Eterna Relação

O escritor paranaense Cristovão Tezza conta uma viagem radical entre pai e filho, em livro premiado

Jornal A Tarde – Suplemento CULTURAL
Salvador, sábado, 31/01/2009

Cristovão Tezza, 56 anos, é conhecido por quem acompanha de perto a ficção produzida no País desde que publicou Trapo, há duas décadas. Com aquele livro, sobre um jovem poeta suicida e suas páginas inéditas, o escritor catarinense, radicado em Curitiba, fez com que a crítica o visse a partir dali com respeito e expectativa. Não houve surpresa, portanto, quando seu romance mais recente, O filho eterno, começou a vencer todos os principais prêmios literários de 2008: tratava-se do livro irretocável de um autor maduro. Nos bastidores, havia discreta torcida, dava-se como merecido o resultado. O entusiasmo dos críticos parece finalmente ter atraído o público, algo difícil para um escritor de ficção no Brasil: o romance ultrapremiado, o 12° da trajetória literária de Tezza, já mereceu reedições e traduções no exterior. O curioso é saber que foi com certo temor, e até relutância, que o escritor realizou a obra. A história de um pai e seu filho, portador da Síndrome de Down – e também relato dos anos de formação como escritor desse mesmo pai – guarda grande similaridade com a de Tezza e Felipe, seu filho nascido em 1980. O autor receava ser mal-recebido: podiam considerá-lo apelativo, confessional ou piegas. Resistiu durante anos em tratar do tema, que, afinal, impôs-se como inevitável: “Não poderia passar o resto da minha vida sem escrever sobre o fato mais impactante que me aconteceu, depois da morte do meu pai, nos meus 7 anos”, conta nesta entrevista concedida por e-mail à jornalista JOSÉLIA AGUIAR, num intervalo de muitos compromissos que surgiram após após as premiações que agitaram a sua agenda de professor universitário.

1 - Em entrevista recente, você disse que precisou de dez anos para amadurecer “O filho eterno” e que, antes, considerava estar diante de um “anti-tema literário”. Quando surgiu a idéia do livro e que dificuldades teve de superar – de ordem pessoal e “técnica”, por assim dizer?

A idéia de escrever sobre o tema de um pai com filho especial só começou a entrar na minha cabeça há uns quatro ou cinco anos. Era uma espécie de tabu para mim, um buraco negro temático na minha vida. Talvez nem tanto pelo medo da exposição pública, mas pelo receio do peso do tema mesmo, que poderia me fazer escorregar para a auto-ajuda, a literatura edificante ou apenas o derramamento emocional pela confissão. Esse problema foi vencido pela convicção de que eu não poderia passar o resto da minha vida sem escrever sobre o fato mais impactante que me aconteceu, depois da morte do meu pai, nos meus 7 anos. Tecnicamente, eu tive de me afastar do personagem, vê-lo de fora e de longe. A ficção me deu essa arma.

2 - Como foi se dar conta de que a obra estava pronta e ia ser publicada? De alguma maneira você se sentiu exposto ou, ao contrário, se sentiu protegido, pelo próprio distanciamento que havia conseguido encontrar para escrever?

Sou meio autista para escrever – vou escrevendo, e depois penso e revejo. Confesso que levei um susto quando senti o livro pronto. Pensei na exposição pública sim, que não é pouca. Mas como a força literária do livro foi realmente o que apareceu, não tive problemas. Isto é, o livro está sendo lido como deve mesmo ser lido, uma peça literária, um romance, não uma confissão pessoal. O distanciamento foi a minha chave.

3 - Logo após receber o prêmio Portugal Telecom, você comentou que “já tinha perdido muito concurso na vida e agora está correndo atrás do prejuízo”. Afora em momentos como esse, de premiação, o ofício de escritor é em geral solitário e, num país de poucos leitores como nosso, nem sempre recompensador. Queria que nos contasse se pensou em desistir alguma vez e se teve algum grande momento de reafirmação de sua escolha de ser escritor?

