Estado de Minas
Belo Horizonte, 17 de setembro de 2007

Cristovão Tezza lança hoje em Belo Horizonte o livro O filho eterno. Considerado pela crítica um dos melhores lançamentos do ano, romance tem como tema a experiência com a síndrome de Down.


Verdade do coração


Carlos Herculano Lopes


Cristovão Tezza é um homem discreto. Autor de obra importante, com mais de 10 romances publicados e vencedor do Prêmio Machado de Assis, escolheu o caminho mais difícil para conquistar lugar de respeito na literatura brasileira contemporânea. Apostou numa carreira construída passo a passo, sem concessões à facilidade. Com sinceridade, levou a seus livros tipos humanos, sentimentos e experiências próprias de sua geração. No entanto, havia uma história, talvez a mais importante, da qual ele passava ao largo em sua escrita fortemente confessional: o nascimento de seu filho, Felipe, em 1986, portador da síndrome de Down.

Esse é o ponto de partida do romance O filho eterno, que Cristovão Tezza lança hoje no projeto Sempre um papo. "Esse tema era um ponto cego na minha vida. Nos meus livros anteriores, nunca tinha tocado no assunto - era como se ele não existisse no meu universo literário. Mas, de repente, com o amadurecimento, comecei a concluir que não poderia passar o resto da vida sem jogar isso para fora. Afinal de contas, até hoje, foi a coisa mais impactante que ocorreu comigo", revela o escritor.

Pode parecer estranho que um romancista inteligente e consciente de seu domínio passasse ao largo da experiência mais significativa de sua vida sem tematizá-la em seus livros. Sugere algo como um bloqueio. Sobretudo para um autor que sempre se revelou em romances que são, muitas vezes, retratos de sua geração. O caminho mais convencional das memórias ou de um ensaio, que substituísse a emoção pelas informações científicas, foi, sabiamente, evitado por Cristovão Tezza. A empresa não ficou mais fácil, mas, certamente, de maior impacto artístico e existencial.

Tezza não escreveu seu romance para consolar. Quem buscar bálsamo para suas dores, lições de moral ou orientações técnicas vai se dar mal. Seu método é literário, não científico ou ético. E, na literatura, há uma riqueza que não aponta necessariamente para respostas. A mescla de biografia, autobiografia e ficção equilibradas com sensibilidade pelo autor criam modelo novo, que não tem presunção de verdade, como na ciência, nem de confissão, como numa autobiografia tradicional. A força maior de O filho eterno é o fato de se tratar de uma verdade que se fundamenta na imaginação.

História comovente

O resultado, depois de meses de dedicação ao trabalho, foi uma história comovente, da qual ninguém consegue sair sem se emocionar. Não há meias-palavras nem sentimento de culpa. Ao contrário: em determinados momentos, a leitura se torna tão dura, às vezes cruel, que dá até vontade de perguntar como o escritor, ao falar de uma situaçaõ especial, teve coragem de escrever com tanta transparência, deixando doer o coração.

O romance, que já é considerado um dos melhores lançamentos do ano no Brasil, começa com o futuro pai no corredor do hospital, fumando, tomando uísque e esperando pela chegada do filho, pois não teve coragem para acompanhar a mulher e assistir ao parto. Daí em diante, as coisas vão ganhando um ritmo frenético, com outros assuntos entrando na história, como o período em que Tezza, movido pela aventura, esteve na marinha mercante. Depois, apenas com uma passagem de ida, "pois naquela época - anos 1970 - isso ainda era possível", foi para Portugal e Alemanha.

No cerne do romance, está o filho Felipe, com o qual, passado o "pesadelo inicial", foi aprendendo a conviver. Hoje são grande sompanheiros. "Inclusive de sofrimento, pois ele, como eu, é torcedor do Atlético Paranaense", brinca o romancista. Catarinense que há vários anos vive em Curitiba, Tezza é professor de língua portuguesa na Universidade Federal do Paraná. A recusa em lecionar literatura brasileira é consciente. Cristovão Tezza não quer misturar as estações e acredita que o verdadeiro território da literatura é a criação.

Feliz com as respostas que os leitores têm dado a O filho eterno, pois temia inicialmente que o livro fosse tratado "apenas sob a perspectiva médica", Cristovão Tezza, enquanto dá um descanso para começar investir em outro projeto literário, vai alimentando um sonho: viver só de literatura. "Mas, por ora, é apenas um projeto, pois estou ficando meio cansado de dar aulas. Também não sei se daria certo ficar apenas por conta de escrever, que vem pela primeira vez a Belo Horizonte. "Pode uma coisa dessas?", brinca.

Aprender com a diferença

Outros escritores já levaram para o terreno da ficção experiências pessoais semelhantes à do romancista Cristovão Tezza. O japonês Kenzaburo Oe, em Uma questão pessoal, de 1964, recentemente lançado no Brasil, narra a história de bird, professor que tem um filho com anomalia cerebral grave. O auto, que ganhou o Prêmio Nobel em 1994, voltaria ao tema em 1967 com Um grito silencioso. Escrito como uma expiação, quase um método de salvação que permitisse o escritor a lidar com o filho doente e deformado, Uma questão pessoal não tem espaço para a auto-indulgência. Seu relato aflora com um desabafo cheio de angústia e palavras duras contra todos, do próprio filho aos médicos, sem poupar nem mesmo o próprio narrador.

O romancista italiano Giuseppe Pontiggia também trouxe para o terreno da ficção a experiência com o filho, Paolo, vítima de parto mal realizado que o deixou com seqüelas permanentes. Nascer duas vezes, título da novela, alude à necessidade do duplo nascimento dos deficientes: depois do parto fisiológico, há a necessidade da dura saída para um mundo intolerante. O segundo nascimento dos deficientes acaba sendo também a segunda chance para os pais, que têm a oportunidade de acertar com a aprendizagem da diferença.