas isso aí eu logo percebi que não. Claro, tem um interesse adicional, muitos pais, principalmente mães que têm filhos especiais, vêm comentar comigo o livro, em geral dizendo coisas como "você escreveu o que sempre senti e nunca tive coragem de verbalizar", porque o livro tem momentos muito fortes, pesados. Mas a grande leitura do livro está sendo literária mesmo, felizmente.

 

Qual o papel da crítica literária na sua trajetória como escritor? Como a recebe?

 

Tezza. A crítica entrou muito tardiamente na vida de escritor. Na verdade, eu comecei a ler resenhas sobre meus livros quando eu já era um escritor praticamente completo. Em 1988 eu lancei o Trapo, e se você olhar o que eu tenho de crítica antes de 1988 é zero. Já tinha cinco livros publicados e nunca ninguém escreveu nada sobre meus livros, eu fui criando uma casca grossa. Quando saiu o Trapo, editado pela Brasiliense, saiu uma resenha na Veja, matéria n'O Globo, n'O Estado de S. Paulo. Subitamente, apareci na imprensa nacional, mas eu não tinha nenhum passado.

 

Mas depois desse aparecimento, o interesse pelas obras anteriores...

 

Tezza. Não, não teve muito. Foi uma coisa construída livro a livro. Mas aí, eu diria assim, que já estava bastante maduro para lidar com a crítica, inclusive com as críticas negativas, nunca me incomodou muito, me sinto bastante seguro em relação ao meu trabalho. Mas gosto de avaliar a recepção crítica, claro.

 

Sobre o Trapo, queria que você falasse sobre a história do posfácio do Leminski, que não chegou a sair agora nesta reedição. Como é que foi?

Tezza. Foi muito engraçado. Foi exatamente aquela edição da Brasiliense, de 1988. O Caio Graco Prado, que era o editor da Brasiliense, pediu pro Leminski fazer o posfácio, mas não falou nada comigo, eu não sabia disso aí. Bem no estilo do Caio na época, ele era o super-editor assim. E ele lançou o livro e saiu na capa, posfácio de Paulo Leminski. Fiquei curioso, fui lá ler, ele era de outra geração, não tinha muito contato com ele, tinha lido muito pouco. Mas ele fala mal do livro, não gostou, hehehe. Talvez seja caso único na literatura brasileira de um livro que tenha um posfácio assim. O que interessava ao Caio era botar na capa o nome do Paulo Leminski. Era a época do auge da fama do Leminski, era um nome que atraía, chamou a atenção pro livro, curiosamente.

 

Sobre os primeiros leitores, a quem confia um livro em processo ou recém-finalizado?

 

Tezza. Durante um bom tempo, eu tive alguns leitores fiéis assim, alguns amigos de Curitiba, uns dois ou três, uma professora amiga minha da universidade. Tinha minha irmã, ela é dentista, mas é uma grande leitora, eu sempre dava o original para ela ler. [risos] Mas de uns anos pra cá, d'O fotográfo pra cá, eu já não estou mostrando pra ninguém. Este e O filho eterno ninguém leu antes. Aí eu já estou mais solitário.

 

Você tem um processo de reescrita?

 

Tezza. Bastante. Eu não escrevo com facilidade, meu texto é muito lapidado, muito trabalhado.

 

Mas isso é durante ou...

 

Tezza. Durante. Eu faço uma primeira pegada no livro. Depois que ele está pronto, aí eu volto, volto muitas vezes, corto trechos imensos, corto capítulos...

 

Mas um trabalho de enxugar, ou, às vezes, também de acrescentar?

 

Tezza. De enxugar, quase sempre de enxugar, o livro diminui sempre de tamanho. O próprio Aventuras provisórias, que foi reeditado agora – é um livro de 1980 e poucos, saiu em 1989, eu acho, mas ele tinha sido escrito bem antes –, saiu a 2. edição agora pela Record, fui relê-lo e modifiquei muita coisa. Dei uma enxugada, tirei dez páginas do livro. O livro permanece o mesmo, mas fiz uma limpeza.

 

E sobre os seus romances considerados mais "experimentais", se arrepende de verdade de algo que tenha escrito, renega?

 

Tezza. Não me arrependo porque fez parte da formação, mas não reeditaria. Livros como os contos d'A cidade inventada (1980), por exemplo, eram contos de formação. Eles saíram na medida certa, edição de autor, co-edição com a Cooeditora, que editou 12 livros e depois foi à falência, naturalmente. O terrorista lírico é um livro interessante, mas também não é um romance maduro. São livros de formação, datados, de um momento. Minha literatura começou com o Ensaio da paixão, publicado em 1982. De certa forma, minha literatura começou com o nascimento do meu filho, o que eu escrevi de melhor foi de 1980 pra cá.

 

Por que essa relação?

 

Tezza. É puramente de idade. [risos] Com 28 anos, escrevi Trapo, estava escrevendo o Ensaio da paixão quando ele nasceu.

