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O ESTADO DE S. PAULO
Caderno 2 / Cultura / p. D7
Domingo, 17 de julho de 2005
Entrevista
Cristovão Tezza, escritor
O Colecionador de prêmios
O escritor catarinense recebe distinção da Academia Brasileira de Letras e é cotado para o Portugal Telecom
ANTONIO GONÇALVES FILHO
"O escritor catarinense Cristóvão Tezza completa 30 anos de carreira literária recebendo, na quarta-feira, o maior prêmio literário da Academia Brasileira de Letras por seu romance O Fotógrafo (Rocco, 223 págs., R$ 27), considerado o melhor livro de ficção publicado no Brasil no ano que passou. Tezza, um dos autores mais cotados para receber o prêmio Portugal Telecom, participou como convidado da 3.ª Festa Literária Internacional de Paraty, realizada na semana passada. Foi na cidade litorânea fluminense que ele recebeu a reportagem do Estado para entrevista exclusiva, em que falou de literatura e política.
Autor de 11 romances desde 1975, quando foi lançado A Cidade Inventada, Tezza, professor universitário e ensaísta, é autor de um elogiado trabalho sobre Bakhtin e o formalismo russo. Seu livro O Fotógrafo conta um dia na vida de um profissional contratado para fotografar uma modelo. Ele acaba se envolvendo com ela, enquanto sua mulher ensaia um caso amoroso com o professor, casado com a analista da modelo.
Como surgiu O Fotógrafo?
Gosto muito de fotografia. Sou fotógrafo amador, sempre brinquei com isso. Tinha uma primeira cena da cabeça, a de um profissional contratado para fotografar uma modelo, uma cena banal. Quando comecei a escrever, senti que a força do livro residia no fato de se passar num único dia. Daí a questão de recuperar a tradição do narrador onisciente do século 19, do narrador sabe-tudo que tinha a premissa de ser capaz de dar conta da realidade. Meu narrador sabe tudo sobre os personagens, mas não sabe nada do mundo. É um narrador fracassado.
Em O Fotógrafo, você trata da interação entre imagem e palavra, esse trânsito que sempre existiu e que a arte conceitual tornou ainda mais evidente. Passado esse período, a palavra está sendo expurgada das artes plásticas. Como você analisa essa ligação entre as duas?
Embora diga que a minha literatura seja visual, pois só escrevo o que vejo, há autores que têm um tal grau de abstração que você não vê nenhuma imagem em seus textos, como nos monólogos de Beckett. A literatura, para mim, é uma arte de cegos. É a construção do mundo via palavra. Agora, há um trânsito inevitável entre as artes visuais e a literatura, pois ambas são modos de representação, de recorte do mundo, principalmente no século 20, que registrou a invasão avassaladora da imagem como referência e até sistema de valores. E não só no século 20. Isso aconteceu em outros momentos, o período medieval, por exemplo. A história da pintura ocidental é a do didatismo da Igreja Católica, via imagem, num mundo de analfabetos. Mas, apesar disso, acho que são terrenos bem distintos. Embora a literatura influencie o cinema e vice-versa, ela não deve competir com a imagem. Como experimentação formal, foi fantástico o exemplo dos formalistas russos ou dos concretistas, que se apropriaram do signo gráfico e o transformaram num elemento importante da literatura. Foi um salto importante, mas é um erro estratégico a competição com o reino da arte, pois ela vai perder sempre. A literatura deve pegar justamente aquilo que é específico, a palavra enxuta.
Você fala da palavra como elemento de transformação, de criação do mundo, o que evoca o caráter sagrado do verbo. Para você, a palavra tem esse poder, esse sentido religioso?
Ela tem, porque o mundo é o que a palavra diz que ele é. Ela pode ser muito perigosa, principalmente quando aparece aliada ao poder ou à religião. Nesses casos, os efeitos costumam ser devastadores. Particularmente, vejo a prosa romanesca atual como um modo de representação do mundo que não se confunde com ensaio. De certa forma, ela é um ensaio colocado à prova, é como se você testasse as possibilidades da vida humana num mundo em que não se tem mais uma cosmogonia para cantar nem grandes valores éticos. Qual seria, então, o lugar do homem num mundo sem Deus? É essa resposta que meus personagens buscam. Embora eu, pessoalmente, seja ateu, eles acreditam em Deus. Deus é uma presença na vida. Ele tem de ser pensado.
Você evita palavras quando escreve?
Tecnicamente tenho o ouvido apurado para a questão do coloquial. Não sou preciso. Minha literatura não tem preciosismo. Tenho limite para o emaranhar das palavras, que é o limite do uso cotidiano, da força cotidiana das palavras. Essa é a minha matéria-prima, mas não evito palavras, não. O escritor não pode ter medo delas.
Você se arrepende de ter escrito algum livro?
