|
Cristovão Tezza
O eterno romancista
Papangu - Revista do Rio Grande do Norte.
Março de 2008 - ano 5, nº 50
Por LILIA SOUZA e CLAUDER ARCANJO
"Escrever é em grande parte responder à solidão"
Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952. Em 1959, a morte do pai, "num acidente de lambreta (a novidade da época)". Dois anos depois, a mudança da família para Curitiba, Paraná, "o choque da cidade maior, da vida em apartamento, de um período de dificuldades, do corte súbito com o passado". Lá, fez teatro. Em 1971, depois de concluir o ensino médio, entrou para a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (RJ), desligando-se em agosto do mesmo ano.
Em 1974, uma passagem pela Europa. Estudo e aprendizado, leitura da vida. "O escritor começou a nascer seriamente naquele ano". Em 1977, o casamento. Em 1979, deu-se a sua estréia literária com o romance Gran Circo das Américas. Seguiram-se vários, constante e zelosa oficina literária. Em 1988, a publicação de Trapo dá ao seuj nome a merecida visibilidade nacional.
Outros vieram: Aventuras provisórias (Prêmio Petrobrás de Literatura), Juliano Pavollini, A suavidade do vento, O fantasma da infância e Uma noite em Curitiba. Em 1998, o romance Breve espaço entre cor e sombra foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional (melhor romance do ano).
O fotógrafo (2004) recebe o prêmio da Academia Brasileira de Letras de Melhor Romance do Ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra.
Sua tese de doutorado, Entre a prosa e a poesia - Bakhtin e o formalismo russo, foii publicada pela Editora Rocco. Também na área acadêmica, Cristovão Tezza escreveu dois livros didáticos em parceria com Carlos Alberto Faraco (Prática de texto e Oficina de texto), e, nos últimos anos, tem publicado resenhas e textos críticos.
Em 2006, o contrato com a Editora Record, que começou a relançar a sua obra. Em julho de 2007, a publicação do novo romance, O filho eterno, sucesso de público e de crítica. Nele, numa espécie de confissão corajosamente autobiográfica, o drama do filho Felipe. "Eu sou escritor. O resto é sobrevivência", Tezza faz questão de ressaltar.
A poeta Lilia Souza (PR) e eu conversamos com Tezza acerca de seu ofício de homem de letras. Em nosso bate-papo literário, uma constatação: o mestre Cristovão Tezza é daqueles escritores eternamente romancistas. Dos grandes, é claro.
Confira, então, caro leitor, por que a prosa romanesca é, enraizadamente, o desaejo e a linguagem desse curitibano de Lages.
Clauder Arcanjo — Cristovão Tezza, nascido em Lages, Santa Catarina, fale-nos um pouco da sua infância, dado que, no mais das vezes, “o passado pode dizer quem somos”. Por que a mudança para Curitiba, onde atualmente reside?
Cristovão Tezza — Até os sete anos de idade, vivi uma infância comum e saudável de cidade pequena, em Lages. Com a morte do meu pai, em 1959, num acidente de lambreta (a novidade da época), minha vida mudou drasticamente. Minha mãe vendeu a casa e nos levou (a mim e meus três irmãos – sou o caçula) para Curitiba, que oferecia condições melhores de vida e de estudo. Foi uma ótima opção, mas senti o choque da cidade maior, da vida em apartamento, de um período de dificuldades, do corte súbito com o passado.
Lilia Souza — Você tem uma respeitável produção nos gêneros romance, crônica, conto, teatro e crítica literária. Quando e em que condições ocorreu a sua estréia literária?
Cristovão Tezza — Sou basicamente um romancista e um crítico literário eventual. Escrevi alguns contos – estou voltando a eles agora –, e algumas poucas crônicas (um gênero que acho difícil, e que me atrai). E minha produção de teatro é datada, de um período de aprendizagem. Minha estréia como autor publicado foi o romance “Gran Circo das Américas”, em 1979, pela editora Brasiliense, numa coleção de literatura juvenil. E logo em seguida (1980) saiu “A cidade inventada”, lançado por uma cooperativa de escritores (CooEditora). É uma coletânea dos contos que eu vinha escrevendo e reescrevendo desde o início dos anos 70, e que foi de fato minha “oficina” de escritor.
Clauder Arcanjo — Quem o influenciou a entrar no mundo da literatura? Quais as primeiras leituras?