Como é a relação com o meio literário de Curitiba? Tem, não tem, é importante?

 

Tezza. Curitiba é uma cidade muito curiosa, não tem grupos literários, até porque eu sou prosador. Os prosadores não fazem parte de tribos, isso é muito engraçado, diferente dos poetas. Os poetas vivem em tribos.

 

Isso não seria uma necessidade, talvez, já que a poesia tem mais dificuldade de aparecer, de ser editada?

 

Tezza. Tem uma coisa meio tribal da sociedade poética. O prosador sempre é um sujeito mais ranzinza, rabugento, solitário, pouco sociável. Dalton Trevisan, por exemplo. Tudo isso que estou dizendo, entre aspas. E Curitiba também não favorece o surgimento de grupos, você fica muito em casa, não tem muito que fazer. É um lugar bom pra escrever.

 
Dos livros recentemente reeditados, teria algum preferido? Qual foi o mais difícil de ser escrito?

 

Tezza. São livros muito diferentes. O Trapo eu gosto muito, tenho uma relação afetiva com esse livro, que me lançou nacionalmente e é um livro que continuava vivo, tem público. A gurizada hoje lê e continua ligada no livro. O fantasma da infância talvez seja o livro que melhor resolvi a questão das vozes duplas. São duas narrativas intercaladas, que gosto muito. Acho que foi um momento interessante da minha vida. O Aventuras provisórias também é um livro bem de um tempo, os anos 1980, e acho uma narrativa interessante para repensar o começo dos orientalismos, dos estudos irracionais, que foram tomando conta. Tem uma certa pegada, uma reflexão em torno disso aí. E O filho eterno é o livro da minha vida, nos dois sentidos. Quer dizer, é o livro de uma visão de mundo que, parece que tirei uma pedra do meio do caminho, precisava escrever esse livro, sair de um túnel escuro. E, ao mesmo tempo, um livro onde mexo pela primeira vez, mexi abertamente em questões biográficas, pessoais.

 

Você mencionou agora há pouco a sua formação literária, primeiramente bem racional [Monteiro Lobato ("um olhar agudo de organização racional do mundo"), Júlio Verne ("a crença iluminista"), e Arthur Conan Doyle/Sherlock Holmes ("busca racional, através de provas")], e depois ela foi tomando esse caminho mais orientalista [Herman Hesse, Carlos Castañeda, Aldous Huxley], da época, fim dos anos 1960. O que permanece hoje?

 

Tezza. Eu diria que o lado racional foi tomando conta. Mas eu tenho uma coisa meio anarquista na cabeça, digamos, uma espécie de um anarquismo emocional, que talvez seja o melhor de mim. Mas um grande controle de razão. Digamos, eu sou um organizador do mundo. Acho que o romancista tem um pouco disso. Definitivamente, não sou um poeta.

 

Por que, o poeta seria um desorganizador?

 

Tezza. [risos] Num certo sentido, talvez. Mas é um tipo de... é uma criação... Não, é diferente, é outra coisa, do texto curto, do impulso. Meu olhar é um olhar assim mais de médio prazo, é... mais cadenciado. Mas a gente mente muito quando fala sobre essas coisas. [risos]

 

Inventa bastante, né?

 

Tezza. Inventa bastante. Na verdade, é uma auto-imagem que eu tento fazer. Eu sonho em ser um organizador.

 

Nesse sentido do prosador que precisa de mais tempo tanto para produzir como parar ser digerido...

 

Tezza. Até o próprio tipo de trabalho dele exige um tipo de disciplina, que modifica a gente. Tem um compromisso em um romance de 200, 300 páginas que te exige coerência interna, uma organização estrutural que, de certa forma, modifica teu temperamento.

 

Poucas editoras investem em autores desconhecidos, lançam três, quatro livros, até a crítica abrir os olhos. Foi difícil essa espera por algum reconhecimento, ou nunca teve preocupação com isso?

 

Tezza. Não, foi difícil, mas eu sou um sujeito dos anos 1970, né? Então até os anos 1990 – entre 70, 80 e 90 – era muito difícil no Brasil, os tempos pré-internet. Era um filtro muito grande, você tinha meia dúzia de editoras só, em São Paulo e no Rio, era um processo caro, a triagem era muito difícil. Cheguei a ter quatro romances na gaveta. O Trapo levou seis anos para ser publicado. Hoje ele seria publicado com extrema facilidade. Hoje não, você tem muitas opções editoriais, selos, nichos de mercados, áreas específicas, a própria internet abriu espaço para divulgação. Os selos menores têm uma certa personalidade, como a 7letras, o pessoal novo. Hoje é um panorama completamente diferente.

 

E como a atividade como professor se relaciona com a produção literária?

