Revista Cartaz - Cultura & Arte
Edição: dezembro 2003

Cristovão Tezza - Movimento pendular

Escritor curitibano, nascido em Santa Catarina, prepara novo romance, após lançar ensaio teórico sobre idéias de Bakhtin

Patricia Smaniotto
Pesquisa: Marta Xavier

A narrativa literária de Cristovão Tezza parece, a cada livro, buscar uma precisa intersecção entre tempo e espaço, como se quisesse alcançar o ponto exato em que o mo(vi)mento se transforma em eternidade. A precisão contida nesse ato é a do pêndulo do relógio que, em certo ponto de sua trajetória, aparentemente se imobiliza num tempo fora do tempo e num espaço fora do espaço - e, no entanto, seu movimento continua agindo no lado invisível da realidade. Talvez seja essa a arte - a do artífice da linguagem que se especializa nas engrenagens invisíveis da existência humana, cada vez menos apreensíveis a olho nu, na impossível contemplação da modernidade - que esteja se tornando visível nos romances que Cristovão Tezza escreve, com a mesma paciência e compenetração de um relojoeiro de antigamente.

Em seu livro mais reconhecido, Breve espaço entre cor e sombra (ganhador do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti de 1998), a ação dá-se num intervalo de três dias e tem como cenário Curitiba - espaço geográfico, humano e subjetivo que vem sendo o locus de seus romances desde Trapo (1988). Porém, no livro que atualmente escreve, com o título provisório de O fotógrafo, Curitiba miniaturiza-se, talvez numa tentativa paradoxal de expandir o universo interno das personagens humanas. Da mesma forma, o espaço de tempo encolhe, situando-se num único dia da vida do protagonista. "Quando percebi que poderia localizar a história de Trapo em Curitiba, uma cidade real, minha literatura finalmente ancorou na realidade concreta. Mas, neste último livro, o cenário delimitou-se ainda mais, indo da Praça do Expedicionário à Praça Zacharias. Sinto que meus livros vêm se tornando cada vez mais reflexivos. Porém, é uma reflexividade concreta, detonada pelo que vejo. A ação continua a ser uma referência necessária, pois não sei construir do nada: minha literatura tem um registro realista", enfatiza Tezza.

Não parece ser mero acaso, portanto, que a fotografia (ela mesma um suporte material que fixa uma imagem do real já abstraído no tempo e no espaço) esteja em primeiro plano no novo romance - o que leva a pensar num hipotético paralelismo entre o enquadramento da imagem congelada da fotografia e o enquadramento espaço-temporal delimitado da sua história. Por sua vez, a câmara escura - fundamental na trama, segundo Tezza - remete à aparente imobilidade do pêndulo no ponto de equilíbrio, no qual o mo(vi)mento se faz imperceptível, subterrâneo e obscuro. Do mesmo modo, evoca o segredo - o mesmo segredo em que o livro ainda habita enquanto não é concluído pelo autor, permanecendo protegido dos olhares antes de poder se revelar plenamente.

O fotógrafo deverá ser lançado entre maio e junho de 2004 pela Rocco e marcará o retorno do escritor à atividade literária, interrompida por quatro anos para se dedicar à teoria literária durante o doutorado na USP, que resultou no lançamento, também pela Rocco, do ensaio Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo, em 2003. Também nesse trabalho, o pêndulo fez-se notar, tanto no seu fazer quanto no seu tema. "Escrever um romance me dá muito prazer, mas não sou capaz de escrever ficção e teoria ao mesmo tempo. O rigor científico próprio da tese esgota muito mais que a produção literária", compara Tezza. O ensaio - que discute as divergências socioideológicas entre prosa e poesia, a partir das idéias do teórico russo Mikhail Bakhtin - tem obtido excelentes críticas, revelando nova faceta do trabalho de Tezza com a linguagem. "O romancista ficou com inveja do teórico", brinca ele.

As raízes e o mundo

O mesmo movimento pendular manifesta-se na vida de Cristovão Tezza. No cotidiano profissional, o escritor (ficcional ou teórico) - e, em paralelo, o crítico literário - diariamente dá espaço e tempo ao professor do Departamento de Lingüística da UFPR, que também se desdobra em oficinas de texto por todo o País. Esses mo(vi)mentos, no entanto, não se misturam - são como os lados opostos da trajetória do pêndulo. "A lingüística abriu minha cabeça para as questões da linguagem, mas não teve maior influência sobre a literatura, que bem antes da faculdade já apresentava suas características principais", esclarece Tezza.

Na trajetória pessoal, o impulso - compulsório ou espontâneo - para ir e vir começou na infância. Aos oito anos, após a morte do pai, Tezza teve de deixar a vida ao ar livre da serrana Lages (SC) e instalar-se na fechada urbanidade de Curitiba, onde o padrão de vida familiar caiu e o isolamento imposto pela cidade o empurrou para o refúgio das bibliotecas e dos livros. Foi quando o projeto de ser escritor começou a tomar forma, afirmando-se por volta dos 13 anos, época em que Tezza iniciou sua prática literária, vindo a escrever poemas, contos e três romances considerados ruins pelo próprio autor, que os destruiu.

