REVISTA VOI
NOVEMBRO DE 2004

O retrato de Curitiba

Juliana Sartori e Marcelo Lancia

Entre uma estante abarrotada de livros muito bem organizados, um relógio cuco dividindo as paredes do apartamento com algumas telas e muito bom humor, o escritor e professor Cristovão Tezza recebe a Revista VOI para falar sobre o lançamento do seu novo livro, O Fotógrafo, pela editora Rocco, que acontece no final de novembro, durante a Semana de Letras da Universidade Federal do Paraná.

Tezza é um dos escritores mais atuantes do país, além de ser conhecido por retratar Curitiba e a população como poucos. Com sua literatura, levou a capital paranaense para o resto do Brasil, ao consagrar-se com suas obras ficcionais que mostram o jeito peculiar de ser curitibano. Para Tezza, a fria e solitária Curitiba nada mais é do que o palco perfeito onde ele dirige homens e mulheres comuns, porém cheios de história para contar. Mas confessa também: "Sou um legítimo representante dos meus próprios personagens."

Nascido em Lages (SC) em 1952, mudou-se para Curitiba com apenas dez anos com a família. Na adolescência, Tezza resolve experimentar o mundo. Escreve peças de teatro, vive em uma comunidade teatral em Antonina coordenada por Wilson Rio Apa, trabalha como relojoeiro, além de viajar pela Europa com uma mochila nas costas, onde chegou a lavar pratos. Entra na universidade já com 25 anos e só então é que inicia sua vida de universitário e observador curioso da sociedade curitibana.

Depois de atravessar tantas fases na vida, Cristovão agora se considera mais maduro e observador, mas não deixa o passado de lado. Pelo contrário, diz que suas experiências continuam ecoando em tudo o que escreve.

O novo livro, O Fotógrafo, procura ressaltar o quê?

O Fotógrafo conta a história de um dia na vida de um fotógrafo, que foi contratado para fotografar secretamente uma jovem e ele está num dia de crise com a mulher. São cinco pontos de vista daquele dia: o dele, o da mulher dele, um professor, a mulher do professor - que é a analista da jovem que está sendo fotografada - e a jovem. Tudo se passa num dia de 2002, em meio às eleições presidenciais. E se passa tudo aqui por perto, na rua Dr. Faivre, na Comendador Macedo, Praça Santos Andrade e Cine Luz.

Breve Espaço entre Cor e Sombra foi seu último livro lançado em 1998. Como foi voltar a escrever depois de um tempo afastado da ficção?

Nesse tempo fui cuidar da minha tese que entreguei em 2003. O Fotógrafo fiquei escrevendo por dois anos e meio. Foi minha volta à ficção, que é um outro registro mental. A teoria tem um tipo de exigência, uma maneira completamente diferente de pensar. Estou numa fase muito boa. Escrever romance é uma espécie de substituição da vida real que me faz muito bem. Embora seja uma atividade de alto risco, pois na literatura não se tem certeza de nada. Uma tese você sabe se está boa, consistente, se as idéias se fecham. O discurso teórico é mais palpável. Na literatura você não sabe em que buraco está se metendo e nem como você vai sair de lá. Mas quando você está nesse buraco é ótimo!

É verdade que escreve tudo à mão? Por que utiliza esse processo?

Tudo não. Meu material didático e teórico faço direto no computador. A ficção sim, faço toda à mão, desde o primeiro livro. Todo dia escrevo um pouco. Ficar com o computador ligado na frente, pra mim é um atraso. Essas coisas que escrevo aqui no papel, o computador não me permite. Aqui você faz umas alternativas, consertos e pra mim é importante voltar e fazer adendos, notas. Escrevo por dia cerca de meia página, o que é um bom dia. Fico mais ou menos das 14h às 18h viajando... Escrever à mão é muito mais funcional pra mim. Por isso demoro, em média, uns dois anos, para escrever um livro. O computador dá uma noção enganosa de que já está tudo pronto. A caneta não, ela freia um pouco a velocidade.

Como o professor e o teórico e até o relojoeiro influenciam na obra do escritor Cristóvão Tezza?

Tive diferentes fases na vida. Fui acompanhando todos os tempos de acordo com a minha idade, com cursos diferentes. Tive uma época em que não tinha interesse em universidade, quis ter uma vida alternativa. Mas é claro que isso deixa um lastro hoje no que escrevo. Depois que entrei na universidade toda minha vida tomou outro rumo, mais certinho. Virei professor. Mas é claro que a literatura vive também disso. É o peso de uma vida inteira. Estou escrevendo um romance e ouvindo ecos de coisas que passei com meus 15 ou 20 anos. É como um acerto de contas.

A crítica costuma vincular seu nome com o do escritor Dalton Trevisan como os maiores retratistas de Curitiba. Vocêse considera um retratista da cidade?