Não, mas de vez em quando visito um sebo para ver se encontro os três ou quatro primeiros, não para reler esses livros, mas para os recolher. Isto é, quando os encontro, claro. Sou muito exigente comigo mesmo. Demorei muito para escrever alguma coisa que julgasse boa. Escrever me dá uma angústia séria. Fico sem dormir por causa de uma frase.
Quais são seus livros que você rejeita?
A Cidade Inventada, que é uma boa idéia nas mãos de um autor imaturo, depois O Terrorista Lírico e, finalmente, Gran Circo das Américas.
A literatura contemporânea parece caminhar para um amálgama entre ficção e ensaio. Como você analisa o fenômeno?
Isso é um reflexo do impulso tecnológico do século 20, de uma certa tecnocracia literária, basicamente uma questão dos movimentos dos primeiros anos desse século, que trataram a literatura com o mesmo espírito de ciência que invadiu outras áreas. A lingüística, por exemplo, foi um avanço fantástico, pois se passou a ver a língua como sistema. Quando isso foi transplantado para a literatura, que trabalha com valores de cultura, e não propriamente com estruturas imanentes, tivemos surtos tecnocráticos. Acho que é uma fase que está se esvaindo. A ficção não pode ser simplesmente o espaço de ensaio sobre a ficção, em que o autor finge que não está aí, em que a literatura vira apenas um jogo de referências externas ou internas, como um cubo de montar. Acho que a literatura tem de ter a responsabilidade emocional da linguagem, que se perdeu um pouco. Não estou postulando uma literatura puramente conteudística. Ela é forma, mas tem de recuperar o poder de sua linguagem, a força de dizer o que diz e acreditar nisso.
Você, que escreveu sobre o formalismo russo e outros movimentos revolucionários da literatura, considera ainda possível a arregimentação de escritores em torno de uma idéia comum, em nossa época marcada pelo individualismo?
É, realmente estamos numa diáspora total, numa época de vale-tudo, que dessacralizou tudo. Temos, por outro lado, aquela faixa estreita que a gente considera alta literatura, mas ela está acantonada, sem saída, sem voz. O romance, no século 19, era a grande arena de discussão de temas da cultura ocidental. Deu, inclusive, raízes para criar filosofias como o existencialismo. Isso se perdeu, mas pode ser recuperado, numa outra perspectiva, com uma outra linguagem. Em geral, todos esses movimentos revolucionários são poéticos. Os poetas têm uma relação mais sagrada com a palavra e, embora vivam brigando, são mais gregários. O prosador é um solitário. Existem várias associações de poetas, mas nenhuma de prosador.
A relação entre autores e editores, hoje, também não ajuda muito. Numa época como a de José Olympio ou Ênio Silveira, exigentes e criteriosos, parecia mais difícil publicar e mais fácil manter os escritores unidos em torno da alta literatura, não?
Trapo, livro de 1988, foi escrito seis anos antes e recusado por vários editores. Hoje seria muito fácil publicá-lo. O livro virou um bom negócio. Uma prova disso é a entrada de editoras estrangeiras no mercado, embora isso ainda seja um mistério para mim. Publica-se muito, houve uma certa banalização da literatura. A relação ética do escritor com o ato de escrever talvez tenha de ser renovada.
Você é acossado por seus personagens com questões éticas?
Não. Faulkner dizia que o escritor precisa de três coisas: imaginação, experiência e observação. Eu diria que meu ponto forte é a observação. Sou um observador e toda a minha imaginação decorre dela. Então, convivo demoradamente com meus personagens. Tem, sim, algum grau de possessão, quando me coloco na pele do outro, mas não no sentido da metempsicose espírita. Você simplesmente passa a ter responsabilidade quando cria o ponto de vista de um personagem. Não se pode fazer qualquer coisa. Esse é o segredo da prosa. Ela não te dá a liberdade da poesia. O poeta faz o que quiser da palavra. O prosador passa a palavra para outro. Não é possível dizer nada que não corresponda ao ponto de vista alheio.
Como você analisa os novos rumos da literatura contemporânea brasileira?
Acho que estamos numa fase de transição. Gosto da poesia de Paulo Henriques Brito, que é uma síntese fantástica não só do momento poético como da atual literatura brasileira.
E o quadro político do Brasil?
Factualmente é uma tragédia. Por outro lado, não é uma tragédia institucional. Formei-me sob uma ditadura militar e sei o que é uma questão institucional. A esquerda precisa rever sua mitologia, como defende a crítica argentina Beatriz Sarlo. A esquerda ainda tem o resíduo de uma visão partidária muito fechada. O famoso centralismo democrático está dando nessa pulverização. E, depois, há alguns cacoetes históricos, porque é inconcebível que PT e PSDB se juntem cada um com a sua direita. A gente ainda carrega nas costas a questão da escravidão, que foi devastadora. Estamos pagando o preço dessa herança escravocrata até hoje."
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