Cristovão Tezza — Minhas primeiras leituras foram fruto da solidão curitibana e da vida de apartamento. Lembro que eu ficava folheando os livros da biblioteca do meu pai, entre eles uma coleção com antologias de poetas brasileiros românticos. Eu decorava versos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella, Gonçalves Dias. Mas uma memória marcante foi a leitura de “A chave do tamanho”, de Monteiro Lobato. Com esse livro, eu me tornei verdadeiramente um leitor obsessivo. Freqüentava diariamente a Biblioteca Pública do Paraná e lia caoticamente. Depois pedia à minha irmã tirar livros do setor adulto, acessível apenas aos maiores de 16 anos. Desde cedo trabalhei num escritório de advocacia, meio-expediente, como datilógrafo, mas o serviço era pouco e sobrava tempo para leitura. Nessa época comecei a escrever, por conta própria.
Lilia Souza — Tezza, quais os romances que o marcaram de modo especial?
Cristovão Tezza — Começando por Monteiro Lobato, os encantamentos prosseguiram. Lembro que li quase todo o Júlio Verne que havia na Biblioteca Pública, umas edições portuguesas. E subitamente entrei na literatura adulta, também sem ordem nem método. Erico Verissimo, Joseph Conrad, Dostoiévski, Jorge Amado, Graciliano Ramos. Lembro também da antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, que eu sabia quase que inteira de memória. Lembro de “Cem anos de solidão” e de “A montanha mágica”. Li o teatro de Ibsen, daquela coleção maravilhosa da antiga editora Globo. Freqüentava agora diariamente a biblioteca do Colégio Estadual do Paraná, que era muito boa. Por incrível que pareça, lia os diálogos de Platão no segundo grau. Lembro que participei de um julgamento simulado de Sócrates, sob a coordenação do professor Oswaldo Arns, no salão nobre do colégio. De fato, tive oportunidades ótimas.
Clauder Arcanjo — Cristovão Tezza, em dezembro de 1974, você foi a Portugal estudar Letras na Universidade de Coimbra, mas como a universidade estava fechada pela Revolução dos Cravos, passou um ano “perambulando pela Europa”. Esse período deixou marcas na sua prosa?
Cristovão Tezza — Esse período deixou marcas na minha vida. Foi uma experiência extraordinária. Ver o Brasil de longe, sentir a Europa, me virar para sobreviver, e estudar muito. E, de fato, o escritor começou a nascer seriamente naquele ano.
Lilia Souza — Em janeiro de 1977, o seu casamento. Em 1984, o retorno a Santa Catarina, Florianópolis, onde trabalha como professor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 1986, novamente radica-se em Curitiba, agora dando aulas na UFPR, onde leciona desde então. Ensinar e escrever. Há preferência por uma das atividades? Ou elas se complementam em Cristovão Tezza?
Cristovão Tezza — Eu sou um escritor. O resto é sobrevivência. Felizmente, achei um trabalho (depois de muito tempo – comecei a dar aulas só aos 34 anos...) que se acertou comigo. Gosto de dar aulas; é uma atividade que não invade a minha vida de escritor, não interfere nela. E aprendi a administrar bem o tempo, que é sempre muito curto.
Clauder Arcanjo — Na universidade você atua na área de lingüística. Pelo seu envolvimento com o universo literário como escritor, a área de literatura na docência não lhe seria mais atrativa?
Cristovão Tezza — Eu acho que não. Trabalhar didaticamente com a linguagem, em sentido amplo, me permite uma margem enorme para a literatura. Isto é, deixo meu trabalho criativo no “quarto escuro”. Dar aulas de literatura é muito difícil; exigiria um tipo de envolvimento com a ficção que fatalmente afetaria minha vida de escritor. Não digo que isso não seja possível – é só uma escolha pessoal. Lembro que uma única vez substituí um professor de literatura por uma semana e minhas aulas foram um desastre.
Lilia Souza — Com o tempo dividido entre a escrita e a sala de aula, quando sobra algum tempo para ler outros autores? Quais os preferidos?
Cristovão Tezza — Estou permanentemente lendo. E não tenho exatamente preferências fixas. Agora estou relendo muita coisa, por exemplo, da literatura russa. E, é claro, gosto de descobrir nomes novos. Há pouco tempo, por exemplo, descobri Agotha Kristoff, uma autora húngara de expressão francesa, muito boa. Gosto cada vez mais do sul-africano J. M. Coetzee. No Brasil, releio sempre a poesia de Paulo Henriques Britto, que me agrada muito.
Clauder Arcanjo — Por que você escreve?
Cristovão Tezza — Essa pergunta – que sempre se repete, é um exercício sádico de tortura dos entrevistadores (rs...) – não tem resposta. Se eu soubesse, qual seria a graça?
Lilia Souza — Tezza, há algo específico que você busque em cada obra que escreve?
