UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

Projeto "Um Dedo de Prosa" - IX Edição
Florianópolis, 29 de maio de 2003
Auditório Henrique Fontes - 10h00
Centro de Comunicação e Expressão

 

Deny: É com muito prazer que recebemos todos aqui para esta nona edição do Dedo de Prosa, uma realização do Centro de Comunicação e Expressão. Gostaríamos de agradecer a presença do professor Dilvo Ristoff, diretor do Centro de Comunicação e Expressão, ao professor David Lemos, vice-diretor do Centro de Comunicação e Expressão, aos escritores: Oldemar Olsen, Flávio José Cardoso, Salim Miguel, Artêmio Zanon e Dennis Radunz, à esposa do escritor Cristovão Tezza, Beth, aos alunos da Escola da Lagoa, da Escola Anísio Teixeira, da Escola Avelino Müller, também aos alunos do Colégio Energia - Ensino Fundamental e aos demais aqui presentes. Muito obrigado pela presença. E o nosso convidado para Um Dedo de Prosa, nessa nona edição, é o escritor Cristovão Tezza. Então, nós vamos começar, como de costume, lendo uma pequena biografia do Cristovão Tezza, que vocês podem acompanhar no folheto.

Escritor Catarinense, nascido em Lajes, Cristovão Tezza foi professor de Língua Portuguesa na UFSC em 1986 e atualmente é Professor de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. Cristovão, que diz não conseguir imaginar a sua vida sem o ato de escrever, se fez escritor seguindo os impulsos de sua marcante e inquieta personalidade. Na juventude, escreveu alguns romances e peças de teatro e participou ativamente de uma comunidade de arte popular dirigida por Wilson Rio Apa, na cidade litorânea de Antonina, no Paraná, participando de diversos festivais de teatro. Em 1975, em andanças pela Europa, escreveu o livro de contos A Cidade Inventada, que ele considera o ponto de partida de seu amadurecimento como escritor.

De volta ao Brasil, escreve o romance Gran Circo das Américas (Brasiliense, 1979). Seu livro Ensaio da Paixão (escrito em 1982, publicado em 1985 e relançado pela Rocco em 1998), menção honrosa do Concurso Nacional do Romance, prêmio Cruz e Souza, promovido pelo Estado de Santa Catarina, foi incluído pela COPERVE na lista do vestibular 2002 da UFSC. Em 1988 publicou o romance Trapo (Brasiliense, relançado pela Rocco), que o projetou nacionalmente. No ano seguinte, seu livro Aventuras provisórias foi um dos premiados do Concurso Petrobrás de Literatura Brasileira. Seu último romance, Breve espaço entre Cor e Sombra (1998), ganhou o prêmio Machado de Assis e ficou entre os três finalistas do prêmio Jabuti, duas premiações que aliás distinguem quem é quem na literatura Brasileira.
Além das obras já citadas, Cristovão Tezza é autor dos romances Juliano Pavollini (1989); A Suavidade do vento (1991); O Fantasma da Infância (1992); e Uma Noite em Curitiba (1995).

Em primeiro lugar, bom dia. Antes da gente começar, com a leitura de um texto seu, eu queria ressaltar uma parte dessa biografia, que diz assim: "Cristovão, que diz não conseguir imaginar a sua vida sem o ato de escrever...". E aí eu posso pegar outro trecho, que nós encontramos num livro de resenhas publicado pela Universidade Federal do Paraná, que diz o seguinte: "Eu sou um homem construído pelas histórias que escrevi". Eu queria que você contextualizasse essa sua frase e explicasse toda essa sua motivação pela arte de escrever.

Cristovão: Tudo bem. Bom, antes de mais nada, bom dia. Eu queria agradecer esse carinho, essa recepção simplesmente fantástica que eu estou tendo aqui (eu até falei com os meus amigos: "Nem parece que eu sou escritor"...) e agradecer a vocês essa conversa sobre o meu trabalho. Sobre ser um homem construído pelas histórias que escrevi, eu diria que, lá pelos doze, treze anos, eu já tinha um projeto firmemente estabelecido de ser escritor. E, para a minha geração, ser escritor ou ser artista era mais do que simplesmente desenvolver uma técnica ou aprender uma profissão, uma atividade específica ou aceita pelo sistema, integrada. Era uma maneira de você ser do contra, contra o sistema. Eu sou daquela geração de 68. Na época do golpe militar, estava ali nos meus quinze, dezesseis anos. Pegava todo aquele clima de contestação. O ato de escrever se inseria como uma atitude que se tomava diante da vida. Escrever era uma maneira de dizer: "Eu não concordo com o que está aí. Eu quero um mundo alternativo.". Era uma busca de utopia. E foi assim, mais ou menos, que começou esse processo. O ato de escrever é um processo muito longo de introspecção. Ou seja, a gente escreve sozinho, silenciosamente. No meu caso, que escrevo romances, textos longos, é um processo que leva muito tempo. Você fica um ano, um ano e meio, dois anos escrevendo um livro. E, é claro que, ao final desse processo, você já não é exatamente igual ao que você era quando começou a escrever. De maneira que nós escrevemos as histórias e elas acabam por nos escrever também. Nós somos transformados. Naquela busca do processo de contar histórias ou de representar o mundo, da forma de representação literária do mundo, nós acabamos descobrindo quem somos também. Se eu olhar para trás e avaliar o meu conjunto de obras, todos os meus romances, eu vejo que tem um Cristovão em cada época desse período. O ato de escrever me transformou também. Eu não conseguiria pensar a minha vida sem a literatura.

Deny: Se a gente fosse pensar no Cristovão que escreveu o primeiro livro e nesse Cristovão que está se preparando para começar uma nova ficção, o que mudou?

Cristovão: Já disseram que a desvantagem da juventude é que nós não somos mais jovens. Nos meus treze, quatorze, quinze anos, quando eu comecei a escrever, naturalmente, eu comecei como poeta, como todo mundo. A poesia é o primeiro rompante. A primeira entrada no mundo de quem escreve, normalmente, é pela poesia, pelo lirismo. A utopia está mais próxima. Era também uma atitude diante do mundo. E o mundo foi mudando. É claro, nós não estamos mais em 64 ou 68. O Brasil passou por transformações fantásticas - eu acredito que para melhor (evidentemente em relação a ditadura militar) - e nesse processo a gente vai amadurecendo também. Não sou mais um garoto de quatorze anos. Aos cinqüenta anos você começa a olhar retrospectivamente. A literatura da gente muda bastante. Eu sinto que o que eu escrevo hoje é muito mais reflexivo, mais intimista. É uma coisa difícil de a gente avaliar. Tenho sempre um certo medo de reler os meus livros antigos. É uma maneira de ver fantasmas - como eu era, quem era o Cristovão lá atrás, nos livros como: Juliano Pavollini, Trapo. Mas é uma mudança. É um processo dentro de mudança. Não sei avaliar. Esse é o tipo de coisa que a gente precisa dos outros para se completar. Sozinho a gente não é nada.