Na juventude, Tezza oscilou entre o apelo do mundo e o do amor, entre a errância e o enraizamento. Aos 22 anos, sonhava com as grandes viagens: entrou para a Marinha Mercante e, depois de desistir dela, foi como mochileiro para a Europa, onde morou em Portugal e na Alemanha. Na volta, conheceu Beth, sua futura mulher, e foi viver na histórica Antonina, no litoral do Paraná, onde entrou para o grupo teatral de Wilson Rio Apa, no qual atuou como ator e se aventurou na dramaturgia. Por incentivo de Rio Apa, Tezza dedicou-se às artes plásticas, atividade que mais tarde abandonou, mas não sem antes revelar-se um copista talentoso de telas de Matisse e Modigliani, dentre outros.

Para sobreviver em Antonina, Tezza - que havia feito um curso de relojoaria - abriu uma oficina de consertos, colocando para funcionar todos os relógios do lugar. O final da "carreira", já anunciado pela total falta de relógios para consertar, veio com a chegada da tecnologia japonesa ao País. Logo Tezza partiu para o Acre, já casado com Beth, e lá ingressou no curso de Letras em 1977. Um ano depois, voltou a Curitiba, onde concluiu a graduação na UFPR em 1981. No ano seguinte, terminou de escrever Trapo, primeiro sucesso da sua carreira profissional como escritor.

Estrangeiro na cidade

Os livros de Cristovão Tezza costumam ser associados ao universo imaginário da gélida e conservadora Curitiba, mas ele próprio diz-se um estrangeiro numa cidade de estrangeiros - que, paradoxalmente, considera seu lugar no mundo. Talvez porque seu sentimento de estrangeiridade seja aquele conforto próprio do pêndulo que agora está onde deve estar, ainda que esse segundo de imobilidade no espaço já prenuncie o inevitável deslocamento para o lado de lá da sua elíptica.

Assim, Tezza também se sente à vontade sempre que volta à terra natal, tendo inclusive vivido em Florianópolis, onde ambientou os romances Aventuras provisórias (1989) e O fantasma da infância (1994). Por sua vez, Uma noite em Curitiba (1995) foi concluído numa residência para escritores estrangeiros em Nova Iorque, a convite da Ledig House. "Era inverno, nevava muito e cada um ficava voltado para seu próprio trabalho. Por isso, não senti diferença entre estar lá ou aqui, pois o frio e o isolamento eram os mesmos", brinca o escritor.

Na verdade, o isolamento é, para Tezza, condição própria do fazer literário. "A literatura é uma afirmação da solidão. A gente passa muito tempo sozinho e acaba sendo escrito pelos livros que escreve. E Curitiba é fria, reservada, solitária, vive mais dentro de casa que fora dela, tem um catolicismo eslavo, pesado, e uma organização germânica. É, para mim, um laboratório literário, meio à revelia", reflete.

Movido pela paixão

O pêndulo oscila novamente - desta vez, entre o passado e o presente - quando Tezza afirma que o ser humano nunca escapa da infância. "Os fatos que acontecem na nossa vida até os dez, 15 anos definem nossa visão de mundo. Mas, nessa época, não se tem instrumental para apreender o que acontece. Isso só vem na vida adulta", analisa. Apesar da afirmação, Tezza jamais escreveu sobre a infância em Lages, a não ser um texto inédito sobre a morte do pai. "Sinto dificuldade de trabalhar personagens infantis, temendo que se tornem clichês. Neste livro que escrevo, há uma criança de cinco anos, que é sempre vista pelos olhos dos outros - e não me atrevo a escrever de outra forma. Só me lembro de dois livros excelentes em que as crianças falam por si mesmas: O senhor das moscas, de William Golding, e O boca do inferno, de Otto Lara Resende. Mas eram crianças maiores", salienta.

A literatura de Tezza tem, por outro lado, sua própria maestria: a segurança narrativa - sempre observada pelos críticos e que o escritor imputa ao plot, que surge do gosto pelo suspense. "O suspense é um gênero muito moderno, que responde a um mundo hostil. Mas, nele, eu não sou vítima do mundo, eu posso modificá-lo", afirma. Há, no entanto, outros elementos mais evidentes em suas obras: uma visão particular da classe média urbana brasileira; a estrutura confessional (mas não biográfica, frisa ele) da narrativa; a referência a alguma forma de arte (poesia, prosa, teatro, artes plásticas) no centro da trama; e as oposições (homem maduro/adolescente, mestre/discípulo, homem/mulher) que se iluminam e/ou se obscurecem reciprocamente. Para Tezza, sua literatura tem outra síntese: "Todos os meus livros são histórias de amor. A paixão move o mundo - ou a vida".