Cristovão Tezza — Não. Escrever é um ato que é parte integrante da vida. É uma viagem meio às cegas (mas atenção com a metáfora: avançamos no escuro munidos de um aparelho GPS bastante preciso...) que vai tentar organizar tudo aquilo que, deixado à solta (como a chamada “vida real”), não tem sentido nenhum.
Clauder Arcanjo — Você tem uma rotina de trabalho, um método de criação literária?
Cristovão Tezza — Rotina de trabalho, sim. Quando começo um romance, preciso saber que vou ter algumas horas por dia (duas a três, não muito), todos os dias, de segunda a sexta (sou um funcionário de mim mesmo), para tocar meu trabalho. Escrevo na verdade pouco por dia – o que faz a diferença é a regularidade. Uma coisa meio braçal, mas o ato de escrever me inspira. Método de criação literária não tenho. Tenho intuições, algumas imagens difusas que pouco a pouco vão ganhando uma linguagem. Quando consigo criar na cabeça uma primeira sentença, sinto que posso começar o livro. Lembro de frases que deram partida a alguns livros meus (embora na forma final quase sempre eles comecem de forma diferente): “Jamais consegui viver sem um mestre” (Breve espaço entre cor e sombra); “Eu tinha tudo para dar certo, exceto a família” (Juliano Pavollini); “A solidão é a forma discreta do ressentimento” (O fotógrafo); “Escrevo este livro por dinheiro” (Uma noite em Curitiba).
Lilia Souza — Tezza, no nascimento de uma obra, prevalece a inspiração ou a elaboração a partir de um plano prévio?
Cristovão Tezza — Complementando a resposta anterior, além dessa “primeira frase” (que na verdade é a constituição de um olhar sobre o mundo, que define muito do personagem), preciso também de um “final”. Isso é engraçado: eu preciso, ao começar, ter em mente um final para a narrativa. Jamais meus livros terminaram da forma que imaginei no início, mas sem esse fantasma do fim na cabeça eu simplesmente não consigo começar. É como uma bóia de segurança; se eu me perder, tenho aquele final na cabeça. Enfim, é um plano prévio, mas muito frágil – apenas um começo e um fim e um vago esquema que sequer ponho no papel.
Clauder Arcanjo — Referências físicas e geográficas de Curitiba estão muito presentes em vários de seus escritos. Se fosse outra a cidade em que vivesse, acredita que esse outro lugar teria tanta influência em sua obra, ou vê em Curitiba características específicas que provoquem esse peso?
Cristovão Tezza — Minha literatura é profundamente visual; costumo dizer que só escrevo o que vejo. Assim, fatalmente o espaço em que vivo acaba entrando no meu texto. Curitiba é uma cidade bastante especial, é verdade, e hoje me sinto enraizadamente curitibano. Na verdade, não é apenas uma questão geográfica; é também mental. Há um modo curitibano de ver o mundo que só quem vive aqui algum tempo percebe. Uma atmosfera, difícil de definir. Mas lembro que outra cidade também entrou nos meus livros, pelo tempo em que vivi lá, nos anos 80: Florianópolis aparece em “O fantasma da infância” e “Aventuras provisórias”. E inspirou de certo modo a ilha de “Ensaio da Paixão”.
Lilia Souza — Em uma entrevista, você afirmou que, quando começou a escrever, “o escritor era antes de tudo um contestador”. Em sua opinião, esse elemento de contestação acompanha o escritor de hoje? Acompanha o romancista Cristovão Tezza?
Cristovão Tezza — Num sentido mais intimista, sim; não é mais uma contestação política com o peso e a medida que isso tinha nos anos de minha formação, final dos anos 60, anos 70, durante a ditadura militar, quando você se via diante de encruzilhadas éticas bastante exigentes e duras. Num jovem, a percepção de um Estado criminoso, que é o de toda ditadura, deixa marcas. Felizmente, hoje, vivemos numa sociedade aberta, e nesse aspecto o Brasil mudou para muito melhor. Mas em boa medida o ato de escrever tem sempre essa alma existencialmente contestatória, ou não faria sentido.
Clauder Arcanjo — E a poesia, Cristovão Tezza? Por que a sua produção poética ficou longe, até agora, do seu público leitor?
Cristovão Tezza — Porque ela não existe; decididamente, não sou um poeta, e foi uma felicidade para todo mundo eu jamais insistir nos meus versos de adolescente.
Lilia Souza — Sua ficção tende fortemente para um intimismo confessional. É complicado se confessar nas páginas de um romance?