Não, nunca pensei em parar de escrever. Talvez a razão seja o fato de que, para mim, desde muito cedo escrever foi uma aventura pessoalíssima, uma viagem solitária mesmo, até pelo imaginário que fez minha cabeça no final dos anos 60, início dos 70. Nunca tive pressa e jamais escrevi pragmaticamente, buscando recompensa imediata. Até porque a universidade acabou por me dar aquele mínimo de estabilidade financeira que me deixou livre para escrever. Nos anos 1980, cheguei a ter quatro livros na gaveta e continuei escrevendo. Sobre a solidão de escrever, o meu romance “A suavidade do vento” dá um a bo a medida de como isso funciona num país como o Brasil.

4 - O que já mudou na sua rotina após as premiações? Já houve retorno nas vendas? É possível pensar em se dedicar exclusivamente à literatura?

Bem, faz praticamente um ano que estou vivendo “de fama”, sem fazer nada. Não consigo nem escrever. Estou com um romance engatilhado, mas não fui além da página 30. Quero ver se me organizo bem no ano que vem. “O filho eterno” está indo muito bem em vendas – e além disso, já foi vendido para vários países (Itália, Espanha, França, Portugal, Holanda, Austrália e Nova Zelândia). Sim, penso em viver de literatura – ou pelo menos de escrever, o que não é exatamente a mesma coisa – a partir de julho de 2009. Acho q ue va i dar certo. Estou me organizando para isso.

5 - Você já comentou que relutou em entrar para a universidade e, hoje, completou já mais de duas décadas nela. Em que medida a vida acadêmica influenciou sua obra literária? Pode-se dizer que temos agora um novo tipo de escritor no país, o escritor-acadêmico, quando antes em geral a maioria era escritor-jornalista?

Sim, a universidade nos últimos tempos, ou a partir dos anos 1980, acabou sendo uma guarida para muitos escritores. Um trabalho que dá uma sobrevivência razoável e, se o professor souber administrar bem o tem po, condições para escrever. Não sei em que medida a vida acadêmica me influenciou. Eu acho que não muito, até porque entrei tardiamente para a Universidade, depois dos 30 anos, quando já era um escritor praticamente maduro. Mas alguma coisa deve ter entrado nos meus livros, é claro – ninguém vive 20 anos no mesmo lugar sem absorver resíduo nenhum.

6 - Você já citou, como influências para “O filho eterno”, o Prêmio Nobel japonês Kenzaburo Oe, que escreveu “Uma questão pessoal”; o italiano Giuseppe Pontiggia, autor de"Nascer Duas Vezes"; e outro Prêmio Nobel, o sul-africano J.M. Coetzee, especialmente por "Juventude" . Gostaria, aqui, que nos contasse como é a pesquisa que antecede uma obra específica?

Pesquisa, de fato, não faço nenhuma. Citei aqueles três livros lembrando de diferentes momentos da minha formação, leituras avulsas e marcantes, e depois retornam em outra situação. Não foram exatamente influências, no sentido literário do termo – acho que a viagem radical entre pai e filho de “O filho eterno” não tem semelhança profunda com nenhum desses livros – mas revelações, ou sugestões do potencial que o tema oferecia. No caso de Coetzee, foi a questão técnica que me marcou, o uso da terceira pessoa para falar de si mesmo.

7 - A quais autores você sempre recorre ou poderia apontar como grandes influências em sua obra? Não sei mais.

Desde “Breve espaço entre cor e sombra” sinto que amadureci o meu olhar e o meu texto numa direção própria, um jeito que está presente em tudo que escrevo. Minhas influências, ou as leituras que me formaram, vêm de um eixo narrativo que começa com Dostoiévski, avança por Conrad, Faulkner, Camus, e hoje, Coetzee.

No Brasil, a tríade Machado, Graciliano e Drummond. Mas é bom desconfiar dessa lista, que tem uma lógica interna típica de quem faz uma retrospectiva interessada... na vida real, as leituras são muito mais caóticas e disparatadas.