Deny: Eu gostaria que você escolhesse e lesse um dos textos que a gente colocou no livreto. Assim todos podem acompanhar e conhecer um pouco mais de sua obra.

Cristovão: Na verdade, não sou contista, embora tenha escrito um livro de contos, A Cidade Inventada. Eu vivo percorrendo os sebos atrás dessa cidade inventada para comprar todos os exemplares e levar pra casa para que ninguém mais leia os contos da juventude. Foi o único livro de contos que escrevi. É claro, reconheço qualidades no livro, na medida que eu tinha um projeto literário que, à época, era muito maior do que a minha capacidade de realizá-lo. O que é bom. Eu acho que a gente sempre deve tentar dar o passo maior do que as pernas. Faz parte da utopia. A gente não pode viver mediocremente, medindo cada passo. Mas, é um livro imaturo, com altos e baixos. Quando me pedem contos, às vezes eu pego uns contos daqueles e faço, assim... uma nova receita. Reescrevo inteiro e passo como se fosse novo. Mas, no livro Trapo tem uma parte que é uma lembrança do personagem Trapo, de uma carta que ele escreve e que foi publicada isoladamente como conto. Fez bastante sucesso. Inclusive, é um texto meu que está traduzido na revista Linea D'ombra, na Itália, como um conto avulso. Eu acho que dá uma boa medida da minha literatura, ou da minha temática ou, pelo menos, de uma fase da minha vida.


A lembrança mais antiga da minha vida

A lembrança mais antiga da minha vida vem dos quatro ou cinco anos. É um galo. Um galo branco, de crista sanguinolenta e meio caída, como quem vem da guerra. Tinha uns olhos belíssimos aquele galo da minha infância, ocos e aguados e perpetuamente em fúria.

O galo me fascinava. Eu passava horas e horas no quintal da casa olhando para o meu galo. Não sei mais o que pensa uma criança de cinco anos, ou como pensa. Também não sei o que poderia significar um galo para uma criança inocente - se é que isso existe. Mas não posso me esquecer da minha paixão. Uma admiração legítima pela grandeza dele, sem qualquer traço de inveja - só admiração. Eu olhava para o galo, e o galo, de tempos em tempos, olhava para mim, furioso. Tenho uma vaga lembrança de que, se no começo ele me hostilizava abertamente, avançando, ameaçando subir pela tela de arame em arroubos histéricos de ódio, depois o galo passou a me aceitar. Conservava a raiva, mas já reconhecendo em mim apenas um inimigo inofensivo.

Entretanto - e acho que era isso o que mais me impressionava - em nenhum segundo relaxava a guarda do seu ódio. Se eu resolvia lhe jogar grãos de milho, como um discreto namoro, um pedido de paz, antes de atacar o milho ele investia contra mim, absoluto, arrogante, com um orgulho tão grande quanto estúpido. Só com a minha capitulação, com a minha disparada em sentido contrário - eu morria de medo do galo que amava - só então ele avançava contra o milho e as galinhas que se atrevessem em volta.

Em suma: um Rei.

E o canto, o canto inesquecível daquele galo burro e soberano na sua burrice auto-suficiente! O canto me pasmava. Ele subia nos tocos sujos de bosta, nos bem altos, repolhava as asas brancas num furor megalomaníaco, olhava em volta com o pescoço se alongando ao limite dos ossos e músculos e penas, ridículo, grandioso, e desfechava aquele canto prolongado de taquara rachada, com o papo se enchendo de vento, e inteiro arrepiado, na emoção verdadeira da própria grandeza! Todo o sangue do galo, toda a sua alma estufava-se na garganta e na cabeça, a crista mais vermelha ainda, num crescendo de rubor. E, após o número, os olhos recrudesciam em fúria, perscrutando em volta, tentando adivinhar, nas frestas miúdas do seu cérebro, a mais leve sugestão de ironia contra o espetáculo. E se chegasse até o seu tosco mecanismo mental a conclusão de que riam dele, de que o seu canto não provocava mais que o escárnio dos outros seres? Com certeza morreria, inerme contra o inimigo: morreria explodido dentro do próprio ódio, a alma incapaz de conter-se nos limites estreitos daquele organismo miúdo. Ao final do canto, depois de circunvagar o olhar em flechadas súbitas, envenenadas, o penacho trêmulo, ele se fixava em mim, odiento, um ou dois segundos apenas. E ai de mim se eu não amasse o seu canto! Mas o que ele encontrava nos meus olhos era tão somente devoção.

Eu me fascinava também com a dignidade estupenda das suas pernas ressecadas, uma antiqüíssima bota ajustada perfeitamente a cada nervo. E as garras, as unhas, as esporas, sempre na ânsia de sustentar a Terra inteira debaixo dos pés, de não deixá-la cair! Eu imaginava (imagino agora) que aquele ódio nada mais era que o desconforto sem solução de tamanha grandeza condenada até a morte às penas de um volume ridículo, de um formato estapafúrdio, desarmônico, de uma figura empalhada de circo. O galo sabia disso: agora tenho certeza.
Não sei quanto durou minha paixão. Ficou a imagem: eu desse lado da cerca, encantado. Talvez transparecesse já no meu rosto a tristeza da ingratidão, talvez eu insistisse tanto em visitar o galo somente na esperança de um dia amolecer aquela ruindade, rasgar aquela máscara, descobrir por baixo das penas um menino assustado, como eu. Era uma proposta de amizade que não tinha pressa. Mas se tornava tão forte minha dependência espiritual daquele titã de crista caída que a família tomou providências. Enquanto eu amava meu galo, eles tramavam. Era preciso me salvar das esporas traiçoeiras daquele galo, que sequer correspondia ao meu amor.

E eles tramavam uma conspiração magnífica, pois quando vi meu pai assomar na porta da cozinha e avançar pelo quintal até o galinheiro, diante do qual eu namorava o galo, percebi no mesmo instante que nos seus gestos e sorrisos e falas, no próprio passo cadenciado havia o preparo prévio de um cuidadoso ritual. De fascinado pelo galo, passei a me encantar com o pai, antes mesmo que eu pudesse relacionar uma coisa (o galo) com outra (o pai). "O senhor vai entrar no galinheiro?" Ele riu e entrou. Eu meti os dedos nos arames da cerca e vi o que deve ter sido o maior espetáculo da minha vida, a luta magistral de dois heróis, o galo e meu pai, no meio de uma hecatombe de galinhas em pânico. Até aí eu estava totalmente absorvido pelo momento mesmo da luta, sem pensar - apenas vendo. O galo fez um estrago medonho no meu pai - e no miolo do meu espanto estava a admiração por aquela fúria esganiçada e grandiosa, na defesa de sua dignidade. No fim, quando meu pai finalmente conseguiu agarrar o galo pelo pescoço, mãos ensangüentadas e camisa em tiras (e o galo ainda esperneava furiosamente, no limite da morte), olhei para o homem - e os olhos dele tinham exatamente o mesmo ódio do galo, mas muito menos grandeza. Um ódio tão estúpido quanto o do galo, mas sem as justificativas deste, o que de algum modo eu consegui perceber.