Nunca pensei nisso. A minha literatura tem um registro realista. Na minha primeira fase, com A Cidade Inventada e O Terrorista Lírico, não havia um espaço geográfico preciso. Com o Trapo, descobri a cidade como um espaço romanesco. Consegui equilibrar a minha visão de mundo, a maneira como a minha literatura ia se fazer, com um espaço geográfico preciso. Isso pra mim é importante. Sou um escritor de traço realista. Nesse sentido, Curitiba ficou um palco perfeito pra isso. Mas não tenho nenhuma preocupação documental. Minha Curitiba é mental. Tenho uma maneira de ver o mundo muito curitibana. Aqui é um exemplo de espaço urbano muito especial.

Mas o que é o espaço urbano especial e a vida peculiar do curitibano?

Curitiba é uma cidade que não tem carnaval, o que acho ótimo (risos)! Aí já diferencia bastante de todo o resto do Brasil. É uma cidade extremamente organizada. As pessoas têm espírito de organização muito germânico. É também uma cidade bastante solitária. As pessoas são mais frias e as relações são muito mais profundas. Aqui se tem poucos amigos, mas que são para a vida inteira. É um tipo diferente de cidade e que literariamente acho ótimo. Como não se tem nada pra fazer, vou escrever meus livros. É uma cidade que chama pra dentro de casa.

Você se considera curitibano?

Acho que sou mais curitibano do que aqueles que nasceram aqui. Porque sou capaz de olhar a cidade um pouco de fora. As pessoas que são daqui talvez não tenham esse distanciamento que é preciso para se conhecer qualquer coisa. Há mais de 40 anos estou em Curitiba e fiquei uns seis ou sete anos vivendo em outras cidades. E esse estranhamento inicial é uma coisa que permanece até hoje. É uma coisa boa.

Qual das suas obras melhor descreve Curitiba e o curitibano?

 Tem o Trapo. Tem o Juliano Pavollini na Curitiba dos anos 60. Tem também o Uma Noite em Curitiba, que fala da classe média cu­ritibana. Além do Breve Espaço entre Cor e Sombra. que fala de uma Curitiba mais cosmopolita. Trapo teve uma grande relevância na minha obra, primeiro porque foi o primeiro livro que me lançou nacionalmente. Virei escritor brasileiro e deixei de ser só um escritor curitibano. É o livro mais popular, com mais de sete edições. Até hoje, tem novos leitores e as novas gerações lêem e se identificam. mesmo sendo uma figura típica dos anos 80.

Como é o Cristovão Tezza dentro de casa? O Cristovão marido e pai?

Sou um caseiro total! Acho até que preciso sair mais de casa... Bom, sou extremamente organizado. Tenho uma vida caseira bem estável. Sou um legítimo representante dos meus próprios personagens. A classe média urbana brasileira curitibana.

O que faz nas horas de lazer?

Gosto muito de viajar. A cada ano ou dois. Mas viajo menos do que gostaria. Por ser professor. acabo ficando preso o ano todo com as aulas. Vou bastante ao litoral. Gosto de Florianópolis (SC). Também freqüento o litoral do Paraná, ali em Gaivotas. Mas não vou muito à praia. Pois dizem que intelectual não vai para a praia. Intelectual bebe (risos). Gosto mesmo é de ficar fazendo almoço e bebendo cerveja. É para mim uma maneira de descansar.

Na juventude. já teve experiências em vários lugares do Brasil e do mundo. foi até mochileiro na Europa. Por que resolveu se fixar em Curitiba?

É verdade. Tirei esse brevê de mochileiro e também participei de uma comunidade de teatro do Wilson Rio Apa, em Antonina nos anos 70. Em Curitiba acho que fiquei um pouco por falta de opção mesmo. Tinha toda minha ligação aqui. Antes de me fixar, passei um tempo no Acre, mas por uma questão de sobrevivência mesmo. Mas já estava casado. Casei com minha mulher aqui em Curitiba, mas a conheci em Antonina. Em 77, quando estava no Acre, entrei na universidade e ali começou toda uma fase nova na minha vida. Tomou outro rumo, que foi o de professor. Na verdade, essa era a única profissão que achei que combinava com meu projeto de escrever. Tanto é que escrevi todos esses livros. Em Curitiba acabei ficando e fui gostando. Curitiba é uma cidade resistente. Você leva tempo pra gostar daqui, às vezes décadas. Ela não é uma cidade que se entrega fácil. Mas hoje não me vejo em outro lugar. Às vezes perguntam: "Se você ganhasse na loteria. onde gostaria de morar?". Acho que ficaria em Curitiba mesmo. Ela conseguiu. Ela ganhou a batalha.


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