Cristovão Tezza — Essa é uma questão muito interessante, a fronteira entre a confissão pessoal e a ficção. Sempre escrevo ficção, mesmo quando me confesso. Isto é, o material biográfico que eventualmente entra nos meus livros – e isso só aconteceu de fato com “O filho eterno” – é apenas “material”, inteiro retrabalhado por um narrador, que não sou eu. É uma diferença sutil, mas substancial.
Clauder Arcanjo — Tezza, você p ode nos apontar aspectos que confiram permanência a uma obra literária?
Cristovão Tezza — Não sei. É um mistério que só o tempo domina. Qualquer coisa que eu diga a respeito vai se esfarelar no lugar-comum. Por exemplo: permanece o que continua fazendo sentido, mesmo quando as circunstâncias da criação não existem mais.
Lilia Souza — Com o seu romance Trapo, o reconhecimento nacional. Muitos viram nele o “estilo rude e direto da geração beat”; outros o “contraste entre o mundo novo e a velha rotina de vida”. Há em Trapo: o jovem poeta marginal, amante do novo, e o professor Manuel, aposentado e cativo da rotina; eles representam uma espécie de “duplo ego” de Tezza?
Cristovão Tezza — Acho que sim. Mesmo sem saber, eu estava me colocando em dois lados da minha vida. O marginal adolescente e o professor centrado. O professor, parece, acabou vencendo, mas sinto que tenho um “Trapo” secreto reprimido no fundo da alma (risos...).
Clauder Arcanjo — Nos anos seguintes, a publicação dos romances Aventuras provisórias (Prêmio Petrobrás de Literatura) , Juliano Pavollini, A suavidade do vento, O fantasma da infância e Uma noite em Curitiba. Por que a predileção pelo romance?
Cristovão Tezza — O escritor não escolhe a sua linguagem. Desde muito cedo percebi que a prosa romanesca era o meu desejo e a minha linguagem. Não dá para dizer a razão da preferência, quando na verdade não se tratou de “escolha”. Súbito o romance foi tomando conta da minha vida.
Lilia Souza — Breve Espaço entre Cor e Sombra foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Muitos o consideraram o melhor romance de 1998. Na sua avaliação, que posição ocupa esse livro no conjunto de sua obra?
Cristovão Tezza — É um livro estranho; tenho vontade de relê-lo hoje, dez anos depois. Foi um sucesso de crítica mas não de público. Digamos que foi um momento de maturidade com relação à produção anterior, ao grupo de romances que se seguiram ao “Trapo”, como “O fantasma da infância” e “Uma noite em Curitiba”. “Breve espaço...” foi um salto meio cego em outra direção. É um livro misterioso para mim também, e por isso gosto muito dele.
Clauder Arcanjo — Em Breve espaço entre cor e sombra, ressalta um grande referencial do universo das artes plásticas. Que relação tem o escritor Tezza com tal mundo?
Cristovão Tezza — Sempre gostei de pintura, convivi com pintores, vi muito museu na vida, estudei artes plásticas. Em “Breve espaço...” quis tematizar esse mundo. Mas nunca fui pintor; no máximo, fiz algumas cópias de juventude. O tema continua me interessando muito e talvez ainda volte a ele.
Lilia Souza — Em alguns de seus livros, principalmente em O fotógrafo, a solidão se instaura fortemente nas personagens. Você acredita que essa é uma característica do homem contemporâneo?
Cristovão Tezza — Sim, de certa forma a civilização urbana nos tornou a todos órfãos de uma comunidade familiar primordial; ficamos subitamente sozinhos. Digamos que esse é o “filé mignon” da literatura moderna. Escrever é em grande parte responder à solidão.
Clauder Arcanjo — No romance O fotógrafo, o olhar fotográfico da personagem principal dita o olhar do narrador. Em que medida o olhar do escritor influencia esse olhar fotográfico?
Cristovão Tezza — O olhar é sempre uma atividade “editada”; escolhemos o que vemos. Isso vale para a literatura e para a fotografia, ainda que os meios sejam substancialmente diferentes. O olhar do livro é o tempo todo “literário”, ainda que simule técnicas fotográficas.
Lilia Souza — O romance O fotógrafo tem uma construção bastante interessante sob vários aspectos, como: os pontos de ligação entre as personagens (ainda que à vezes sob tênue fio); o narrador com seu olhar fotográfico, que de repente muda a perspectiva; trechos recontados sob novo ângulo. Foi muito trabalhoso montar tal estrutura? Você precisou recorrer a alguma técnica específica?