Fiquei calado. Meu pai sacudiu o galo com raiva - "eta bichinho filho da puta" - e saiu do galinheiro. Fui atrás, começando a descobrir que além do ritual havia uma conspiração punitiva, cuja vítima, mais do que o galo, era eu. Nunca me esqueço: "Eu vou te ensinar como se mata um galo aproveitando o sangue." Nem pensei em morcilha, mas em alguma coisa vertiginosa que meus cinco anos não podiam localizar.

Entramos no galpão, meu pai na frente, com o galo, que de tempos em tempos dava pinotes sufocados pelos dedos de ferro, e eu atrás, vendo o galo morrer. Não chorei nem nada. O pai arrancou penas do pescoço do galo, assim, em seco, colocou ele sobre um toco, e, com mãos de mestre - eu não tirava os olhos - meteu um punhal na veia, que esguichou sangue numa vasilha esmaltada.
O galo foi morrendo devagar.

À noite, minha mãe depositou na mesa a travessa de ensopado. Quando tirou a tampa eu reconheci, debaixo do vapor, amontoados em meio ao molho ferrugem, os destroços do meu galo. O pai falava qualquer coisa com meu irmão, e riam, e minha mãe também comentava qualquer coisa, sem rir. Eu me lembro que fizeram meu prato, arroz , feijão preto, ovo frito por cima, batatinha, farofa, duas folhas de alface (que é bom pra pele, disse minha mãe) e um pedaço do galo, um pedaço razoável, de carne escura, que em condições comuns deveria estar no prato do meu pai.

Na lembrança seguinte estou correndo para o banheiro, mas vomito no corredor, e começo a chorar - parece que eu quero fugir. Recordo claramente a voz da minha mãe: "Eu falei que esse menino não está bem! Eu falei!"

(Trecho do romance Trapo)

Bom, acho que todo mundo teve um galo na infância.

Deny: ...Pelo menos quem morou no interior, como você. Essa passagem é autobiográfica?

Cristovão: Eu diria que é uma memória de família de algo que teria acontecido com um dos meus irmãos. Mas, eu acho que a história foi tão impressionante, e contaram tanto, que eu incorporei como se fosse minha e a reescrevi. É claro que os fatos biográficos, quando entram na literatura, eles perdem a biografia e se tornam objetos de uma outra história. De qualquer forma, não é um texto biográfico ou pessoal.

Deny: Você tem um outro livro no qual você faz uma brincadeira com seus amigos e que deu muito o que falar. Alguns reclamando: "Esse aí não sou eu não!".

Cristovão: Quando me perguntam se os meus livros são baseados na vida real eu sempre digo: "Não. Não tem nenhum que seja baseado na vida real.". Mas, um deles, o Ensaio da Paixão, tem muitos personagens que foram baseados nos meus colegas do tempo da comunidade de teatro em que trabalhei. Ali criei personagens diretamente baseados em pessoas, o que era uma brincadeira. Porque eu ia escrevendo esse livro e, às vezes, lia capítulos para os próprios personagens. Então, tem uma história quase que comunitária, digamos assim. Ele foi se fazendo. Mas é o único caso. E, claro: depois perdeu contato com a origem, como qualquer texto.

Deny: Nós temos algumas perguntas de escritores, alguns aqui presentes, e nós vamos acompanhar aqui no vídeo.

Lauro Junkes: Há anos ou décadas passadas execrava-se quem tentava ler obra literária buscando nela elementos autobiográficos. Hoje, com maior natureza, percebe-se que a ficção não dista tanto da vida do autor. No seu caso, parece que os seus romances, constantemente, estão a devassar e exorcizar seus fantasmas interiores. Como sua ficção se apóia nisso aí?

Cristovão: Lauro, essa é uma boa pergunta: essa relação da ficção com a confissão. Parece que em algum momento da história do romance, ou da literatura, particularmente do século XX, com, digamos, a derrocada ou a derrota daquilo que se chamava o autor onisciente, quer dizer, aquele narrador que entrava em todas as cabeças ao mesmo tempo; que sabia tudo e que organizava o mundo ao seu bel-prazer... Esse narrador está em crise. Ele foi sendo substituído por uma espécie de consciência individual que é falível; que vê o mundo de um único ponto de vista. Nesse sentido, o século XX também foi um século do individualismo na literatura, da visão pessoal única. De certa forma, anti-épica. E aí a questão da visão pessoal se confunde muito com a visão literária. Claro que, como objeto, o romance acabado é um objeto autônomo e deve ser analisado como tal. Para avaliar o eventual valor ou não-valor dessa história do galo (para dar um exemplo pessoal) não interessa se isso aconteceu na minha vida ou não, mas qual o resultado literário. O que eu acho fundamental para quem escreve, mesmo que faça ficção escancaradamente pessoal - mas ficção - é você se distanciar de si mesmo. O grande perigo da ficção confessional é o leitor não perceber a dimensão estética, ou seja, o texto como um puro desabafo pessoal; o texto como representação direta, não mediada pela visão estética, pelo distanciamento. É preciso distanciar-se de si mesmo para que a obra fique em pé. De relação pessoal, eu diria que há, obviamente. O escritor que disser que não tem traços biográficos na sua obra estará mentindo. Porque a gente não tira as palavras do nada. Nós somos um olhar sobre o mundo e essa experiência vai aparecer em vários momentos. Eu diria que há uma influência muito difusa; alguns momentos mais fortes, outros menos fortes de experiência. Mas, todo personagem é uma espécie de Frankenstein. É importante que cada personagem tenha um pouco de quem escreve, até para que você seja capaz de criar empatia. Seria distante demais se você não tivesse nada a ver com ele. Você pode criar uma barreira de gelo. O fato de você ser capaz de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa e entrar nessa outra pessoa é sempre um dado de empatia da arte. Eu diria que o meu lado biográfico não é pesado. Tem aí uns dez, quinze por cento que eventualmente entram - às vezes mais, às vezes menos - para a construção estética da literatura, dos livros.