8 - Certa vez, numa entrevista no final da década de 70, o escritor Paulo Leminski comentava que Curitiba não acompanhara grandes momentos da cultura e da literatura brasileira, com exceção do período simbolista. Com o próprio Leminski, depois Dalton Trevisan, e agora você e outros escritores que vivem lá, pode-se dizer que o Paraná se firma como uma espécie de pólo literário? Se sim, há uma explicação?

Nunca pensei nisso. Curitiba se transformou numa “cidade-conceito”, e nesse terreno exagera-se muito, como se minha cidade fosse um oásis de felicidade e qualidade de vida perdido num inferno brasileiro. Nem é preciso dizer que essa imagem não tem nenhuma relação com a realidade, apenas com o desejo. Sobre a presença literária, Curitiba começou muito tarde, a rigor com Dalton Trevisan e com a revista Joaquim. A importância do nosso simbolismo é puramente escolar .

Da literatura mais recente, Curitiba tem a marca da originalidade. Valêncio Xavier, recentemente falecido, é uma figura importantíssima da narrativa visual brasileira. Leminski marcou época. Dalton é um dos grandes gênios do conto brasileiro. Não tem muita explicação – ou, pelo menos, sou incapaz de descobrir.

9 - A literatura brasileira parece ter superado o antigo projeto “regionalista”; ao mesmo tempo, é possível reconhecer diferentes tendências. De que modo as diferenças regionais se delineiam na prosa brasileira atual?

O espaço regional sempre foi um traço marcante em praticamente tudo que se escreveu no Brasil. E, como sabemos, houve desde a origem uma apropriação ideológica da idéia de “natureza” - de certa forma, uma fantasia de que ainda não nos livramos completamente. Não sei dizer – não me sinto suficientemente informado sobre a produção contemporânea para fazer essa mapa, que aliás seria um belo projeto de estudo.

O que sinto é que a rápida e violenta urbanização brasileira das últimas décadas teve consequências profundas na nossa produção literária. A cidade é o “não-espaço” por excelência, o apagamento programático da “região” ; grandes cidades são todas parecidas, e nelas parece que o homem perde seu apoio “atávico”, por assim dizer. Interessante lembrar que Machado de Assis foi o primeiro a fazer esse rompimento radical. Não há nem região, nem natureza na sua obra.

10 - Numa entrevista, você disse recentemente que hoje temos mais romancistas-prosadores, e menos romancistas-poetas. Poderia explicar um pouco essas duas categorias?

Não me lembro bem dessa entrevista, do seu contexto. Basicamente, o romancista-poeta é aquele movido pela centralização da linguagem poética, o narrador “encantado”. Guimarães Rosa, por exemplo. Já o prosador em estado puro está muito mais atento à linguagem alheia que à sua própria voz, digamos assim. Bem, nos limites dessa co nversa, diria que o tema seria um bom assunto para uma animada mesa de bar... É uma distinção difícil e complicada.

11 - Conte-nos um pouco sobre o novo livro que está escrevendo, uma história de amor que pretende lançar até o final de 2009. De algum modo pesa a responsabilidade de “ter” fazer outro livro de grande sucesso?

Não. “O filho eterno” é o meu 12° romance; não sou portanto um no vato. Já estou bastante calejado. Mas estão me falando tanto disso que começo a ficar preocupado...

12- O que existe ainda do rebelde, do marinheiro e do relojoeiro que você um dia foi?

Essa é uma pergunta cruel! Minha tentação é dizer presunçosamente que aos 56 continuo aquele mesmo jovem rebelde e sonhador, etc. Na verdade, não existe mais nada dele, naqueles termos, felizmente. Acho que hoje sou uma pessoa mais tranqüila. E o que importa publicamente é só o livro que escrevemos. E nisso não tenho nenhum dúvida: sou um escritor muito melhor hoje, do que fui aos 20 anos.


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