Uma tarde em Curitiba
Revista Serafina
Dezembro de 2008


José Geraldo Couto

"Um domingo na Arena com Cristovão Tezza, escritor, torcedor e pai"

Quando o volante flamenguista Toró fez o gol contra que abriu o caminho para a goleada do Atlético Paranaense, no último dia 7, na Arena da Baixada, em Curitiba, o escritor Cristovão Tezza vibrou, pulou e gritou como um torcedor qualquer. Em seguida, pegou o celular e ligou para casa, onde, na sua ausência, os amigos estavam reunidos diante do telão de 42 polegadas para assistir ao jogo no pay-per-view. "O Felipe tá ligado? Ele comemorou?"

Felipe é o filho que o escritor precisou despistar para não levar ao estádio. Com uma ponta de culpa na voz, ele me explica, depois de desligar o celular: "Se o Felipe tivesse vindo, nós não poderíamos conversar, porque ele demanda atenção total". Felipe tem 28 anos e é portador da síndrome de Down. Da sua relação com esse filho especial, Tezza plasmou um livro igualmente especial, o romance autobiográfico "O Filho Eterno", que neste ano ganhou todos os prêmios literários importantes do país.

Daqui a pouco falamos um pouco mais sobre Felipe, pois agora o jogo está quente. Eu não disse? Olha lá o segundo gol. A arena atleticana treme sob os nossos pés. Tezza pula do assento, grita gol, abre um largo sorriso, mas em seguida pondera: "Dois a zero é um placar perigoso. O time relaxa, toma um gol e entra em desespero".

Essa mescla de animação e comedimento, essa alegria de pés no chão parece marcar a atitude de Tezza diante da vida. Os prêmios, por exemplo, o embevecem, claro, mas não o deslumbram. "Eu me acostumei com a indiferença. Anos e anos de escrever sem ser lido me deixaram com a casca grossa." É com o mesmo viés autocrítico que o escritor observa sua cidade, Curitiba, para onde se mudou vindo de Lages (SC) com a família, aos seis anos, de pois que o pai morreu.

"O curitibano se sente meio culpado em aparecer. Ele não sabe ser extrovertido. A extroversão, quando acontece, é perigosa. O tapinha nas costas aqui é um pouco mais forte. Há um espírito germânico, bávaro, que domina a cidade."

O terceiro gol atleticano faz surgir no setor mais aguerrido da torcida uma imensa faixa: "Por Deus, pela pátria e pelo Atlético". Tezza me olha com uma careta de medo e depois ri: "Eu não disse?"

Eu o instigo a falar sobre dois outros grandes escritores curitibanos, Dalton Trevisan e Paulo Leminski. "O Dalton captou a substância bíblica, culpada, da cidade, um certo fatalismo curitibano." Aos 16 anos, quando começava a trabalhar como ator teatral. Tezza ia a um café da Boca Maldita frequentado por Trevisan, e lá ficava observando em silêncio o escritor.

"Já o Leminski era um exemplo da tal extroversão curitibana exagerada. Quando comecei a escrever, ele já era um nome nacional. O ‘Trapo’, meu primeiro livro publicado por uma grande editora, a Brasiliense, tem um posfácio dele... Metendo o pau no livro, o que deve ser umcaso inédito na história da literatura." Isso foi em 1988. Vinte anos depois, Tezza fala do assunto com uma serenidade jocosa. "Hoje vejo a reação do Leminski como um exemplo clássico da autofagia curitibana."

Os gols se sucedem: quatro a dois, cinco a dois, cinco a três. Alívio geral. O "Furacão" continua na Série A. A torcida atleticana grita em coro o nome do técnico Geninho. Tezza aprova: "Ele transformou uma nau de desesperados em algo parecido com um time de futebol".

O JANTAR

Anoitece em Curitiba quando chegamos ao apartamento do escritor para o jantar da vitória. Somos recebidos à porta por um sorridente e caloroso Felipe, devidamente paramentado com sua camisa personalizada do Atlético, o nome escrito às costas, sobre o número dez. Tezza me apresenta os amigos e, de repente, começa a rir. Acaba de ver, sentado no sofá da sala, um boneco que o representa: feito com travesseiros, vestido com a camisa atleticana, tem num dos braços o livro "O Filho Eterno" e, no outro, uma lata de cerveja. "Espera aí. Minha barriga não está tão grande assim", protesta, entre risos gerais.

Não é só a vitória futebolística que alegra o ambiente. A presença de Felipe, com sua imensa doçura e seu espírito lúdico, parece inspirar o melhor de cada um. Antes de atacarmos o delicioso peru, assado pela encantadora Beth, mulher de Tezza há 31 anos, dá tempo de espionar um pouco o ambiente do escritor. Um cubículo de uns seis metros quadrados, dominado por um reluzente Macintosh recém-comprado, é o local onde ele se isola para escrever todas as tardes, já que as manhãs e algumas noites são tomadas pelo trabalho como professor universitário.

Essa rotina agora vai mudar. Com o dinheiro que recebeu dos prêmios, o escritor vai deixar a universidade para se dedicar integralmente a literatura. Já está escrevendo um novo romance, uma história de amor protagonizada por uma mulher chamada Beatriz. O livro está com 30 páginas. "Mas só vou embalar quando acabar essa agitação toda. Estou muito elétrico, preciso de paz e de ócio para escrever."

Num canto, como relíquia de outro tempo, a máquina de escrever portátil que tinha sido do seu pai, um advogado autodidata que só aprendeu a ler quando serviu no Exército.

Na sala, Tezza exibe orgulhosamente as estantes que ele próprio construiu. Com ansiedade contida, deixa que eu descubra por conta própria os quadros de Felipe que adornam as paredes. Um deles chama a atenção: um enorme trator amarelo, em acrílico sobre tela. A pintura, diz o pai eterno, é um meio privilegiado de expressão de Felipe.

Outro é o futebol. O rapaz se sente irmanado aos outros torcedores e, apesar da dificuldade de abstração, acompanha campeonatos, elege ídolos, esboa uma cosmogonia.

O próprio Tezza hoje valoriza mais o futebol por causa de Felipe. Entre os muitos prêmios que cobrem uma mesinha da sala, ele se apressa em mostrar uma placa, em homenagem a ele e ao fiIho, que Ihes foi dada em um jogo na Arena da Baixada. Nela, aparece um trecho da última página do livro: "Bandeira rubro-negra devidamente desfraldada na janela, guerreiros de brincadeira, vao enfim para a frente da televisao - o jogo começa mais uma vez".


voltar