Deny: Como você falou, é sempre importante a presença dessa parte estética num livro, principalmente de ficção. Como você trabalha o seu texto? Você tem algum ritual ao trabalhar o texto: primeiro escrever uma versão preliminar, todo o livro de uma vez, ou então por capítulos? E, você já reescreveu algum livro?

Cristovão: Isso aí é interessante. É uma coisa engraçada: eu vou acabar sendo colocado no Museu de História Natural porque eu escrevo ficção à mão. É um ser em extinção. Isso não existe mais. Principalmente eu, que sou fissurado, gosto muito de máquina, computador. Eu brinco com isso: tenho gravador de CD; sou chegado em Internet. Na minha infância eu fui relojoeiro. Eu gosto dessa coisa técnica. Mas, no momento de escrever, eu escrevo à mão. Ficção eu escrevo à mão. Quando é ensaio ou resenha crítica eu vou direto ao computador. Ficção, não. Escrever um romance é um processo em que eu preciso ter na cabeça, primeiro, uma situação; uma situação dramática. A partir daquilo, às vezes eu passo um ano pensando e aquilo vai crescendo em volta. Depois, uma linguagem. Quer dizer, uma frase, um momento em que eu sinta que aquele narrador não sou mais eu. É um outro olhar que é capaz de sustentar a narrativa. E, por último, eu preciso ter um final em vista. Eu preciso saber aonde é que aquilo vai. Todas as vezes que eu tentei escrever um romance sem saber para onde eu ia, o romance gorava. Eu sei que nem todo mundo é assim. Tem gente que vai ao sabor da história. Eu preciso ter um eixo final. Agora, eu nunca terminei um romance de acordo com aquele projeto original. No momento de escrever ele vai tomando outro rumo. Mas reservo aquele ali como uma espécie de socorro, uma tábua de salvação porque, se me perder completamente, já sei que tenho para onde chegar, onde deixar aqueles escombros de pé. Em geral, preciso ter uma disciplina bem estabelecida. Dependendo do tipo de vida que eu levo na época... Por exemplo, o Trapo eu lembro que foi todo escrito de madrugada porque eu estava com dois filhos em casa. Era a época em que eu estava mais descansado - estava desempregado. Só a Betinha que trabalhava. Eu era o 'dono-de-casa', ao invés dela ser a dona-de-casa. Então, a hora mais sossegada para mim era depois das dez da noite até as três da manhã. O Trapo inteiro foi escrito nesse horário. Naquele período da minha vida, em 81, foi assim que funcionou. Hoje, com a universidade, é diferente: eu tenho que reservar um tempo. Agora, que comecei outro romance, tenho reservado as tardes, entre as duas e meia e cinco da tarde (que é a hora que eu vou buscar o Felipe na escola). Eu me tranco no meu buraco e escrevo. Começa muito devagar. Eu fico, então, contando por linhas. Na última semana, no último dia que eu trabalhei, eu escrevi sessenta linhas - o que foi uma boa coisa. Foi quase uma página inteira. Muitas vezes avanço só quinze linhas, vinte linhas, mas eu vou me povoando do livro. Eu sei que daqui a pouco vou ter umas quarenta páginas prontas e aí o romance começa a deslanchar. Quando eu estou começando um romance, não gosto de escrever muito para não perder o rumo e não estragar um certo estado emocional com relação ao livro. Tem uma situação boa? Você vai devagar; você vai segurando a coisa. Porque, depois de você tomar um rumo, voltar atrás, cortar e ir para outra direção é uma coisa perigosa. Tenho um certo medo disso. Agora... reescrevo muito. Em geral, as primeiras trinta páginas do livro são inteiramente reescritas. O personagem que era gordo fica magro; um desaparece; outro muda de nome. Tem uma série de mudanças. Da metade para o fim é que o livro começa a ficar inteiro. Aí, eu volto para o começo. A parte mais reescrita são as primeira trinta páginas, que eu refaço quase tudo mesmo. Eu me lembro de um episódio: uma vez eu fui convidado para participar, junto com outros três escritores, numa Fundação de Nova Iorque, chamada Ledig House. Eu fiquei dois meses - fevereiro e março - trancado numa casa, no norte do estado de Nova York, isolado de tudo, debaixo de neve. Era um alemão, um eslovaco e uma americana, mais o gerente da casa, que era lituano, e a mulher, também americana. Parecia um cenário de um romance policial da Agatha Christie. Que alguém ia se matar ali dentro. Porque você não tinha absolutamente nada a fazer. Você olhava pela janela - era uma daquelas casas de madeira da Nova Inglaterra, típica da região -, e via aquele gelo em volta. E você não tinha a obrigação de fazer nada. Eu levantava nove horas da manhã, fazia aquele pratão de sucrilhos com leite (que é coisa de americano... Engordei bastante!), aí me trancava no quarto e fumava um cigarro atrás do outro. Naquele tempo eu fumava; parei já faz cinco anos. E fumar um cigarro nos Estados Unidos é uma operação de guerra, uma coisa perigosa. Parece que você está com uma granada na mão. É um negócio horroroso. Ainda bem que tinha o eslovaco. Todo o terceiro mundo - quer dizer, eu e o eslovaco - fumava. Então, nós tomamos a biblioteca da casa. Tinha ali um lugar legal, com uma lareira. E ali era o lugar de fumar. No primeiro dia que me convidaram para o jantar, eu cheguei na cozinha (era uma cozinha grande, modelo antigo, com aquela mesona... um lugar agradável) e, acabando aquele jantar magnífico, fui tirar meu cigarro. Eles me olharam, se afastaram e eu disse: "Não! Estou só brincando...".

Deny: ..."Imagina se eu queria fumar! Eu não ia fazer isso! Estava só testando...".

Cristovão: Perdi o fio da meada... Sobre o quê eu estava falando mesmo?

Deny: Sobre escrever o livro...

Cristovão: Pois é, sobre cortar o início do romance - agora lembrei. Bem, quase todo dia, no final da tarde, eu saía para caminhar com o alemão, o Helmut Frielenghaus, e a gente conversava bastante. Um dia contei para ele que havia cortado os capítulos iniciais do romance, e ele me disse uma frase ótima: "Fez muito bem. Todo livro deveria começar na página 30!" Bem, trabalhei direto mesmo, o dia todo, durante 60 dias. Descansava à noite. Tomava umas cervejinhas para conseguir descansar. E foi ficando assim... Praticamente em dois meses eu trouxe o livro pronto. Foi uma experiência interessante.

Deny: Vamos a mais uma pergunta. Agora, do escritor Oldemar Olsen.

Oldemar Olsen: O que significa ser um escritor num país periférico? É um fardo, uma benção ou um dom? Você que é um escritor de êxito, explique para nós. E, para finalizar, eu gostaria de te desejar uma boa estada entre nós. Bem-vindo entre os seus amigos. Um abraço.