Na ficção, Tezza já transitou pela poesia, pelo conto e pela dramaturgia, mas ancorou definitivamente no romance. "É um gênero que engloba todos os demais, o gênero de um homem inacabado, que não tem nada pronto. É uma longa viagem histórica em direção ao espaço do indivíduo. A prosa romanesca dá voz ao indivíduo, à intimidade como um valor, absorvendo todas as linguagens", comenta. Mas Tezza observa que, em 200 anos, a literatura passou do status de principal forma de expressão e experiência do processo civilizatório para o de um trabalho marginal, diante da ascensão das mídias, no século XX, no espaço da linguagem. "O espaço da literatura hoje é acuado, mas também é o espaço da liberdade, porque não é um espaço oficial", analisa o escritor, que continua: "A literatura é muito mais sofisticada que qualquer ato visual. E por ser uma atividade marginal, é um antídoto para a massificação da vida social".

Nada disso impede Tezza de ser um apaixonado pelas novas tecnologias de comunicação: além de viver "plugado" na internet, onde - e somente onde - lê os jornais do dia, o escritor adora explorar os recursos de programas de design gráfico (com os quais faz capas bem-humoradas com fotos da família para CDs caseiros com o selo 'Barkhtin', referência ao seu teórico preferido e à vida boêmia da juventude, da qual restou um pequeno bar na sala de visitas) e de fotografia digital. A fotografia, aliás, sempre foi uma das suas paixões e, ultimamente, Tezza tem-na praticado bastante por causa de seu romance. "Mas o fotógrafo do livro ainda trabalha com as boas e velhas câmeras reflex manuais", avisa ele.

Da mesma forma, a tecnologia digital não entra no seu processo de escrita - pelo menos não nas primeiras fases de elaboração de um livro. "Quando se escreve direto no computador, o texto sempre parece acabado", desconfia Tezza. Como vem fazendo há muito tempo, ele primeiro gesta longamente a história ("o romance inteiro está contido na primeira fase, e é preciso esperar que ela aconteça") e convive com suas personagens ainda invisíveis por cerca de quatro anos. Depois, por um ou dois anos, ele passa a escrever o livro - sempre à mão (pois gosta do contato sensorial com o papel), numa letra miúda, em folhas amarelas, sem pauta. Durante quatro horas diárias, geralmente à tarde, ele dedica-se a preencher no máximo uma folha. "Acredito numa energia que cria a tensão entre os personagens. Se eu me entusiasmo demais ao escrever, posso queimar um cartucho que seria melhor utilizado mais tarde. Além disso, às vezes, o que você escreve num dia parece maravilhoso na hora, mas no dia seguinte já não parece mais tão bom, ou vice-versa. Então, prefiro me ater a essa disciplina", justifica.

Dono de uma alegria serena, Tezza é um homem tranqüilo, simples, bem-humorado, amante da vida em família (a mulher e os filhos Felipe e Ana) e preocupado em tornar claro seu pensamento - herança do professor que mora nele, com certeza. Acessível, o escritor não se recusa a avaliar o material dos jovens aspirantes que o procuram - só pede que os textos sejam curtos. "A maioria deles são textos ainda imaturos, por isso é preciso responder aos autores com delicadeza", ensina. Afinal, da mesma forma que a literatura é sua vida, pode vir a ser a vida de outros. Tanto que, na sala de visitas do apartamento amplo e aconchegante próximo à UFPR, o cuco suíço - que anuncia a hora justamente quando ele conta sua breve experiência como relojoeiro - divide a parede com as estantes de madeira (talhadas cuidadosamente por ele mesmo) abarrotadas de livros de autores brasileiros e estrangeiros, novos e consagrados.

Embora sua literatura iniciante tenha tido influências de Cortázar e Borges (em A cidade inventada, de 1980), Tezza desmente a presença de Bukowski em Trapo (na época da elaboração do livro, ele não conhecia a obra do americano) e afirma que hoje a leitura de outros autores é unicamente uma fonte de prazer, destacando os livros do sul-africano J. M. Coetzee e, no Brasil, os contos de Marçal Aquino, a poesia de Carpinejar e o romance Nove noites, de Bernardo Carvalho - que, uma semana após esta entrevista, dividiu com Pico na veia, de Dalton Trevisan, o I Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. No Paraná, admira o "vampiro" Trevisan e a sofisticação de Jamil Snege, a quem afirma dever muito de sua formação literária.

Dos seus livros (11 publicados), Tezza diz que do que mais gosta é sempre aquele que está escrevendo. Mas ele sente especial carinho por Breve espaço entre cor e sombra, no qual, aliás, o narrador masculino divide a cena com uma voz feminina, pela primeira vez. "Algumas mulheres já tinham me cobrado o fato de que meus romances são narrados por homens", confessa, divertido. Esse tipo de desafio não foi o único que ele decidiu enfrentar e gostou: ao escrever A suavidade do vento (1991), utilizou a sabedoria milenar chinesa do I Ching como fonte de reflexão e inspiração. Mas, quem sabe, talvez fosse apenas o pêndulo interior de Cristovão Tezza, oscilando entre ocidente e oriente...


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