Cristovão Tezza — Costumo dizer que a técnica é importante quando não nos lembramos mais dela. Sou um escritor bastante intuitivo; assim, a composição de “O fotógrafo” foi fluindo naturalmente, embora, num segundo momento (quando eu já tinha um olhar do conjunto), muita coisa tenha mudado de lugar. Sobre a mudança de perspectiva dentro do mesmo capítulo ou até da mesma frase foi um recurso que usei objetivamente, e que é uma das marcas estilísticas do romance.
Clauder Arcanjo — Seu último romance, O filho eterno, consagrou-o definitivamente como um dos maiores narradores da atualidade. Nele, você aborda corajosamente a questão de seu filho Felipe, portador da Síndrome de Down. “O bom escritor não pode ter medo”, você declarou; no entanto, qual o maior receio de um escritor em ser tão “brutalmente autobiográfico”?
Cristovão Tezza — Ao terminar o livro e relê-lo, confesso que suei frio; jamais havia me exposto daquela forma; o material biográfico me escancarava para o mundo. Mas o terror maior era que a atração do tema apagasse o seu sentido literário e romanesco, porque o livro é um romance, não uma biografia. Mas eu estava enganado – a reação da crítica foi totalmente literária, por assim dizer. E, como eu disse, um escritor não pode de fato ter medo de nenhum tema. Seria terrível se eu passasse minha vida sem em algum momento escrever sobre essa experiência.
Lilia Souza — Dentre os seus romances, qual o seu preferido?
Cristovão Tezza — Essa é outra das perguntas que os entrevistadores usam para torturar escritores (risos...). Tenho uma relação boa com todos eles. Acho que cada um deles tem o seu campo exclusivo de significação, e assim eles vão (pelo menos na minha cabeça) se completando.
Clauder Arcanjo — Sua tese de doutorado (USP), Entre a prosa e a poesia — Bakhtin e o formalismo russo, foi publicada pela editora Rocco. Os ensinamentos do mestre Bakhtin ainda permanecem atuais ?
Cristovão Tezza — Sem dúvida. É preciso ler Bakhtin não como um mestre cheio de ensinamentos a ser aplicados aqui e ali, como normalmente a Universidade faz com os grandes nomes. Ele é um pensador da linguagem e da literatura que abriu perspectivas novas, bastante originais, para pensar a obra literária. Na minha atividade crítica, as percepções baktinianas sempre me deram um bom eixo de referência.
Lilia Souza — E com relação aos novos projetos? Algum novo livro?
Cristovão Tezza — Tenho um romance em mente do qual escrevi apenas uma página. Sei que será um livro que vai me envolver completamente. Mas ainda não é o momento de escrevê-lo; não me sinto ainda maduro para ele – vou esperar um pouco. Este ano tenho escrito contos, um gênero que pratiquei muito pouco. Talvez eles se transformem em livro. O curioso é que o mesmo personagem percorre todos os contos, o que parece mais idéia de romancista (risos...). O problema é que o tempo anda muito curto. Ou eu que estou mais velho e mais lento...
Clauder Arcanjo — Você teria uma solução para a escola formar bons leitores?
Cristovão Tezza — O que todo mundo já sabe: boas bibliotecas, boas escolas, bons professores, muito estímulo, bom ambiente.
Lilia Souza — Que autores e obras você julga de leitura quase obrigatória para a formação dos que se dispõem a ingressar no mundo da literatura?
Cristovão Tezza — A literatura é um mundo vasto demais. Sinceramente, não sei. São referências que vamos descobrindo sozinhos. Lembre-se de que a literatura é uma atividade bastante solitária. Vamos lendo, conversando, intuindo, ouvindo, escrevendo, discutindo, e de repente a gente descobre a própria linguagem e as próprias preferências. Mas há um fato inescapável: a literatura não é uma arte ingênua; quem escreve deve ler muito e ter uma boa noção de história literária.
Clauder Arcanjo — Se lhe fosse dado tempo de reler apenas um livro, qual seria?
Cristovão Tezza — Essa é mais uma do saco de maldades do sindicato dos entrevistadores para derrubar escritor (risos...). Talvez uma antologia do Drummond, ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou Os Irmãos Karamázov, ou O Estrangeiro, ou... isso não tem fim.
Lilia Souza — Cristovão Tezza, no ensaio “O território do escritor”, você anuncia: “ O desejo da comunhão universal será sempre, também, matéria-prima do escritor, porque a arte, ao contrário dos homens, ou é generosa ou não existe...”. O nosso muito obrigado por esta generosa entrevista. Algum ‘conselho’ para os que pensam em entrar no território das letras?
Cristovão Tezza — Ler muito, sempre. E obrigado a vocês pela entrevista.
voltar
|