Cristovão: Olsen, muito obrigado. É uma bela pergunta esta: "O que é ser escritor num país periférico como o Brasil?". A primeira coisa é que há uma certa diferenciação histórica entre o momento em que eu comecei a escrever (entre os anos 70 e 80) e hoje. Eu estive na Bienal do Rio e deu para sentir, conversando com o pessoal, a mudança substancial que houve no tratamento do livro no Brasil com relação àquele meu tempo. Não tem nada perfeito ainda. Mas o fato inegável é que o livro, hoje, é uma indústria poderosíssima no país. Tanto que, finalmente, as multinacionais estão chegando. O caso do livro era uma coisa engraçada. Tinha companhias estrangeiras em todas as áreas, e nunca no livro. Você não tinha, praticamente, editoras estrangeiras no Brasil. Era até de se pensar: "Por quê?". Porque não era um tão bom negócio. Hoje é. Hoje já estão chegando grupos poderosos fortíssimos para botar os pés aqui. Significa que você tem um universo de leitores. Que o Brasil é um país periférico, sem dúvida nenhuma. Escrever aqui, não significa nada no mundo. Ninguém conhece a literatura brasileira. Conhece Jorge Amado e Paulo Coelho. Só. O resto transita somente em universidades. Talvez alguém lá na Alemanha ou na França conheça Clarice Lispector. Mas é aquela faixa estreita; não é aquele trânsito de autores, que você ouça falar, que tenha consumo. Realmente não tem. Nossa penetração no mercado editorial estrangeiro é muito difícil. Há um imaginário sobre o Brasil que se espera que os escritores brasileiros correspondam. Esse imaginário foi muito marcado pela literatura do Jorge Amado. Não por culpa dele, naturalmente, mas pelo imaginário da nossa própria cultura, da própria história da literatura brasileira. Desde José de Alencar, a construção da nacionalidade brasileira criou uma imagem, um tipo de brasileiro, um tipo de cultura que é, mais ou menos, o que o europeu ou o americano quer consumir aqui. Mudou um pouco. Hoje não é tanto o herói baiano, bem-humorado, sensual do Jorge Amado. É mais o criminoso, do Rubem Fonseca, do Paulo Lins, a violência das grandes cidades. Isso passou a ser uma coisa interessante do ponto de vista temático. Eu acho que o grande problema do escritor brasileiro não é exatamente as editoras. Eu acho que cresceu o número. Edita-se de tudo hoje. Até mesmo poesia, que era um verdadeiro inferno. Um poeta era uma maldição para qualquer editor, que saía jogando pedra atrás se alguém lhe oferecesse um livro de poemas. Hoje não. A produção está muito segmentada. Em São Paulo e no Rio está cheio de selos menores que editam linhas específicas para determinado tipo de público: linha universitária, literatura experimental, literatura de massa. Mesmo as grandes editoras - Rocco, Record, Globo, Companhia das Letras - têm lançado muitos autores brasileiros. O que não significa divulgação instantânea. Isso é uma ilusão que eu tive e que todo mundo tem: pensar que ser publicado pela Rocco e pela Record é uma maravilha. Não é. Porque os pontos de venda são muito poucos no Brasil. Existem poucos pontos de venda e, se o livreiro não comprar o seu livro, você não vai estar em lugar nenhum. Mesmo com o melhor selo do mundo. A verdade é que esse estrangulamento está nos pontos de venda. A Rocco lança uma cota para cada livraria. Vendeu aquilo, se o livreiro não pedir mais, a editora tem outros títulos para mandar em seguida. É um processo assim, meio avassalador. É um trator que passa. Então, há uma certa ilusão em relação a isso. O que os selos mais importantes dão - isso é fato - é um espaço maior na imprensa. A imprensa dá mais atenção para os selos mais conhecidos do que para os selos alternativos. Ou, se você for alternativo ou pequeno, você tem que ter uma espécie de charme, uma marca pessoal. São Paulo e Rio, por exemplo, possuem selos menores - a Editora 34 é um deles - que têm angariado prestígio com determinados títulos. Lançando, por exemplo, traduções de Dostoiévski com o Paulo Bezerra. É uma editora pequena mas, por alguns títulos, conseguiu ganhar um espaço alternativo. Eu acho que o grande estrangulador, o grande problema do livro no Brasil passa pela questão do ensino básico. É preciso que se instalem bibliotecas pelo Brasil inteiro para o livro chegar às mãos dessa criançada toda e colocar no universo da leitura milhões de brasileiros que são apenas alfabetizados funcionalmente, para ler placa de ônibus. O universo dos leitores no Brasil é muito estreito, mas tem um potencial imenso. Se eu for dizer o que pode ser feito pela literatura eu diria: vamos aumentar o número de leitores em todo esse interior, nas escolar; fazer o livro chegar às pessoas. O livro precisa começar a ser um bom negócio em toda parte. Na medida que você tiver leitores, tiver esses focos irradiadores de leitura, os livreiros vão se interessar em comprar títulos. Aí você entra num processo como o que se tem na Europa. Sonhar não custa nada...

Deny: Ainda complementando a pergunta do Oldemar Olsen. Você ingressou muito cedo na carreira de escritor. Hoje, você acompanha esse mesmo processo como professor da Universidade Federal do Paraná (acredito que muito alunos seus têm esse sonho de ser escritor). Eu queria que você falasse um pouco sobre o que mudou no cenário cultura e comercial aqui, em Santa Catarina, e na região sul que, de modo geral, está fora do eixo Rio-São Paulo e das grandes publicações.