 

Tezza. Bom, professor foi pra sobreviver, a vida real assim. Mas eu dou aula de língua portuguesa, não dou aula de literatura. Então isso, de certa forma, me salvou um pouco, deixei a literatura num quarto escuro. Eventualmente escrevo críticas, resenhas críticas. Mas a minha área profissional mesmo não entra. Agora, eu gostaria imensamente de viver dos meus livros, ter uma alternativa de sobrevivência, o ensino cansa.

 

E vislumbra essa possibilidade, agora que a tua obra está recebendo uma atenção especial de uma editora como a Record?

 

Tezza. Não, é uma pequena utopia que você deixa no horizonte. Não tenho muita ilusão com isso, é muito difícil. Viver de livro é muito difícil.

 

Tem alguma obra traduzida?

 

Tezza. Tenho vários contos, tenho livros traduzidos e não-publicados. Por exemplo, Juliano Pavollini tem tradução em francês, espanhol e polonês agora. De agentes, tradutores que estão tentando vender. De dois anos pra cá, surgiu muito isso aí.  E contos publicados em revistas nos Estados Unidos, na Itália, textos isolados.

 

E contato com leitor?

 

Tezza. Tenho via site, que é basicamente um banco de dados. Todo crítica que sai, coloco lá. Não é blog, porque não tenho tempo, realmente. Blog é igual a um tamagotchi, tem que alimentar todo dia. [risos]. Então é simplesmente um banco de dados, ponho lá o material para quem quiser consultar etc. E lá tem contato de e-mail, então quase todo dia chega um leitor dizendo alguma coisa.

 

O que é preciso para começar um novo romance? Uma idéia, uma necessidade?

 

Tezza. Começa de uma idéia, de uma imagem qualquer, vai tomando corpo, leva aí um, dois anos na minha cabeça, até que se torna uma linguagem. Aí começo a escrever e a coisa vai embora.

 

Como tem sido a recepção até agora com O filho eterno?

 

Tezza. A recepção desse livro está fantástica. Realmente, nenhum livro anterior meu teve o impacto que esse está tendo, dos leitores e da crítica. Está me exigindo muito, estão me convidando pra tudo que é lugar, estou viajando praticamente toda semana, e vou trabalhá-lo até dezembro, porque sei que isso aí é volátil, daqui a pouco desaparece.

 

O que seu filho achou do livro?

 

Tezza. Meu filho achou ótimo, é o livro da vida dele. Ele não leu, não é alfabetizado, não tem essa abstração. Então ele sabe que é um livro da vida dele. Chega alguém lá em casa, ele pega o livro e vai dar de presente. É uma festa, pra ele, é uma festa. Quando fiz o lançamento em Curitiba, ele fez uma exposição das pinturas dele também. Mas ele não tem abstração, ele vive num outro diapasão, mas sabe que ali tem um pedaço dele. Ele atende ao telefone assim: "Aqui é a casa do Cristóvão Tezza, escritor".


Leia um trecho de O filho eterno.


É preciso ainda consultar um especialista em génetica médica, para conferir uma eventual cardiopatia - todos os médicos disseram que não há nada de errado com a saúde do menino, mas a incidência de problemas de coração em crianças com trissomia 21 é muito alta. Um especialista saberia localizar o problema, se houver, com precisão. Ao cruzar o pátio dos milagres do Hospital das Clínicas, aquela pobreza suja, estropiada, cristã, os molambentos em fila, a desgraça imemorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulâncias de prefeituras do interior trazendo votos potenciais que se arrastam em muletas, o gado balançando a cabeça e contemplando no balcão uma cerca incompreensível e intransponível, cuidada por outra espécie de gado que carimba papéis e entrega senhas; o sétimo céu é algum corredor que dê em outra sala onde um apóstolo de branco estenderá a mão limpa e clara sobre as cabeças para promover a cura milagrosa - ele pensa em Nietzsche e no horror da misericórdia, a humilhação como valor, a humildade como causa, a miséria como grandeza. Pois o seu filho, confirmada a tragédia, nem mesmo a esse ponto (ele olha em torno) chegará, porque não terá cérebro suficiente para inventar um deus que o ampare e não terá linguagem para pedir um favor. O que o ampara agora, no vaivém desses dias medonhos, é a perspectiva justamente da cardiopatia do seu filho, que acabará logo com o pesadelo, ele sonha, e mais uma vez se antevê recebendo abraços e condolências sentidas. Pensa vagamente na imagem de um filme inglês, um enterro sob uma árvore, num fim de tarde melancólico, todos de preto. Mas não haverá serviço religioso. Uma cerimônia limpa e tranqüila. Um recomeço: o mundo começa com um suspiro de alívio. O desejo estúpido de morte não o deixa - há um esforço de derrotá-lo (primeiro a miragem de um engano genético, que faria desse nascimento só um pequeno trote do destino), depois a vergonha do próprio sentimento, a estupidez de sua frieza oculta - ele não consegue ocultá-lo; em lapsos, esse desejo volta irresistível, e é como um sonho.

[...]

 



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