Cristovão: Esse é um fenômeno interessante do sul que a gente nota, principalmente, em Porto Alegre e Florianópolis: os modos alternativos de se romper o eixo Rio-São Paulo. Eu vivi isso ao longo dos anos 70 e 80. Se você não fosse publicado no Rio ou em São Paulo, não tinha chance. É como se dissessem: pode desistir: você não existe. Talvez o único foco alternativo realmente fosse Porto Alegre. Hoje estão se criando muitas alternativas. Uma delas são as universidades. As editoras universitárias têm feito um trabalho para compensar a falta, digamos, das editoras comerciais, ocupando algum espaço. Embora eu veja com alguma ressalva o fato de as editoras universitárias entrarem na área da ficção, que eu acho que deveria ficar mais à solta, reservando-se o espaço oficial para publicações que, normalmente, não teriam espaço fácil nas editoras comerciais, como trabalhos de ciência, historiografia, trabalhos de importância regional, etc. Mas, olhando retrospectivamente, tem sido uma coisa positiva. Acaba sendo, de fato, uma maneira de publicar autores locais. Aquele primeiro patamar em que você se lança no mundo estava ausente para a minha geração. Eu fico pensando no meu caso. Publiquei quatro livros na década de 80 (o primeiro foi em 79) - A Cidade Inventada, O Terrorista Lírico, Ensaio da Paixão e Gran Circo das Américas - e eu, simplesmente, não existia. E um deles tinha saído pela editora Brasiliense (que na época era uma grande editora), na coleção Jovens do Mundo Todo. Pois bem, mesmo com aqueles quatro primeiros livros publicados, eu simplesmente não existia. Não tinha nota em lugar nenhum. Se você pegar os jornais dos anos 70, 80 não existe nenhum relato sobre O Terrorista Lírico, sobre o Ensaio da Paixão. Eu tive espaço melhor aqui. Aliás, Santa Catarina sempre acolheu melhor a produção local, mantém com ela uma relação muito mais forte do que a que existe no Paraná, por exemplo. Bem, só quando Trapo saiu pela Brasiliense, daí numa edição nacional grande (foi em 88, levou seis anos para o livro ser publicado), aí sim. De repente, do nada, passei a ser um escritor nacional, publicado por uma grande editora. Esse passo intermediário é que acho que hoje existe muito mais. Você tem chance de publicar o livro localmente, de discutir esse livro, de ter um espaço crítico, de ser comentado, de trocar influências. É um degrau, uma coisa que melhorou. Essa centralização em São Paulo e Rio é brava. E é um fenômeno pelo qual passa toda a cultura brasileira.

Deny: Vamos a mais uma pergunta. Agora, da professora Regina Carvalho.

Regina Carvalho: Há uma pergunta que eu, como professora de criação literária, especialmente de contos e crônicas, embora não de romance (porque não dá para ensinar a escrever romance em seis meses), eu gostaria de saber: quanto de paciência precisa ter um autor para conseguir fechar a edição de um romance?

Cristovão: São dois anos, dois anos de paciência. No meu caso é assim: um ano a dois anos em que você alterna profundas depressões e inseguranças, aquela sensação no final do dia, de se dizer: "Isso aqui tá uma bosta! Tá muito ruim!", até aqueles momentos de se dizer: "Eu sou um gênio! Olha que coisa maravilhosa!...", lê em voz alta um trecho. Tem essas alternâncias... É um trabalho muito solitário. Tem um lado interessante (eu sempre gosto de lembrar isso). A literatura, ou a arte em geral, não é um trabalho solicitado pela sociedade. O mundo precisa, objetivamente, de advogados, encanadores... O encanador, quando há um vazamento, é mais útil que Shakespeare. Escrever é um trabalho em que você mete a cara por absoluta conta própria. Não é solicitado por ninguém. Ninguém pede escritor, poeta. Nos classificados se procura tudo, menos escritor. A gente nunca vê um anúncio assim: "Precisa-se de um poeta"; "Precisa-se de um sonetista de fino trato"; "Precisa-se de um romancista". Ninguém pede. Isso não existe. A gente mete a cara porque quer. Outra questão que a gente deve pensar e também suavizar um pouco a cabeça com relação ao trabalho literário é a questão ética. Ou seja, é uma escolha que você faz. Não é simplesmente uma escolha profissional: "Vou ser sapateiro; fazer sapatos bonitos e vender esses sapatos.". Ela (a literatura) é alguma coisa que mexe com você para o resto da vida. Vai te transformar. Todo o trabalho de arte te transforma. De certa forma, é uma performance. Você entra numa viagem sem volta. Você não tem nenhuma garantia de que vai ser lido. Você não tem nenhuma garantia de que vai vender seu livro. Se você vender, for sucesso e tal, daqui a dez anos você pode ser esquecido, nunca mais ouvirem falar de você. Você pode morrer na desgraça e, de repente, descobrirem que você era um gênio. Nada, nada garante. Tudo é falível. A crítica, a recepção, a venda de livros: tudo isso aí é a "Vaidade das vaidades", como diz o Eclesiastes. Você fica num fio de lâmina em que não há garantia de nada. Eu acho que um escritor, um artista em geral, se ele não desenvolver uma dimensão introspectiva ética no seu trabalho, de que aquilo que ele faz realmente independe do resto, é um projeto para você, ele pode dar com os burros n'água. Inclusive, existencialmente. Às vezes você pode ficar amargurado, pode ficar um sujeito envenenado com a vida, você pode achar que o mundo inteiro quer matar você. Eu acho que a gente precisa ser um pouco zen com relação a isso aí. Eu cheguei a ter quatro livros na gaveta, quatro originais recusados em tudo quanto é editora. Então, eu não tenho nenhuma ilusão, nem com esse fato de ser recusado quanto com aquele de ser editado, porque este pode fechar a porta amanhã. É uma coisa extremamente volátil. Não há nenhuma garantia. Mas, você tem que trazer esse projeto, que é uma coisa que eu trouxe dos anos 60. Aquela coisa meio maluca de que viver não é uma coisa pragmática, é um sonho, uma utopia, um projeto que você faz para ficar melhor. A arte é generosa ou ela não serve para nada. Uma das dimensões da arte é a generosidade. Em qualquer coisa que você leia. Não existe arte contra o homem ou contra a vida.

Deny: Agora, eu gostaria de abrir às perguntas do público.

Público: Meu nome é Mágila. Eu sou bibliotecária e, atualmente, estou cursando Letras-Italiano aqui na Universidade Federal. Minha pergunta é a seguinte: eu queria que você falasse um pouco dos autores que o influenciaram nas diferentes fases da sua vida - os autores da adolescência, os autores dos seus tempos de luta (já nos seus vinte anos), e hoje também, os autores que você gosta.

Cristovão: É interessante ver essa coisa: que a gente é muito os autores que leu. O escritor, na verdade, é feito também, boa parte, por aquilo que leu. O primeiro autor que eu gostei... Porque eu - quando criança - eu não gostava muito de livros. Quando eu ganhava um livro de presente de aniversário eu pensava: "Ah... Porque não me deu um carrinho! Livro... Que coisa mais chata!". Isso são lembranças bem antigas. Aí, subitamente, eu li o Monteiro Lobato, que foi, talvez, o grande formador de leitores da minha geração e das gerações anteriores. Hoje eu não sei se o pessoal continua lendo, mas parece que já não tem aquela força que tinha na minha geração. O primeiro livro que li inteirinho (que era um calhamaço imenso) foi A chave do tamanho. Um livro fantástico. O Monteiro Lobato era um autor que escrevia para crianças, mas ele não fazia discursos moralizantes. Era uma novidade total na clássica literatura infantil. Ao mesmo tempo, ele lidava com uma realidade concreta, cotidiana, com coisas que diziam respeito ao dia-a-dia da criança. Então, meu grande formador como leitor foi Monteiro Lobato. Eu li tudo: li as obras completas e depois passei a ler a literatura adulta dele, que tem uma importância histórica grande - como Urupês, Cidades mortas, os contos -, mas que não tem a estatura, talvez, da literatura infantil. Mais tarde, relendo para os meus filhos história do Monteiro Lobato, eu comecei a ter problemas com ele. Eu acho, por exemplo, que tem um traço racista na literatura dele: a figura da negra Anastácia, por exemplo, que parecia tão pitoresca e tão interessante na verdade representava uma espécie de congelamento de um estrato social - tudo se transformava em torno, exceto ela; na verdade era simplesmente o retrato do país quanto ao papel do negro. Mas nada disso tira a força da literatura dele como formador de leitor. Depois eu lia muitos livros de aventura. Júlio Verne, por exemplo. Eu gostava muito dos livros do Júlio Verne, que também desapareceu um pouco do mercado. O pessoal tem lido muito adaptações dele. Eu lia a coleção integral. Aí eu comecei a ler furiosamente (já na comunidade de teatro, aos dezessete, dezoito anos). Lia Camus, Sartre... Todos os escritores que marcaram época naquele tempo. Na literatura brasileira eu gosto muito do Graciliano Ramos. Foi um escritor extremamente marcante. Eu acho que o Graciliano foi bom em tudo. Até em bilhete que escrevesse ele era bom. A secura da linguagem dele, o tipo de olhar que ele tem sobre o mundo... Ele estava todo enterrado num Brasil rural, mas a cabeça dele era urbana. Ele já pensava com uma abstração urbana; não fazia média nenhuma com o universo dele. E aí está a grandeza. Eu acho que ele é o nosso grande prosador do século XX. Assim como Drummond, para mim, é o nosso grande poeta. Em alguns momentos, alguns autores me marcaram bastante. Eu gosto muito do Joseph Conrad - o romance Lord Jim me marcou profundamente. Vários livros do Conrad que eu li parecem aventuras, mas não são; são livros muito profundos. E nessa mesma linha, alguém que também me marcou muito foi William Faulkner, que eu li bastante nos anos 70, da minha formação. Duas coisas básicas me atraíam, primeiro no Conrad, depois no Faulkner: primeiro, a linguagem, aquele jeito de avançar pelo mundo como quem não o compreende bem; e, depois, o tipo de universo, as questões morais que eles colocam. Isso me atrai muito na literatura. A literatura como espaço de discussão de tópicos éticos é sempre uma literatura muito forte. Bem, eu sou, digamos, um leitor onívoro. Li muito teatro também, teatro americano: Tenessee Williams, o Albee, o Arthur Miller (que eu acho que é uma tríade de autores fantástica). O pessoal devia ler bastante o teatro americano. É um tipo de consciência do século XX que está ali escarrada, na própria cultura do império que a gente vê hoje.

Público: Meu nome é José Miguel. Eu sou professor de literatura do Colégio Dom Jaime e do Colégio Geração. Numa certa feita, numa discussão com outra colega professora sobre essa premência de escrever, eu falei para ela o seguinte: "Acho que tenho um romance iniciado". E ela me disse: "Cuidado, porque o começo não é tão problemático. O problema é o fim. Não vai fazer igual ao Cristovão Tezza que matou todo mundo em Ensaio da Paixão". Essa a minha primeira pergunta: eu não queria saber sobre o início; eu queria saber sobre o final, aquela sensação final "Como eu vou terminar isto?". Se realmente funciona aquele postulado no início de que 'este script eu vou seguir'. E eu tenho também uma segunda pergunta, que é a seguinte: como professor desses alunos - que vão desde a oitava série até o terceiro ano -, obrigá-los a ler ou não?

Cristovão: O final de um livro é uma coisa difícil... Eu me lembro de um romance, por exemplo, O Fantasma da Infância, que teve dois finais. Eu fiz um final e não gostei. E escrevi um outro diametralmente oposto. Levei uns três, quatro meses até decidir que solução eu daria. O romance contém duas histórias intercaladas. Numa história, um escritor é seqüestrado em Curitiba por um milionário da economia informal que quer que ele escreva a biografia dele. Noutra história, os personagens têm o mesmo nome, mas não têm nada a ver com aquilo: se passa em Florianópolis, na Lagoa. O André Devinne é uma pessoa que tem um cargo no governo, um homem importante etc. Na verdade, é o Juliano Pavollini, protagonista de outro romance meu, vinte anos depois, com outro nome. E ele é ameaçado por um fantasma da infância, que é alguém que sabe da vida dele e que pode destruí-lo. É uma história com um gancho policial. Engraçado é que a crítica lembrou que a história mais verossímil das duas era aquela "escrita" pelo personagem, e não a outra, supostamente "real". E é uma história em que uma não fecha com a outra. Tinha uma questão a resolver no final. Então, eu acabei decidindo por um lado. Eu acho que ele ficou bem resolvido. Mas, terminar é um problema sério - saber colocar o ponto final. A coragem de cortar é outra coisa que eu também aprendi com o tempo - quer dizer, acho que aprendi... O escritor não pode ter medo de enfiar machadadas em páginas, capítulos inteiros. Cortar mesmo. Às vezes a gente se apaixona por algum trecho: pela retórica, pelas voltas, pelos volteios, e aquilo fica demais. Uma boa possibilidade é você escolher a coisa sem o trecho duvidoso, e ver qual é o efeito final. Imaginar sem uma frase no meio, supor alternativas mais secas, mais enxutas. Isso aí é um bom exercício. Bem, a outra pergunta é a questão da obrigatoriedade. Sempre que o meu livro entra em listas de vestibulares (já esteve aqui na UFSC, acho que umas duas vezes; lá no Paraná tem Uma Noite em Curitiba, tem o Trapo) eu sempre digo: "Serei odiado por milhares de leitores... Eles vão ser obrigados a me ler". E, às vezes, chegam mensagens assim: "Prezado escritor, eu sou estudante da Escola Tal. Eu preciso de um resumo do seu livro Trapo. Muito obrigado!". E aí você descobre que já existem livros que fazem resumos; já tem venda de 'Resumos das Obras do Vestibular'. Alguns desses livros têm um aviso embaixo, como aquele impresso no cigarro, só que de forma diferente: "Leia o livro. É sempre importante ler o livro.". Só falta dizer: "Ler resumo faz mal à saúde.". Tem duas questões. A principal delas é o vestibular, que tem uma força social muito grande. As federais, principalmente - na medida que há uma multidão que precisa ter acesso a um ensino de melhor qualidade. Então, aparecer na lista indicada por uma federal é um fato relevante. Tem duas formas de ver a questão. Uma é lembrar o que disse há pouco sobre as editoras universitárias: o espaço que a universidade pode cumprir para suprir uma ausência total dos nomes alternativos ou concomitantes àquilo que está aparecendo no eixo Rio-São Paulo ou na grande imprensa. Quer dizer, as diferentes universidades têm a possibilidade de colocar nomes representativos locais, regionais para você criar uma história para a própria consciência dos estudantes que vivem na região. O que eu acho importante é não perder a dimensão da literatura brasileira. Eu já ouvi falar de universidades do Rio Grande do Sul que só põem autores gaúchos. Isso eu acho um equívoco. Nós pertencemos a uma família chamada literatura brasileira. A expressão regional tem sentido enquanto ela é parte dessa literatura brasileira. Tem que ter essa dimensão. Nesse sentido, eu acho que é um mal necessário, digamos assim. Porque a grande função do vestibular, mais do que propriamente o exame, o tipo de prova de vestibular, é sinalizar para o segundo grau o que é relevante e o que não é relevante. Por exemplo, as mudanças que se fizeram em várias universidades com relação à prova de português sinalizaram ao segundo grau métodos de trabalho com a língua portuguesa que deram uma melhorada significativa no trabalho com a linguagem. Isso eu sinto em Curitiba. No Paraná é bastante visível. O tipo de prova que a Federal de lá implantou, com questões diferenciadas, acabando com aquela 'redação típica'... O aluno chega hoje com domínio muito melhor de variedade lingüística, com domínio muito melhor de gênero, com uma visão muito mais amadurecida de linguagem que, digamos, cinco, dez anos atrás. Isso eu acompanhei de perto nos últimos vinte anos. Nesse sentido, a universidade dá um sinal, diz: "Isso é relevante.". Quando se faz uma lista de autores, também é uma maneira de dizer: "Esses autores são relevantes.". É uma maneira de multiplicar a importância da literatura.

Público: O meu nome é Deisy e eu faço pós-graduação em literatura. Eu queria saber se dando aula e produzindo você ainda tem tempo para a leitura. E, também, se você lê os seus contemporâneos e quem você indicaria como um autor brasileiro contemporâneo para a gente conhecer.

Cristovão: Nos últimos anos eu parei de escrever ficção porque fui fazer meu doutorado a minha tese está saindo pela Rocco. [Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Editora Rocco, 2003]. Foi um período que eu não pude mexer com ficção, de jeito nenhum. A cabeça entrou num outro circuito. E depois, com a idade, a gente não tem mais tanto tempo. Você não tem mais aquela energia de subir escada de três em três degraus, de fazer tudo ao mesmo tempo. Eu começo a olhar para trás, para os livros que eu escrevi nos anos 80, e vejo que eu escrevi bastante, trabalhei bastante. Pois, ao mesmo tempo, eu preparava material didático, dava aula. Hoje, a coisa está mais difícil. Se eu não administrar bem o meu tempo, acabo sendo devorado. Porque eu tenho o trabalho das aulas, o trabalho teórico, e não quero esquecer a ficção. Esse semestre eu estou conseguindo algumas tardes livres.
Bem, com relação ao outro ponto: a literatura brasileira é difícil você acompanhar. Realmente, tem uma produção muito grande. Você vê de tudo. E eu não saberia te dizer o que está aparecendo no momento, dizer nomes. Eu acho que a literatura brasileira está conquistando um espaço sólido de leitores. Isso é visível. O próprio fato das editoras estarem publicando autores brasileiros é um sinal. Na poesia você tem uma produção imensa. Embora ainda não se tenha a centralização em alguns nomes maiores como foi a regra em períodos anteriores. Mas, também, a gente deve pensar que o Drummond e o Manuel Bandeira jogaram a poesia brasileira brasileira num patamar muito alto. Quer dizer, talvez seja preciso esperar algum bom tempo até se ter um amadurecimento e a depuraçao de uma nova geração poética. Na ficção é engraçado. É preciso romper uma espécie de inércia. No Brasil, parece que se tem só quatro autores que vendem: Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca... Tem mais algum?... Então, esses são os nomes que os livreiros compram, colocam na frente, são comentados, merecem espaço. Claro que há grandes nomes que são best-sellers, e isso é excelente. Seria uma grande bobagem identificar automaticamente boa venda com literatura menor ou comercial. Ótimo que haja autores vendendo muito, porque isso move a literatura e cria leitores. Mas, independentemente da qualidade, essa centralização cria - parece - um fosso. Se você for ver a idade desses autores, são autores na faixa dos sessenta anos para mais. A nova geração não está entrando. Ela não está conseguindo espaço. E tem muita gente produzindo. É só ver aqui, no exemplo de vocês, no Dedo de Prosa. Cada autor que chega aqui apresenta uma obra extremamente consistente - do Olsen, do Salim Miguel, de todos os autores daqui. Se você pegar várias regiões do Brasil, vai encontrar a mesma coisa. É também o caso de Curitiba. Parece que o cerco não se rompe. As pessoas dizem: "Não, Cristovão. Você é um cara bastante conhecido.". De fato, sou conhecido. Sou editado por uma grande editora. Mas isso é muito ilusório. É uma espécie de faixa intermediária. Não é uma coisa fácil. Praticamente ninguém vive de livro no Brasil. É espantoso. Eu tenho doze livros publicados por grandes editoras e... nem pensar! Eu não consigo viver dos meus livros. É um processo difícil. A hora em que você conseguir essa profissionalização, aí sim. Mas isso não dá para fazer por decreto. É aquela questão de você criar um universo de leitores muito maior; aumentar os pontos de venda. Quer dizer, o livro virar um bom negócio. O livreiro tem que se convencer que é um bom negócio e diversificar o que ele coloca lá na frente.

Deny: Estamos chegando ao final de mais uma edição do Dedo de Prosa. Eu gostaria muito de agradecer sua presença aqui e desejar sucesso no seu romance. Que ele esteja logo nas bancas. E eu gostaria de chamar aqui a aluna de Jornalismo, Silvana Idrech, que vai fazer a entrega da placa em sua homenagem por ter participado dessa edição do Dedo de Prosa.

Cristovão: "Ao escritor Cristovão Tezza. Palmam qui meruiit ferat. Uma homenagem do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, Projeto Um Dedo de Prosa. 29 de maio de 2003." Muito obrigado a vocês. Do coração, muito obrigado.

Deny: A expressão em latim quer dizer: "Os louros para quem os merece".

Cristovão: Muito obrigado.

Deny: Gostaríamos de convidar a todos para, na última quinta feira do próximo mês, estar aqui, com a presença do escritor Oldemar Olsen. Muito obrigado pela presença de todos e bom dia.



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